Igiaba Scego -  (crédito: divulgação)

Igiaba Scego

crédito: divulgação


Stefania Chiarelli
Especial para o EM


O italiano, a língua daqueles que colonizaram nossos antepassados tanto em Barawa como em Mogadício, uma língua que já foi inimiga, escravocrata, mas agora tornou-se, para uma geração que vai desde minha mãe até mim, a língua dos nossos afetos. A língua dos nossos segredos mais íntimos. A língua que nos completa, não obstante suas contradições.


A língua de Dante, Petrarca, Boccaccio, Elsa Morantee Dacia Maraini. A língua de Pap Khouma, Amir Issaa,Leila El Houssi, Takoua Ben Mohamed e Djarah Kan. Língua singular no passado, e agora plural. Língua mediterrânea, língua de encruzilhadas.

 

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Em um pequeno apartamento na zona leste de Roma, uma escritora endereça cartas à sobrinha Soraya, no Quebec canadense. Ela tem cinquenta anos; a jovem, vinte. O diálogo intergeracional estrutura essa obra autobiográfica que irradia para outras geografias do afeto e do espaço: Itália, Somália, um pai, uma mãe, uma sobrinha.

 

 

São eles os protagonistas de “Cassandra em Mogadício”, que recupera partes da trajetória de uma família que o tempo, as guerras e os deslocamentos esmigalharam. Igiaba Scego, nascida em Roma em 1974, filha de mãe

 

e pai somalis, recolhe amorosamente essas migalhas e conta como ésentir na pele o desenraizamento. A pele – sempre ela – a indicar a complexa equação entre pertencimento e deslocamento. Salvar a pele, julgar a pele, descamar a pele. No meio de tudo isso, a pele de uma cidade, a Mogadício familiar da narradora.

 

Em “Minha casa é onde estou” (2010), a autora já trazia para o centro da narrativa personagens migrantes e sujeitos diaspóricos, exercitando a escrita de si como forma de abraçar outras subjetividades.

 

No Brasil, seu ensaio “Viajantes” (2019) examina a desigualdade de condições dos deslocamentos no mundo contemporâneo a partir da partida do pai para Roma nos anos 1970: “Viajar não é fácil se você não nasceu no país certo (...) Se não tiver o passaporte certo, a vida acaba na fronteira”.

 

Igiaba Scego faz do autobiográfico "Cassandra em Mogadício" uma viagem pelas geografias do afeto e pelos traumas do exílio

Igiaba Scego faz do autobiográfico "Cassandra em Mogadício" uma viagem pelas geografias do afeto e pelos traumas do exílio

divulgação

 

A autora redesenha mapas afetivos e crava para sempre em nosso imaginário uma Roma negra, em que personagens carregados de referências culturais múltiplas cruzam esquinas, frequentam praças, escolas e estádios, embarcam em estações de trem e participam de passeatas. Em geral, carregam um corpo negro que destoa do cenário.

 

“Eu buscava melanina para me fazer companhia”, afirma a narradora de “Cassandra em Mogadício”, ao lembrar a própria adolescência nos anos 1990 na capital italiana, quando sofre a ausência de dois anos da mãe, que volta para a Somália em plena guerra civil.

 

 

A escrita realiza um duplo diálogo, aquele com as raízes maternas e paternas e também com toda uma vertente literária, a começar pelo título alusivo à personagem da mitologia grega, vinculando-se a uma tradição mais longínqua e forjando um parentesco simbólico com a sacerdotisa Cassandra. Troia, Roma e Mogadício formam uma triangulação muito particular, já que a protagonista-narradora se vê como a figura trágica que vaticina os infortúnios de seu povo, mas ninguém escuta.


Nessa carta “mil vezes começada, mil vezes rasgada” a Cassandra de Scego enxerga Mogadício como Troia ensanguentada, duas cidades feitas de “pedra, risos e gritos”. Aproximados por esse olhar, tais espaços dão lugar a uma reflexão contundente sobre aqueles cujo destino condenou ao deslocamento, mas também a uma capacidade de ver os que os demais não enxergam.

 

Portadora de uma doença degenerativa nos olhos, nossa Cassandra contemporânea enxerga belezas que nos escapam, estabelecendo analogias relativas a esse modo específico de ver o mundo, como quando refere os olhos da mãe Chadigia, que pareciam “a elipse da Piazza Navona, que para mim é a praça mais linda de Roma”.

 

 

Essa bambina romana redefine também nosso modo de ver lugares e gentes: em todos esses momentos, a leitura da prosa de Scego é uma experiência de grande prazer. Mas o texto vai além. Roma é um lugar de cruzamentos culturais, e a língua, espaço de encontro e disputa.

