No segundo romance lançado no Brasil pela Autêntica Contemporânea, Sara Mesa expõe com humor as microviolências de pais contra filhos -  (crédito: SONIA FRAGA)

No segundo romance lançado no Brasil pela Autêntica Contemporânea, Sara Mesa expõe com humor as microviolências de pais contra filhos

crédito: SONIA FRAGA


Guilherme Araujo
Especial para o EM

 

“Olhe com atenção, mas não diga nada” e “Nesta família não há segredos!” são frases que colidem. Não ironicamente, pelo mesmo motivo, saltam aos olhos nos capítulos iniciais de “A família”, novo romance da espanhola Sara Mesa traduzido para o português. Após conquistar leitores com “Um amor”, obra também lançada pela editora Autêntica Contemporânea, a escritora busca expandir os limites e as contradições dos ambientes familiares, responsáveis por consagrá-la.


Nascida em Madri, mas radicada logo na infância em Sevilha, Mesa ainda é um nome pouco conhecido pelo leitor brasileiro. Lá fora, desponta como uma romancista prolífica de sua geração a partir de livros que se debruçam sobre culpas, ruínas e tensões. Finalista do Premio Herralde de Novela e vencedora do troféu El Ojo Crítico de Narrativa, relevantes certames nacionais para jovens autores, ela agora trilha um caminho distinto. A despeito da capacidade de suscitar identificação, seu livro opta por revelar em fragmentos o universo que dispõe.

 

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Ao alternar passado e presente, os protagonistas de “A família” se revelam pessoas comuns, que estão sujeitas à exposição de segredos, mentiras e ambiguidades. Para acessá-los, no entanto, é preciso ir além da literalidade atribuída a cada situação. Ao notar a atmosfera de sutileza que se enlaça às tensões, surge um sem fim de códigos próprios e intrigas que, veladas, se impõem como interrogações às tentativas de manter em riste ideais de bem-estar.

 


Em pouco mais de duzentas páginas, os seis personagens centrais despejam confidências. Damián, o pai, é um advogado autoritário, mas que exibe em seu escritório fotos do líder espiritual Mahatma Gandhi. Laura, a mãe, experimenta uma vida de opressões que a leva a adotar posturas conformistas. Seu único recurso parece ser a submissão.


Os quatro filhos, cerceados até mesmo da liberdade de serem crianças, são Damián, que do pai herdara o mesmo nome; Rosa, Martina e Aquilino. O caçula é o único da família com senso de humor — estado de espírito escolhido por Mesa para questionar os desassossegos persecutórios a essa infância castrada e às voltas com o abuso de poder. Numa perspectiva quase foucaultiana, este se faz uma constante.


A obra, que chega ao idioma pelas mãos de Silvia Massimini Félix, tem início com uma descrição guiada e onírica da casa em que grande parte dos acontecimentos se desenrola. A norma é clara e evoca, parcialmente, a alegoria da caverna de Platão: a não ser para a escola, dali não se pode sair. Seria natural que o ambiente estivesse à sombra do desconforto, uma sensação que, em distintos graus de intensidade, e durante os vários anos em que a trama se desenrola, acompanha seus moradores.

 


Nesse vaivém temporal é que se reivindica, junto ao leitor, a criação de um vínculo de intimidade — algo que se dá com certa parcimônia. Tal aspecto nos lembra ainda do papel que assumem casas e famílias na literatura moderna hispano-americana — um estandarte das aparências, dos fracassos e das complexidades que tornam cada elo singular.


A possibilidade de explorar espaços que, ainda hoje, se apoiam em um imaginário idílico, dissocia o realismo proposto pela autora de qualquer fantasia. Pai, mãe e filhos em questão poderiam ser qualquer um de nós. Ao ecoar cânones como Gabriel García Márquez, Isabel Allende e José Donoso, igualmente interessados em recriar eventos do seio familiar, Sara Mesa inclina-se a uma narrativa mais crua e atual. Em suas palavras, o entorno acaba sendo cinzento e sem brinquedos da moda, ao mesmo tempo em que se esquiva da crueldade absoluta.


