Alê Motta -  (crédito: Autorretrato/divulgação)

Alê Motta

crédito: Autorretrato/divulgação


Alê Motta

1.
Meu pai me levou pra passear naquele carro velho uma única vez, e me abandonou, com o rosto encravado nas ferragens, depois que capotamos. Não esqueço a dor e o cheiro da bebida. Eu tinha onze anos, hoje tenho dezessete.


O carro ficava estacionado na frente da nossa casa sem garagem e meu pai nunca nos levava pra dar uma volta. Nós queríamos muito, mas ele dizia que eu e minha mãe não precisávamos do carro, bastavam os nossos pés para andar nas ruas do bairro. Eu era uma criança e ela era uma mulher sem trabalho. Carro era pra ele, homem feito, sujeito cheio de responsabilidades, o chefe da casa. Falava também que a gasolina era muito cara, não fazia sentido andar de carro sem motivo especial. Ele saía no carro sozinho, sempre. Eu nunca consegui imaginar qual era esse motivo especial. E nunca questionei, porque deixar meu pai nervoso não era nada bom.

 


O dia do acidente foi uma exceção. Ele me chamou pra andar de carro, capotamos e a época mais confusa da minha vida, que já não era uma vida fácil, começou.

 

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2.
Meu pai sumiu depois do acidente. Desapareceu. Ele não esperou meu resgate e não acompanhou os meses em que mofei no hospital. Sequer ligou. Imediatamente se transformou no irresponsável que abandonou o filho pequeno. Sim, o imbecil que capotou porque dirigia bêbado e quase me matou. Ele era o assunto nas casas e nos botecos do bairro. Um “homem-cagão”, desprezível.


Depois do acidente, sonhei várias vezes que não tinha acontecido nada. Acordava animado, até encarar o espelho e ver meu rosto com a cicatriz. Tão difícil aceitar.


No primeiro mês da minha internação, insisti nas perguntas sobre meu pai:


Onde ele tá?


Ele se machucou também?


O que aconteceu com ele? Ele tá em algum hospital? Ninguém respondeu. Era uma vergonha, mas eu me preocupava com ele e carregava a esperança de que ele se transformaria num bom pai. Neste dia tudo teria uma explicação. Tudo.

3.
Fiz oito cirurgias e tomei uma montanha de remédios. Decorei os nomes de todas as equipes do hospital – os enfermeiros, os médicos, os serventes, os seguranças. Fiquei quase dez meses internado.


Perdi sete dentes, as minhas gengivas ficaram feridas por muito tempo, sofri com tremores nas mãos e torcicolo, o meu maxilar e a minha mandíbula foram destroçados.


Depois da quinta cirurgia as dores amenizaram.

4.
Minha mãe ficou grávida de mim quando era adolescente. Ela estudou num colégio particular, onde conheceu meu pai. Ele trabalhava na cantina, tinha vinte e poucos anos. Foi assim que toda a merda começou. Ela só tinha contato com aqueles adolescentes bobos do colégio e, de repente, um cara mais velho começou a dar atenção e fazer trocadilhos com o nome dela.


Estela, tão bela. Estela, estrela


Minha mãe ficou encantada com o meu pai, o João lindo da cantina.


Eu lembro que ele quebrava o pau com minha mãe, porque meu nome não é igual ao nome dele. Eu não sou o Júnior. Homens como meu pai querem ter filhos homens, que levem seu nome adiante. Ele dava porrada na minha mãe, e perguntava, repetidamente, se o meu nome era de algum playboy do colégio, algum filhinho de papai. Minha mãe respondia que sempre gostou do nome, por isso tinha escolhido, e que não era por causa de ninguém.


Meu pai odiava meu nome. Meu nome é Otávio. Mas o meu nome não importa nessa história.

 

 

Sobre a autora

 

Alê Motta nasceu em São Fidélis (RJ) e se formou em arquitetura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Uma das integrantes da antologia “4 novos autores brasileiros”, é autora de “Interrompidos” e “Velhos”, ambos lançados pela Reformatório e formados por narrativas breves. Para Itamar Vieira Júnior, a prosa de Alê Motta, “minimalista, incisiva e direta”, é capaz de nos tirar da zona de conforto, “como só a boa literatura é capaz de fazer”.

 

“Minha cabeça dói”, lançamento da editora Faria e Silva, é o primeiro romance da escritora e definido pelo jornalista e escritor Fernando Molica, na apresentação, como “um livro sobre cicatrizes” e “revolve histórias inconclusas, em que passado, futuro e presente se apresentam e se enfrentam, como instrumentos que procuram harmonina numa partitura inexata.”

 

Capa do lovro "Minha cabeça dói"

Capa do lovro "Minha cabeça dói"

Reprodução

 

“Minha cabeça dói”
• Alê Motta
• Faria e Silva
• 96 páginas
• R$ 42,90