Milton Hatoum

Posfácio para “Diário da tristeza comum”, de Mahmud Darwich

 

Aos cinco anos, Mahmud Darwich deixa sua aldeia e, sozinho na noite, caminha até a cidade de Akka, “o lugar mais remoto do mundo naquele tempo”. Ele procurava sua mãe, mas ela já voltara para a aldeia (Albirwe). Poucos anos depois desse desencontro, o menino se junta à caravana de um êxodo forçado e é salvo pela Lua. “Não fosse a Lua, eu teria ficado órfão antes do tempo […] eu teria me perdido de meu pai.”


O fantasma da orfandade precoce, o medo da noite quando procurava a mãe e a partida involuntária de sua terra são os primeiros traumas da criança que “tinha que experimentar a derrota”.


“O mero ato de procurar é a prova de que me recuso a me perder na minha perda”, escreve Darwich em “A Lua não caiu no poço”, o primeiro dos nove relatos desse comovente “Diário da tristeza comum”.

 




Essa busca reside, em parte, na compreensão profunda das causas que forçaram Darwich a percorrer a longa, tortuosa e dilacerante “estrada que mais tarde entendi ser a estrada do exílio”. A Lua – que ainda não caíra no poço – seria o símbolo poderoso de tantas viagens, reais e imaginárias.


O que o poeta se recusa a perder em sua própria perda? A Palestina. “O fato de os conquistadores se reprodu zirem na terra de outro povo não lhes garante o direito de chamá-la de pátria.”


Como vem ocorrendo com milhares de palestinos, Darwich não saiu voluntariamente de sua terra: “não foi uma viagem, mas expulsão e exílio”. Quando ele volta do exílio, tem a impressão de que não chegou à Palestina. Mesmo de corpo presente, ele se sente ausente da pátria. Daí a pergunta do narrador: “O que era mais doloroso, ser refugiado no país de outros ou refugiado em seu próprio país?”

 


As nove crônicas sondam essa questão, que o autor já abordara em outro grande livro: “Da presença da ausência”. Poderia ser um impasse, com gemidos e sussurros de lamento, mas Darwich evita a autocomiseração e as lamúrias da vitimização. Por certo, a melancolia do desterrado – tristeza comum a todo um povo – aparece em várias páginas; mas nelas há também humor e ironia mordazes, a exemplo do relato que dá título ao livro, em que o autor narra em capítulos breves o inferno cotidiano dos palestinos, submetidos a uma vigilância e violência permanentes. Num desses quadros, o narrador é despertado pela polícia às quatro da manhã; depois, sob custódia na delegacia, ouve as acusações contra ele: “explodir uma melancia na entrada do circo e ameaçar a segurança nacional”. O poeta aprisionado ironiza: “A melancia, o circo e o Estado – rara harmonia!”


(...)


O arco temático de “Diário da tristeza comum” parte da infância do narrador e da fuga noturna de sua família, perseguida por milícias sionistas. Na sequência dos capítulos, Darwich evoca a deambulação dos familiares no Líbano e seu regresso ao vilarejo palestino, onde são considerados “infiltrados”; os trabalhos humilhantes e estafantes do pai após a espoliação das terras que lhe pertenciam; o diálogo com um amigo pintor israelense sobre a tragédia de ambos: o artista desembarca na Palestina após fugir do nazismo, enquanto Darwich é forçado a ceder sua terra natal aos que chegam da Europa.

 


Outros textos revelam a falsidade da democracia e da justiça israelenses. Num deles, o poeta relata ter sido várias vezes proibido de sair do país; esse ato arbitrário, totalmente antidemocrático, é aplicado com frequência não apenas a professores, cientistas, atletas, escritores, artistas e pessoas gravemente enfermas, mas à população palestina nos territórios ocupados (...).

 
Os documentos históricos e os testemunhos pessoais e coletivos alternam com diálogos imaginários e reais, mas sem deixar de lado reflexões sobre o malefício do exílio e um olhar subjetivo, movido por um fluxo de emoções que deságuam em imagens poéticas. Nesse sentido, a consciência aguda da história – tão bem formulada nas tramas enredadas nos relatos – está impregnada de liris- mo e dramaticidade. Desde a infância até a morte, Darwich testemunhou a tragédia dos palestinos, e, para sobreviver, na presença-ausência de sua pátria usurpada, recorreu à memória e à imaginação, como alguém que se sente “em um estado de sonho permanente, limitado pelas justificativas da necessidade, e não levantando voo nas asas da ilusão exuberante”.

 


Quando ele procura o coração, que caíra numa noite traumática da infância, encontra o despedaçado, feito pedrinhas espalhadas no chão: “com meus dedos em chamas, eu as transformo em palavras que me põem em contato com a pátria distante”.


Palavras com sonoridade, ritmo e significado expressivos, cujo poder evocativo sensibiliza e enleva o leitor, irmanando-o à voz do poeta:


– Ó palestino errante, ponha um fim a esse caos.


Você não lhes deu ouvido, então eles o levaram a outro massacre em outro mês, ou no aniversário de sua primeira morte. Para quê? Em nome de uma paz imaginária.


Você vai se tornar um fantasma. Você vai se tornar um pesadelo. Você vai se tornar uma faísca.


–Vá para outro lugar e nos deixe em paz.


– Aonde quer que eu vá, minha sombra se torna um lugar.


Sobre a obra e o posfácio

 

“Diário da tristeza comum”, primeiro livro em prosa do poeta palestino Mahmud Darwich, reúne ensaios escritos em 1973, no exílio do autor, em Beirute. Os ensaios autobiográficos recriam o passado do poeta na Palestina ocupada. A edição brasileira, da Tabla, tem tradução de Safa Jubran e posfácio do escritor Milton Hatoum (“Dois irmãos”), reproduzido parcialmente nesta página.

 

Capa do livro "Diário da tristeza comum"

Reprodução

“Diário da tristeza comum”
• Mahmud Darwich
• Tradução de Safa Jubran
• Posfácio de Milton Hatoum
• Tabla Editora
• 176 páginas
• R$ 67
• Pré-venda no site: www.editoratabla.com.br

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