Natalia Viana -  (crédito:  PABLO SABORIDO/DIVULGAÇÃO)

Natalia Viana

crédito: PABLO SABORIDO/DIVULGAÇÃO

Uma jovem entra em um carro desconhecido, rodeada de pessoas que nunca tinha visto na vida, em direção a um lugar que não fazia ideia de onde seria. Tudo isso para trabalhar com documentos secretos do governo dos Estados Unidos.

 

O enredo hollywoodiano parece ter saído de alguma sinopse de série de ação prestes a estrear nas plataformas de streaming, mas é real e foi vivido pela jornalista brasileira Natalia Viana, que depois se tornaria cofundadora e diretora executiva da Agência Pública.

 

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À época, a paulistana se dedicava a fazer reportagens sobre direitos humanos em português, inglês e espanhol para veículos alternativos no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa, quando recebeu um convite que mudaria para sempre a sua vida.

 

 

Essa história de jornalismo investigativo é contada por Natalia, vencedora de prêmios como Vladimir Herzog de Direitos Humanos, Comunique-se, Troféu Mulher Imprensa, Gabriel García Marquez e Ortega y Gasset, em seu mais novo livro, “O vazamento” (Fósforo). Ela relembra que, em 2010, “abandonou sua vida chata em São Paulo” e se mudou para a Amazônia com o objetivo de produzir reportagens sobre o que cientistas já classificavam como efeitos da “emergência climática”.

 

Porém, não imaginava que em Alter do Chão, o vilarejo paradisíaco localizado à beira do Rio Tapajós, no Pará, seria escolhida pelo WikiLeaks para participar de um projeto que provocaria o “maior rebuliço diplomático de todos os tempos”.


O WikiLeaks, que foi fundado em 2006 pelo matemático, ativista e hacker Julian Assange, “é fruto de valores da cultura cypherpunk e dos primeiros ativistas digitais”. A organização viria a ser mundialmente conhecida a partir de 2010 por divulgar cerca de 700 mil documentos confidenciais e militares dos Estados Unidos. Nascido na costa nordeste da Austrália, Assange foi diagnosticado por médicos britânicos com a síndrome de Asperger, um transtorno neurobiológico do espectro autista.

 

Algumas de suas características, como a própria autora destaca, se enquadram no perfil de Sheldon Cooper, um dos protagonistas da sitcom norte-americana “The Big Bang Theory”, ou seja, inteligência acima da média, afinidade à lógica e à matemática, obsessões e compulsões, falta de compreensão de códigos sociais, além de rituais e comportamentos repetitivos.


O australiano conseguiu “convocar” Natalia Viana com a valiosa ajuda de um amigo, o jornalista Gavin MacFadyen, nascido no Colorado, Estados Unidos, e falecido em 2016. Alto, de cabelos grisalhos desgrenhados e voz retumbante, Gavin havia sido chefe da brasileira no Centro de Jornalismo Investigativo em Londres.

 

Ele chegou a ficar hospedado na casa de Natalia, em São Paulo, quando veio ao Brasil para participar do congresso anual da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Foi com um telefonema em tom misterioso que Gavin conseguiu plantar a sementinha da curiosidade que convenceria Natalia a colocar seu projeto na Amazônia em stand-by e partir para a Europa. O veterano costumava dizer: “Natalia tem o coração no lugar certo”.

 


Quando a jornalista desfez as malas na Inglaterra, juntou-se ao grupo chefiado por Julian Assange, que fazia questão de destacar, como quem sublinha uma frase com um marca texto: “esses documentos valem mais que a minha vida”. Ela, então, constatou que havia embarcado em uma missão high-tech: os papeis, ou melhor, os ofícios digitalizados continham informações de valor histórico, pois demonstravam como era, na prática, a política externa de vários países, incluindo nomes e datas.

 

ativista australiano Julian Assange

O ativista australiano Julian Assange destacava aos colaboradores do WikiLeaks como Natalia Viana: "Esses documentos valem mais do que a minha vida"

WikiLeaks / AFP

 

Natalia passou várias noites sem dormir analisando as informações dos encontros entre representantes dos EUA com políticos, governantes, jornalistas, ativistas e “puxa-sacos de todo tipo”, que prometiam mundos e fundos por apoio norte-americano.


Criava-se ali, um novo modelo de jornalismo, onde profissionais de múltiplas origens integravam uma organização independente e atuavam como editores, diretores, relações públicas, assessoria de imprensa e estrategistas. Natalia Viana, então, apresenta no livro os detalhes de sua aventura: as parcerias com grandes jornais para publicação dos documentos, as dificuldades enfrentadas por estar longe de casa, a relação com colegas de WikiLeaks, as dúvidas, as certezas e os preconceitos que bateram à sua porta.

