“Tem uma história antiga do povo Krenak que diz que o Criador deixou uma humanidade aqui na Terra e foi para algum outro lugar do cosmos. Um dia ele se lembrou de nós e disse: 'Ah, eu deixei minhas criaturas lá na Terra, preciso ver o que eles se tornaram'. Mas, enquanto fazia esse movimento incrível de vir até aqui nos ver, ele pensou: 'E se eles tiverem se tornado algo pior do que eu posso conceber? O melhor seria não ter um encontro pessoal com eles. Vou fazer o seguinte: vou me transformar em uma outra criatura para ver as minhas criaturas'. Ele se transformou num tamanduá e saiu pela campina. Em certo momento, um grupo de caçadores, munidos de bordunas e laços, se encostaram numa paisagem, avançaram sobre ele, o prenderam e levaram pro acampamento com a intenção óbvia de comê-lo.”
A descrição dessa lenda instigante está no ensaio “Sonhos para adiar o fim do mundo”, incluído no livro “A vida não é útil” (2020 – Companhia das Letras), de Ailton Krenak, uma das principais lideranças indígenas do Brasil.
Agora, após se tornar “imortal” – desde abril, ocupa a cadeira 5 da Academia Brasileira de Letras (ABL) –, Ailton Krenak acaba de lançar “Kuján e os meninos sabidos”, seu primeiro livro infantil inspirado nessa lenda do povo Krenak em parceria com a escritora e ilustradora Rita Carelli:
“Contam os antigos que quando o Marét-khamaknian terminou a criação do mundo, viveu um tempo entre suas criaturas, cantando e dançando com os seus filhos. Depois, decidiu se retirar do paraíso terrestre. Então suas criaturas foram se esparramando pela Terra, caçando para comer, coletando para fazer abrigos e brincando nos campos da criação. (…) E o tempo que nem era contado ainda, foi passando assim mesmo. Passou, passou, passou. Até que Marét-khamaknian sentiu saudade e pôs-se a pensar: 'Como será que as minhas criaturas estão se virando na Terra?'. E decidiu visitá-las. Logo em seguida pensou que poderia ser perigoso, afinal, havia muito tempo que não se encontravam. Então resolveu que iria à Terra na forma de um kuján, um tamanduá”.
Na Terra, entretanto, o Criador se vê em apuros e precisa da ajuda de dois meninos sabidos, Roti e Cati, que vão moldar suas impressões sobre as criaturas terrestres. Com narrativa simples, sensível e objetiva e belas ilustrações estilizadas, o livro proporciona ao pequeno leitor reflexões sobre a jornada humana no planeta e sugere que a salvação está nas mãos das crianças, que enxergam os que os olhos dos adultos, com suas vidas atarefadas, não veem.
Os caminhos erráticos que o Homo sapiens vem seguindo ao longo dos séculos, principalmente dos mais recentes, é alvo de críticas contudentes de Ailton Krenak, que aponta como ele não só se vai se afastando cada vez mais de suas origens na natureza, como também destruindo os recursos naturais, rios e florestas e pondo em risco a sua própria sobrevivência no planeta, devido ao capitalismo predatório e ao consumismo descontrolado.
Esse grito indignado de protesto e alerta está explícito, em “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019 – Companhia das Letras), em “A vida não é útil”– que apresenta muitas reflexões sobre a pandemia de Covid – , em “O amanhã não está à venda” (2020 – Companhia das Letras), e em“Futuro ancestral” (2022 – Companhia das Letras).
'Pragas do planeta'
As reflexões de Ailton são como “um tapa na cara” do homem predador. Um bom exemplo está no ensaio “Não se come dinheiro”, incluido em “A vida não é útil”, que trata também da pandemia. Ailton reflete:
“Quando falo de humanidade não estou falando só do Homo sapiens, me refiro a uma imensidão de seres que nós excluímos desde sempre: caçamos baleia, tiramos barbatana de tubarão, matamos leão e o penduramos na parede para mostrar que somos mais bravos que ele. Além da matança de todos os outros humanos que a gente achou que não tinham nada, que estavam aí só para nos suprir com roupa, comida, abrigo. Somos a praga do planeta, uma espécie de ameba gigante. Ao longo da história, os humanos, aliás, esse clube exclusivo da humanidade — que está na declaração universal dos direitos humanos e nos protocolos das instituições —, foram devastando tudo ao seu redor. É como se tivessem elegido uma casta, a humanidade, e todos que estão fora dela são a sub-humanidade. Não são só os caiçaras, quilombolas e povos indígenas, mas toda vida que deliberadamente largamos à margem do caminho. E o caminho é o progresso: essa ideia prospectiva de que estamos indo para algum lugar. Há um horizonte, estamos indo para lá, e vamos largando no percurso tudo que não interessa, o que sobra, a sub-humanidade — alguns de nós fazemos parte dela”.
Ailton Krenak tem autoridade para esses grandes “puxões de orelha”. Nascido em 1953, no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, é hoje a maior liderança indígena do país. É doutor honoris causa pela Universidade Federal de Minas Gerais e pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
Desde a década de 1970, seu pensamento crítico e indignado diante da má conduta humana no planeta ganhou o mundo e deu grande visibilidade às causas ambientais e indígenas. O seu trabalho, por exemplo, foi fundamental na Constituição Federal de 1988, na garantia de direitos dos povos originários.