 

“Cassandra em Mogadício ”surge salpicado de palavras em somali, possibilitando (mesmo para nós, que o lemos na bela tradução de Francesca Cricelli) somalizar o italiano, tornando-o mais poroso a modos de percepção e expressão característicos dessa outra cultura.

 

A palavra na ponta da língua, o sotaque, a pronúncia, tópicos tão caros aos sujeitos deslocados, configuram um eixo central da narrativa, que discute a tensão presente entre a oralidade (herança da mãe somali, transmissora das histórias de seu povo nômade) e o mundo letrado ao qual pertence a narradora, “afro-euro-politana”, europeia de carne africana.

 


É sempre admirável a capacidade da autora de representar a experiência do entre, situando seus escritos no lugar da encruzilhada – palavra que surge a cada tanto em suas páginas. Não à toa, se coloca como escriba, alguém que busca traduzir mundos e histórias ainda não escritas. Da crítica cultural à geopolítica, da literatura ao jornalismo, do ficcional ao biográfico, Scego tensiona limites, aproximando e fazendo interagir instâncias que adentram sua prosa de forma orgânica.

 

‘Icarus’, mural da artista Judith de Leeuw, em conjunto residencial dos anos 1970, em roma

‘Icarus’, mural da artista Judith de Leeuw, em conjunto residencial dos anos 1970, em roma

ANDREAS SOLARO/afp


Dessa forma, a Roma figurada irradia uma visão política da literatura, evocando a barbárie da ocupação italiana no sul da Somália e as nefastas consequências do colonialismo, espalhando o Djíro, palavra somali para designar a doença entranhada nas artérias familiares em sucessivas gerações.

 

O vocábulo se intromete com força na narrativa, irrompendo em meio a uma língua italiana “feita de alcatrão e de sangue”, como aquela que o avô traduzia nos anos 1930, servindo a um general italiano responsável por crimes de guerra contra a Etiópia.

 

Mas é também a língua a soar de forma doce e lamuriosa, quando falada anos depois pela mãe. O mesmo idioma, desse modo, adquire tonalidades e significados distintos, a depender de quem fala e, sobretudo, como fala. Mesmo aludindo ao trauma e ao que é rompido pelas guerras, as ditaduras e o racismo, Scego não abdica de dizer o amor – nesse contexto, trazer presente o afeto equivale a resistir às dores pela via do sensível: “Estamos aqui, meu amor, juntos. E somos íntegros”.


Recusando uma fala vitimizada, a autora destaca episódios de impacto, que surgem como núcleos significativos dessa memória ativa em busca de uma cura possível. Como a cena da criança preenchendo os formulários exigidos para residência dos estrangeiros na delegacia de renovação de vistos. A mãe, a quem fora negada a instrução formal em seu país de origem, lê de forma precária, necessitando auxílio.

 

Preencher, escrever, anotar, tudo importa na dinâmica da reminiscência: “Pareço um pouco um rabisco. Com certeza não reflito a imagem hollywoodiana de escritoras que criam suas obras numa bela casa que dá para uma baía diante do oceano, daquelas de tirar o fôlego, com um belo jovem na cama e um cigarro mantido plasticamente entre os dedos.

 

Não sou Colette, não sou Joan Didion. Sou um a artista preocupada com os boletos no fim do mês, que escreve nos recortes do tempo, entre um trabalho precário e outro, tomada por crises econômicas e geopolíticas, sempre com a ansiedade de não conseguir dar conta”.

 

A imagem autoral do rabisco é preciosa: longe de um desenho mal-acabado, trata-se do gesto de ensaiar, traçar de novo e de novo, à semelhança dos temas caros à Scego, que dão voltas e se dobram sobre si mesmos.

 

À semelhança do movimento espiralar da memória, teimam em retornar a algo já dito, persistindo na retomada, mesmo quando tudo à volta parece afirmar que não há nada a dizer. Nesse conto-mosaico, Cassandra sopra palavras duras: “A Somália não é um insulto”, insiste, à procura de um alfabeto possível nesse projeto pessoal e literário de enorme relevância.

 

Stefania Chiarelli é professora de literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF) e coorganizadora do livro “Falando com Estranhos – O Estrangeiro e a Literatura Brasileira”

 

Capa do ivro "Cassandra em Mogadício"

Capa do ivro "Cassandra em Mogadício"

reprodução

 

“Cassandra em Mogadício”
• De Igiaba Scego
• Tradução de Francesca Cricelli
• Editora Nós
• 376 páginas.
• R$ 89,00 (impresso)
• R$ 62,30 (digital)