Sigrid Nunez
“Era uma primavera instável.”
Eu tinha lido o livro havia muito tempo e, com exceção dessa frase, não me lembrava de quase nada. Eu não poderia contar a você sobre as pessoas que apareciam na narrativa ou sobre o que aconteceu com elas. Não poderia contar a você (somente mais tarde, depois de ter pesquisado) que a história tinha início em 1880. Não que isso importasse. Só quando era jovem eu acreditava que era importante lembrar o que acontecia em cada romance que lia. Agora sei a verdade: o que importa é o que você experimenta durante a leitura, os estados de sentimento que a história evoca, as questões que surgem em sua mente, muito mais do que os eventos ficcionais descritos. Deviam ensinar isso na escola, mas não ensinam. Em vez disso, a ênfase sempre está naquilo que você lembrou. Do contrário, como se escreveria uma crítica? Como se passaria em um exame? Como se conseguiria obter formação em literatura?
Gosto do romancista que confessou que a única lembrança que permaneceu com ele depois de ter lido “Anna Kariênina” era o detalhe de uma cesta de piquenique apoiando um pote de mel.
O que ficou comigo todo esse tempo depois de ler “Os anos” foi o início, com aquela primeira frase, seguida por uma descrição do clima.
“Nunca inicie um livro com o clima” é uma das primeiras regras da escrita. Nunca entendi por que não.
“Clima implacável de novembro” é a terceira frase de ‘A casa soturna’. Após a qual Dickens famosamente fala sobre nevoeiro. “Era uma noite escura e tempestuosa.” Nunca entendi por que essa frase foi universalmente reconhecida como a pior maneira de (esqueci quem: outra coisa para pesquisar) iniciar um romance. Desprezada por ser tanto desinteressante como, ao mesmo tempo, muito melodramática. (Edward Bulwer-Lytton, originalmente, em um livro chamado ‘Paul Clifford’, em 1830. Outros depois, em zombaria, mais memoravelmente Ray Bradbury, Madeleine L’Engle e Snoopy.)
‘Pouco imaginativas’ era a expressão usada por Oscar Wilde para descrever pessoas para as quais o clima é um assunto de conversa. Claro, em sua época, o clima — o clima inglês em particular — era entediante. Não o evento bem mais errático e frequentemente apocalíptico pelo qual hoje as pessoas em todo o mundo ficam obcecadas. É importante ressaltar, contudo, que não era do nevoeiro comum — vapor condensado, uma nuvem baixa — que Dickens falava, mas de um miasma causado pela terrível poluição industrial de Londres.
Era uma primavera instável.
Todas as manhãs eu saía para caminhar. Era meu principal prazer em uma escassez de prazeres, observando dia após dia a chegada de uma nova estação: as magnólias abrindo suas pétalas e — tão pungentemente cedo, como parecia para mim todos os anos, mas jamais tão cedo quanto na primavera de 2020 — as perdendo. As flores de cerejeira, ainda mais adoráveis — as mais adoráveis, estamos combinados? —, mas igualmente de curta duração. Os junquilhos e os narcisos — narcisistas? — e as vistosas tulipas que quase pareciam bocas enlouquecidas clamando por atenção. “Muito excitável” é como Sylvia Plath certa vez descreveu um vaso de flores “muito vermelhas”. Como as assustadas rosas de Rilke “levantando-se para gritar: Vermelhas”. Para Elizabeth Bishop, as manchas na ponta das pétalas dos cornisos eram como queimaduras em uma guimba de cigarro. Poetas.
Pode ser acidental que os nomes de flores também sejam sempre belas palavras? Rosa. Violeta. Amarílis. Nomes tão atraentes que as pessoas os escolhem para seus bebês. Jasmim. Camélia. E certa vez conheci uma buldogue chamada Petúnia. Uma gata chamada Mimosa.
Tantos outros nomes belos que posso pensar: anêmona, lilás, azaleia. Certamente deve haver uma exceção. Sempre há exceções. Mas, embora eu não seja tão entusiasmada com a palavra flox, não consigo pensar em um único nome de flor feio, você consegue?
Existem outras plantas, no entanto, como ervas daninhas e outras ervas, com nomes horríveis, como ervilhaca. Estamos pensando em chamar o bebê de Ervilhaca. Conheça os gêmeos: Manjerona e Manjericão. Esporão. Barbatimão. Absinto: o nome que C. S. Lewis deu ao aprendiz do diabo em ‘Cartas de um diabo a seu aprendiz’. Papoula!
Não para uma menina, jamais, mas é um bom nome para uma gata.
Havia dias em que ficava muito tempo fora — até três ou quatro horas. Eu fazia um loop. Ia de parque em parque. Era onde as flores estavam. No começo, antes que os playgrounds fechassem, me confortava ver as crianças mais novas, ou apenas ouvir suas vozes trinadas, enquanto sentava em um banco próximo. (Eu não ficava lendo, como faria em épocas normais. Tinha perdido a capacidade de concentração. Eram somente as notícias que prendiam minha atenção, a única coisa que eu gostaria de conseguir ignorar.) Também gostava de ver os cachorros brincarem, antes que os parques caninos fossem fechados. Não havíamos todos sido reduzidos à condição de crianças? Estas eram as regras: quebre-as e você será punido, seus privilégios de fazer coisas felizes haviam sido retirados. Para o bem de todos: que fique bem entendido. Mas e os cachorros — o que eles tinham feito?
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Claro, eu ainda via muitos cachorros sendo levados para passear. Mas parecia que havia algo diferente neles. Sabiam que alguma coisa estava acontecendo. A maneira sombria como se arrastavam, o cenho franzido, a cabeça baixa. No que haviam se metido agora?, o cenho deles parecia perguntar.
Uma jovem amiga desaprovava o tanto de tempo que eu passava ao ar livre.
É permitido tomar um ar, ela dizia. Isso não significa vagar pelas ruas por horas.
Mas por que expressar as coisas nesses termos, vagar, como se eu fosse alguma senhorinha doida e sem rumo? Uma volta rápida no quarteirão, uma ida ao mercado, entrar, sair, sem demora. Fique em casa. Essa é a regra.
Não se faça de boba, dizia ela. Você está quebrando as regras e sabe disso. Uma pessoa vulnerável, assim ela me chamava. Você é vulnerável, dizia. E precisa agir como tal.
O governador de Nova York, o homem que fazia as regras, concordava com isso. Nas redes sociais espalharam uma história de mulheres em quarentena se masturbando enquanto assistiam às coletivas de imprensa diárias dele.
Sobre a autora e o livro
Filha de uma alemã e de um panamenho de origem chinesa, Sigrid Nunez nasceu em
Nova York, onde vive até hoje.
É autora dos livros “Uma pena no sopro de Deus”, “A adormecida nua”, “Para Rouenna” e “A última da sua espécie”. No Brasil, a editora Instante lançou “O amigo” (que, em breve, chegará aos cinemas), “O que você está enfrentando” e “Sempre Susan: um olhar sobre Susan Sontag”. “Os vulneráveis”, que chega agora às livrarias, é uma história ambientada em Nova York nos primeiros dias de confinamento provocado pela pandemia de COVID-19.
“Os vulneráveis”
• Sigrid Nunez
• Instante Editora
• Tradução de Carla Fortino.
• 176 páginas
• R$ 74,90