Não há como ouvir uma palestra ou ler um livro de Krenak “impunemente”. Suas reflexões incomodam mesmo, principalmente a quem vê o planeta como uma fonte inesgotável de recursos para explorar sem pensar nas consequências.
“KUJÁN E OS MENINOS SABIDOS”
Ailton Krenak e Rita Carelli
Companhia das Letrinhas
40 páginas
R$ 54,90
Entrevista / Rita Carelli
Escritora e ilustradora
“Será que a gente está realmente disposta a escutar e aprender?"
A história sobre o Criador que volta à Terra como tamanduá para ver o que aconteceu com a humanidade já está no livro “A vida não é útil”. Como surgiu a ideia de transformá-la numa história infantil? Seria para conscientizar as crianças? A salvação do planeta e da humanidade começa pelas crianças, como “meninos sabidos”?
É importante pensar que nas sociedades indígenas não existe a categoria histórias para crianças ou a categoria histórias para adultos. As histórias são um legado comum do povo. Então essa história, quando apareceu ali em “A vida não é útil”, eu já fiquei com uma pulguinha atrás da orelha que a gente podia levar para um formato que as crianças também tivessem acesso. É a mesma história, mas chega agora com outra linguagem, com outra roupagem.
Chega na forma de um livro infantil, já que na nossa sociedade essas categorias são muito marcadas, e os espaços de difusão de conhecimento para cada faixa etária são muito delimitados. O suporte para difusão desses conhecimentos é diversificado. Então, foi uma forma que a gente encontrou de levar as palavas do Ailton (Krenak) para outro público.
Essa foi uma primeira experiência, e espero que a gente continue nessa aventura. E sim sobre a sabidez das crianças. Essa aposta num futuro diferente é muito poderosa mesmo. O Aílton também fala no livro, que eu organizei, “Futuro ancestral”, muito sobre essa questão da primeira infância. E como as crianças são portadoras de novidade no mundo.
Quando elas chegam no planeta Terra não estão familiarizadas e não estão naturalizando ainda as diferentes formas de injustiça, de violência. Elas têm um outro olhar sobre as coisas. Então, essa sabedoria das crianças de questionar o status quo, a estrutura da sociedade tal como ela se encontra, é muito transformadora. Mas acontece que a gente ouve muito pouco essas novidades que as crianças trazem, esses questionamentos que trazem, essas provocações que trazem.
E em “Kuján e os meninos sabidos” justamente são esses dois personagens infantis os únicos capazes de enxergar além das aparências, de perceber que aquele tamanduá que está ali, que os mais velhos caçaram, não é um tamanduá, é simplesmente o Criador deles próprios e de todo o universo e têm a possibilidade então de aproveitar essa visita do Criador, se relacionar com ele, aprender com ele, desfrutar desse tempo com ele.
Qual a alternativa ao capitalismo predatório que “teve metástase, ocupou o planeta inteiro e se infiltrou na vida de maneira incontrolável”, como diz Aílton?
É a pergunta de milhões? É a pergunta que a humanidade inteira, ou talvez não inteira, mas uma parte dela, que está se tornando mais consciente do colapso climático e da crise e social moral etc e tal, e que a gente está vivendo, está despertando. Será que existe outra forma de viver no planeta, de se relacionar com ele?.
Mas é de novo como Ailton sempre fala, retomando também a fala da nossa querida (escritora) Conceição Evaristo, parece que as pessoas têm mais facilidade de imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. O capitalismo realmente se embrenhou no tecido da sociedade de uma forma muito profunda.
E não sei, não sabemos qual é a resposta. Gosto muito de citar a Sandra Benites, quando essa pauta é levantada, que é alma indígena brilhante e curadora de arte, e que uma vez fez uma fala que presenciei no Instituto Goethe, em São Paulo, num encontro de artistas indígenas.
Ela falou assim: “Vocês fizeram essa merda toda e agora querem que a gente resolva. Sofremos essa violência dessa colisão de mundos, com o mundo dos brancos, com o mundo capitalista. E agora vocês se voltam para nós indígenas, esperando que tenhamos a solução para a merda que vocês, que a gente resolva o problema que vocês criaram. Nós não temos a solução”.
Essa fala é muito pertinente. Ao mesmo tempo eu diria que sim, essas outras epistemologias, essas outras sociedades que têm maneiras diferentes da nossa de se relacionar com os outros seres que coabitam o planeta conosco, podem nos ensinar muito. Mas será que a gente está realmente disposta a escutar e aprender?
Qual a sua avaliação sobre o trabalho de Sonia Guajajara no Ministério dos Povos Indígenas?
Tem uma força simbólica muito grande a criação do ministério ligado aos assuntos indígenas. Agora a pergunta é: só simbólico ou vão ter ações efetivas? Porque o ministério pouco tempo depois de ser criado foi muito esvaziado também dos seus poderes decisórios.
Foi tirado do ministério o poder de demarcação dos territórios indígenas entre outras pautas fundamentais para esses povos, Então a gente ainda está aqui assistindo a essa mudança simbólica poderosa, importante, de ter a Sônia Guajajara como ministra dos povos indígenas.
E ter a brilhante Joênia Wapichana como presidente da Funai. Mas resta saber se essas pessoas vão ter condições de trabalhar, vão ter autoridade para tomar decisões, fazer as mudanças que precisam ser feitas ou se isso é uma coisa para sair bonito na foto. Estamos aguardando os resultados e as possibilidades dessas pessoas desenvolverem o seu trabalho.