Kalaf Epalanga -  (crédito: divulgação)

Kalaf Epalanga

crédito: divulgação

 

Rogério Faria Tavares

Especial para o EM

 

Nascido em Benguela, oeste de Angola, em 1978, Kalaf Epalanga mudou-se para Portugal aos dezessete anos. Em Lisboa, fundou a banda Buraka Som Sistema e o selo musical Enchufada, responsáveis, em grande parte, pela renovação da música contemporânea produzida nas periferias da capital portuguesa.

 

Cronista do jornal Público, da GQ Portugal e da revista 451, levou para os livros suas reflexões sobre a cena cultural, as artes e linguagens, as relações étnicas, o racismo, os africanos e a sua diáspora. Dois deles estão publicados no Brasil pela Todavia: “Também os brancos sabem dançar” e “Minha pátria é a língua pretuguesa”.

 

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De passagem por Belo Horizonte para o “Jardim Sonoro - Festival de Música de Inhotim”, o autor concedeu entrevista exclusiva para o Pensar.

 


O tema dos deslocamentos, das diásporas e das migrações aparece sempre na sua obra. E ele é algo, inclusive, que você viveu, quando se mudou para Portugal. O que acha importante refletir a esse respeito?


Eu sinto que o mundo, essencialmente, é fruto das migrações. Não estou dizendo nada muito profundo, isso é óbvio. Está até na Bíblia: Jesus foi um migrante. Nós temos a tendência de demonizar as pessoas que partem. E de uma forma bastante hipócrita. No caso do Brasil, por exemplo, só os povos originários talvez possam reclamar uma ideia de identidade mais pura.

 

E, mesmo assim, é preciso lembrar que eles já são frutos de migrações que vieram da Ásia. Eu acho poético, eu acho bonito pensar o mundo como resultado do deslocamento dos povos, e quais as consequências disso, o que há de bom e o que há de mau nesses processos.

 


Você discute muito na sua literatura a vida dos migrantes, sobretudo nas periferias das grandes cidades. Quando você chegou a Lisboa, por volta de 1995, você viu uma realidade; hoje, ela certamente é diferente. O que mudou?


Quando eu cheguei a Lisboa, de fato, as comunidades periféricas tinham muito pouco poder aquisitivo. Hoje, ele já melhorou um pouco. As famílias colocam seus filhos na faculdade. Eles estão entrando no mercado de trabalho já numa posição um pouco mais qualificada, ao contrário dos seus pais, que entraram na “base da pirâmide”.

 

Isso tem mudado a forma como essas pessoas consomem cultura e o modo como elas produzem cultura. Essa, eu diria, é a grande mudança daquilo que eu observei em meados de 1990 em relação aos tempos atuais. Hoje, eu consigo dizer que, na periferia de Lisboa, há músicos africanos de classe média e de classe média alta.

 

Não no sentido clássico, como a gente pensa, querendo viver em condomínios de pessoas brancas, nada disso. Mas com um certo poder aquisitivo: são pessoas que têm férias, que têm dois veículos estacionados à porta de casa e todos os outros mecanismos que a gente usa para identificar alguém de outra classe. Já se consegue identificar isso. Tudo isso é fruto dos últimos vinte, trinta anos.


Quando chegou a Lisboa, aos 17 anos, você testemunhou o surgimento de fenômenos culturais importantes nas periferias, entre eles o sucesso estrondoso do kuduro, que é protagonista de um de seus livros e que ganhou o mundo, superando todas as barreiras. Esse ritmo se tornou popular sobretudo nas chamadas casas de dança, como você descreve: "ali, onde nós nos refugiávamos para ter liberdade"...


Imagine um imigrante empregado na construção civil, uma mulher trabalhando na limpeza ou nos restaurantes, saindo de madrugada, apanhando dois, três ônibus por dia, voltando tarde de noite para casa. Chega o fim de semana: essas pessoas vestem sua melhor roupa, se arrumam, ajeitam o cabelo do jeito que acham que têm que ser ajeitado e vão para as discotecas de kizomba.

 

Para dançar uma música que se dança abraçado, ou seja, elas passam sua semana toda silenciadas, caladas, completamente invisibilizadas pela sociedade, mas no fim de semana elas estão com sua comunidade, dançando abraçadas.

 

Não há melhor forma de transmitir afeto do que abraçar alguém... Então, há todo um reconstruir. É como num bioma. Há um acidente terrível; depois, as formiguinhas, os bichinhos voltam a reconstruir tudo, voltam quase a replantar a floresta. É mais ou menos isso o que eu sinto sobre a kizomba. É um reflorestamento emocional.

 

 

Depois desse primeiro momento, em meados de 1990, o que você destaca de mais contemporâneo na cena? Há novidades?


Muitas! Hoje, se você abre o Spotify de Portugal, das dez músicas mais tocadas, noventa por cento são de afrodescendentes. Há muito rap, muita kizomba. A kizomba que já está flertando com o afrobeat e tudo mais.