Não resta dúvida de que a simples negativa de um segredo ou a incapacidade de contá-lo em sua totalidade desencadeia, haja vista o enredo, uma curiosidade excedente. As incursões que faz pela infância, apresentada com ternura, tornam perdoáveis as lacunas e o aparecimento repentino de parentes. São deslizes de desenvolvimento que, propositais ou não, fazem seus personagens parecerem mais atrelados a anedotas momentâneas do que aptos a escancarar seus pensamentos mais profundos.


Entre cenários, a linguagem se revela uma ferramenta de controle. Conforme avança, o livro se apresenta como um mosaico em que seus personagens passam por apuros semânticos ou são, por vezes, incapazes de se comunicar. Martina, a filha adotiva, é corrigida pelo pai e tem a privacidade de seus diários violada. Apenas acata suas tentativas de aproximação, de modo que o exercício de escrita, ora livre e refugiante, transforma-se em uma tarefa aniquiladora, feita à frente de todos.

 


Os filhos se mostram criaturas submetidas às vontades proselitistas dessa figura paterna, uma caricatura supostamente protetora da laicidade, do humanismo e das virtudes. Logo, seria oportuno que tal deturpação de ideais ecoasse a própria extrema direita, que se ocupa “do bem de todos”, mas falha em contradições rasas. É assim que do mesmo modo as palavras “Projeto” e “Instituição” ganham força em seu discurso, mergulhadas em um rigor que tenta inculcar nos pequenos um senso de coletividade questionável. São detalhes como este que garantem universalidade à obra de Mesa.


Na ausência de conclusões imediatas, restam as circunstâncias. São escolhas que, através de temas como educação, lealdade, machismo e emoções, nos levam à formação das próprias identidades. Como Mariana Enríquez, Samantha Schweblin e Fernanda Melchor, que escrevem sob a mira do horror, Sara Mesa não parece ceder à lógica de que para ter sucesso é necessário conceber personagens palatáveis. Ao contrário: em “A família”, os defeitos são abraçados, formando um ideário que permite brincar com as possibilidades da existência. Nesta casa, onde ironicamente não há segredos, a serenidade do cotidiano, descrita com leveza, pode ser também a mesma que mascara feridas.


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GUILHERME ARAUJO é jornalista e mestre em Literaturas Modernas pela UFMG

 

 ‘A Família’

‘A Família’

divulgação

 

 

Trecho de ‘A Família’

“Não era fácil seguir, com Pai olhando por cima de seu ombro.


(...)


– Como escrevo, então?


– Martina, Martina, isso cabe a você decidir.


Mas ela já tinha decidido: assim como havia escrito antes. Onde estava o erro? Riscou e tentou de novo. Com um único braseiro, todos nós nos aquecemos.


– Muito melhor. Mas cuidado. Agora você escreveu todos nós duas vezes, muito perto. Corrija.


Perigosamente, aquilo estava se tornando uma aula de redação. Era nisto que se convertera agora seu precioso diário, com todas aquelas páginas complicadas, profundas e aventureiras arrancadas, enfiadas no bolso interior da mochila porque não tivera coragem de comê-las.


– Hoje não estou inspirada. É melhor eu continuar jogando xadrez, pode ser?


– Inspirada, você diz? Não acredito em inspiração. – Tirou os óculos para olhá-la com mais intensidade.

– Acredito no trabalho.


(...)


Voltou ao caderno, foi rabiscando frases sem graça com a caneta preta de desenho técnico, banalidades que deviam estar muito corretas, pois Pai não a corrigiu mais e até lhe deu um beijo na cabeça congratulando-a. Muito bem,Martinita’.”

 


 

capa do livro "A FAMÍLIA"

capa do livro "A FAMÍLIA"

reprodução

 

“A FAMÍLIA”
• De Sara Mesa
• Tradução de Silvia Massimini Felix
• Autêntica Contemporânea
• 224 páginas
• R$ 74,90