Sérgio Augusto Vicente

Especial para o EM

 

Durante muito tempo estigmatizadas como um “gênero menor”, as cartas vêm ganhando destaque nas pesquisas, sobretudo a partir dos revisionismos históricos e, particularmente, dos estudos biográficos. No entanto, as reflexões críticas acerca de sua utilização como fontes de pesquisa e objetos de análise ainda permanecem aquém do esperado. É nesse sentido que o mais novo livro do pesquisador Leandro Garcia Rodrigues, da UFMG, vem a contribuir.


Lançado pela Relicário Edições, “Cartas que falam” é um livro de fôlego, que reúne artigos e ensaios produzidos ao longo dos seus mais de vinte anos de experiência de pesquisa no campo da epistolografia. Apesar de seu lugar de fala ser o da teoria literária, esse trabalho traz incontornáveis contribuições para todas as áreas do conhecimento que se debruçam sobre esse gênero textual tão raro nos dias de hoje, com o advento das tecnologias digitais.


Ao longo de mais de 400 páginas de agradável leitura, “Cartas que falam” nos aguça uma série de reflexões devidamente fundamentadas sobre como “degluti-las”, com olhar crítico, método e perspicácia. Afinal de contas, o primeiro equívoco que um leitor pode cometer é o de achar que as missivas são meros depósitos de onde se pode extrair, sem nenhum esforço cognitivo, uma série de informações curiosas, prontas para serem “devoradas” e disseminadas por aí. Em tempos de fake news, é sempre bom alertar sobre o perigo de informações descontextualizadas.

 




Garcia nos chama atenção sobre como as missivas podem se tornar verdadeiras armadilhas aos desavisados. Isso tudo porque, antes de se extrair delas qualquer informação, é preciso que se tenha consciência dos elementos que constituem esse gênero, que é híbrido e repleto de lacunas por natureza. Questões como o intervalo de tempo entre o envio do remetente e a leitura do destinatário, a pseudopresença física dos correspondentes e as tênues relações entre público e privado, são analisadas na obra como fundamentais de serem levadas em consideração antes de lê-las.

 

No livro, Leandro Garcia conta que Manuel Bandeira (E) percebia na correspondência com Mário de Andrade (D) diferenças entre o Mário "da vida" e o "das cartas"

Arquivo


“Pacto epistolar”


É preciso compreender, ainda, que toda carta traz a visão de mundo e a autorrepresentação de quem a escreveu a partir da relação com o seu destinatário. Sem se desvelarem as tramas da relação entre um e outro, como saber que tipo de comunicação está sendo estabelecida nessa troca epistolar? Nesse sentido, é curioso que o livro nos traga como exemplo a constatação de que Manuel Bandeira percebia na correspondência com Mário de Andrade diferenças entre o Mário “da vida” e o “das cartas”.


No caso dos literatos, não é de se estranhar a recorrente presença de elevados graus de ficcionalização nas narrativas e discursos. As epístolas muitas vezes servem como verdadeiros “palcos” onde a vida é teatralizada pelos correspondentes. Nesse sentido, é salutar que se investigue o “pacto epistolar” estabelecido entre ambos.

 


Se as cartas não são “fontes confiáveis”, se tudo é construção e discurso, por que então utilizá-las em pesquisas acadêmicas? Esse não é um problema para os que estão antenados com as renovações da história – há muito distanciada do conceito de verdade e de fonte histórica defendido pelos signatários de uma obcecada busca por uma verdade objetiva e universal em documentos ditos “oficiais” ou preocupados com a consagração de “grandes vultos” e fatos de uma história única (a “história nacional”). Mergulhando nas discussões da chamada “Nova História”, Leandro propõe formas renovadas de olhar as cartas a partir de sua contribuição para a historiografia literária.

 


Mas, afinal, o que as cartas podem nos falar? Elas podem nos falar muitas coisas, desde que estejamos preparados para lhes fazer boas perguntas, explorando-as como espaços privilegiados em que a sociabilidade intelectual e as redes de interlocução se estruturam, alimentando a troca de afetos, valores, ideologias, leituras, ensejando a fundação de jornais e revistas, confrarias, movimentos artístico-literários e fomentando debates, tensionamentos de ideias, linguagens e estéticas. Em suma, um “prato feito” para pesquisas focadas em desvelar a atmosfera de uma época (história das mentalidades) e em fazer a “crítica genética” das obras dos autores, possibilitando o acesso aos materiais citados nas missivas, às sugestões de modificações textuais, às intenções de abordar este ou aquele tema, dessa ou daquela maneira, etc.

 


Por essas e outras razões, “Cartas que falam” se torna leitura obrigatória. Através de uma alentada fundamentação teórico-metodológica e experiência de pesquisas empíricas em arquivos, Leandro não apenas contribui para que façamos leituras criteriosas e críticas das cartas, como também nos chama atenção para a sua importância na desconstrução dos cânones literários. Focado no modernismo brasileiro, sua área de pesquisa, o autor perscruta nuances, ambiguidades e contradições de um movimento artístico-cultural-literário tão plural quanto as cartas escritas para se debatê-lo.


Sérgio Augusto Vicente é historiador da Fundação Museu Mariano Procópio (Juiz de Fora – MG) e doutorando em História pela UFJF.

 

Capa do lovro "Cartas que falam"

Reprodução


“Cartas que falam”
• Leandro Garcia Rodrigues
• Relicário Edições
• 464 páginas
• R$ 79,90

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