 

Você já começa a ver um novo repertório linguístico, estético, que não vai só “beber” na Beyoncé, nos Estados Unidos da América, no rhythm and blues, mas também já está “bebendo” na Nigéria, está “bebendo” na África do Sul.

 

Tudo isso começa a contribuir para a construção de uma identidade africana global. Isso já é fato, né? E se começa a sentir também no plano político. Alguns países africanos já começam a atribuir cidadania a pessoas da diáspora, mesmo que não tenham ligação específica com o seu território.

 

Sobre sua relação com as artes, você sempre fala que "é muito difícil separá-las em caixinhas". E a sua literatura reflete isso muito bem. Como você experimenta o sentimento artístico?


Eu imagino a arte como uma grande cozinha. É impossível você comer só uma coisa. Não é saudável. Para ter uma dieta equilibrada, você tem que ter um pouquinho dos carboidratos, tem que ter um pouco de açúcar. Tudo isso faz parte da nossa existência, faz parte de nós.

 

Faz parte da nossa condição. Então, se eu tenho um vizinho que é fotógrafo, ou tenho uma vizinha que é bailarina ou coreógrafa, eu vou querer conhecer quem é essa pessoa. E conhecer essa pessoa inclui a gente saber quais as práticas, o que ela está propondo para a comunidade. Isso, para mim, é muito importante.

 

Eu não faço hierarquização cultural, não acho que exista alta cultura, baixa cultura. Acho horrível quem pensa assim. Convém educarmos nosso ouvido a absorver um pouquinho de tudo. Há gostos, isso não é discutível. Mas é importante que haja uma dieta cultural saudável nas nossas vidas.

 

Consumir um pouquinho de tudo, mesmo que a gente não aprofunde. Prova! A gente não sabe se vai gostar ou não. Isso é deixar os nossos sentidos se expressarem.

 

 

Qual é o lugar do corpo na sua forma de ver as artes?


A porta de entrada para consumir arte geralmente vem através da dança e da música, mas, curiosamente, nos espaços intelectuais – às vezes até por uma questão moral ou religiosa, judaico-cristã, eu não sei – as pessoas olham para o corpo como se fosse uma coisa menor, secundária. Quanto mais a gente se forma, mais quadrado a gente fica.

 

Na infância, todos nós tínhamos uma relação um pouco mais orgânica com tudo aquilo que são os estímulos: o som, o corpo, o movimento. Mas, quando a gente vai envelhecendo, vai perdendo essa faculdade. Eu não sinto que tem que ser assim. Eu acho importante escrever sobre aquilo que nos move. Por isso, eu falo tanto de música.

 

A música acompanha os nossos estados emocionais, sempre, a todo momento, a toda hora, né? Quando estamos tristes, quando estamos alegres. Porque se escreve tão pouco sobre música, eu não sei. Ninguém consegue existir sem música.


Como é a sua relação com a língua portuguesa?


É uma relação conflituosa. Amílcar Cabral (líder da independência de Guiné Bissau e de Cabo Verde) tem uma frase que eu adoro repetir: “a melhor coisa que os portugueses nos deixaram foi a língua portuguesa”. Eu acredito nisso também. Neste momento, a gente está aqui, se comunicando em português. Eu penso nesse sentido.

 

É prático, nos serve, dá para comunicar com meio mundo, o que é maravilhoso. A língua portuguesa é uma ferramenta. Mas eu também tenho noção do que se perdeu para tornar essa ferramenta algo tão presente. E é responsabilidade nossa – dos que sentimos que alguma coisa se perdeu – fazer com que as nossas línguas originárias ocupem o seu espaço.


E como isso pode ser feito?


Eu acredito que isso seja algo que os africanos e os seus descendentes têm que resgatar e reconstruir. É preciso encontrar caminhos para coexistir com a língua do colonizador de uma forma saudável. Nós devemos conhecer e estudar as línguas originárias, pelo menos encontrar um equilíbrio entre elas e o português.


Sobre literatura: que autores leu nos últimos tempos?


Citarei dois: um, cubano, radicado na Argentina. Chama-se Marcial Gala, e escreveu um livro precioso, “Me chama de Cassandra” (Biblioteca Azul). O outro é senegalês, residente na França, Mohamed Mbougar Sarr, e é autor do belo “A mais recôndita memória dos homens” (Fósforo). Esses dois livros nos devolvem o amor pela literatura e nos relembram porque a gente gosta tanto de ler, ou porque a literatura é tão importante nas nossas vidas.


Da literatura brasileira, quem te toca mais?


Eliana Alves Cruz. Acho maravilhosa. Jeferson Tenório, gênio, para mim. É dele um dos livros mais lindos que já li em português, “O avesso da pele” (Companhia das Letras).


>> Rogério Faria Tavares é jornalista, doutor em Literatura e presidente emérito da Academia Mineira de Letras (AML)