 

 

Naquele período, a jornalista parece ter vivido uma vida inteira, tantos foram os percalços e solavancos, tantas foram as alegrias e realizações. “Aquele ano me forjou como jornalista. Foi o meu batismo de sangue”, afirma.


Em paralelo, a autora reflete sobre as redes sociais e a lógica dos negócios digitais, controlados pelo oligopólio formado pelas “Big Five”: Google, Amazon, Apple, Facebook e Microsoft. De acordo com ela, essas “plataformas ditam as regras das trocas informativas” construindo uma “nova realidade mediada por algoritmos”.

 

Esse cenário, portanto, seria corrosivo para a democracia, já que pode gerar lucro, fragmentação e ódio. Com seu livro de memórias, a escritora reconstitui um momento de efervescência política e otimismo incendiário, quando a internet parecia abrir novas possibilidades na luta por um mundo melhor.

 

 

Entrevista com Natalia Viana

 

Natalia Viana sobre a experiência relatada no livro: "Me forjou como jornalista. Foi o meu batismo de sangue"

Natalia Viana sobre a experiência relatada no livro: "Me forjou como jornalista. Foi o meu batismo de sangue"

Pablo Saborido/divulgação



Julian Assange deixou a prisão, em Londres, no último dia 24 de junho. Você já falou com ele? Como você avalia o acordo que levou à soltura? Por quê?


Eu não falei com Julian, não falo com ele há muitos anos, e a notícia foi uma surpresa para mim também. Eu não sabia que estava havendo essa negociação. Acompanhei com muita atenção todo imbróglio jurídico e, até por conhecer bastante as acusações contra Julian Assange, o acordo no qual ele teve que admitir culpa pelo suposto crime de obter, transportar e transmitir documentos secretos americanos é um acordo abusivo.


Ele cria um precedente muito ruim para liberdade de expressão e coloca em risco jornalistas. É um final muito melancólico e triste para uma perseguição abusiva que ocorreu ao longode 13 anos. Demonstra que os Estados Unidos podem perseguir um jornalista que não é americano e que não cometeu nenhuma conduta dentro do solo americano. Nesse sentido é uma ampliação da jurisprudência americana que põe em risco todos os jornalistas internacionais que trabalham com documentos americanos.


Não acho que a culpa seja do Julian, ele estava em uma situação humanitária deplorável, de emergência, e esse foi o acordo ao qual se pôde chegar em uma situação que parecia que, para os Estados Unidos, o melhor era mantê-lo preso eternamente.

 


Seu livro fala de paixões: pelo jornalismo, por pessoas, pela justiça, por uma missão de vida. Como você gostaria que os leitores enxergassem essa história? Por quê?


Esse livro é uma mistura de livro-reportagem com memórias pessoais, acho que a pergunta provavelmente reverbera um pouco de quem eu sou e como eu escrevo. Eu sou uma pessoa apaixonada pelo Jornalismo, que é a minha profissão, e tenho ela como um norteador da minha vida, como um propósito mesmo. Acho que o Jornalismo existe para ajudar a contar a história e ajudar a melhorar o futuro.


Eu gostaria muito que ele fosse lido principalmente por jovens jornalistas ou estudantes de Jornalismo, e que permitisse o conhecimento de que, no momento em que o Jornalismo está sofrendo tantos ataques da crise financeira econômica, sofrendo uma redução da sua reputação por conta da revolução digital, é que dá para fazer jornalismo com qualidade, com ética, com impacto e com reconhecimento de várias maneiras.


A minha trajetória mostra que dá para fazer jornalismo investigativo de qualidade fora das redações e ter uma carreira reconhecida, premiada e de impacto. Então eu gostaria muito que inspirasse novos jornalistas, em especial no Brasil.


Ao revisitar as memórias desse projeto com o WikiLeaks você afirma: “também me estranhei, desconfiei de todo o otimismo, questionei muito mais”. O que provocou essa mistura de sentimentos? Por quê?


Eu acho que o que provocou essa mistura de sentimentos foi o tempo que passou entre os fatos narrados, 2010 e 2011, e o ano em que eu fui reescrevê-los, 10 anos depois. Acho que é natural, principalmente para quem escreve, você se reconhecer no texto, mas também se estranhar, né? Porque o texto é um registro momentâneo de um estado de espírito.


Mas eu também acho que esse estranhamento vem de uma reflexãoa posteriorie de um aprofundamento de pesquisas que eu tenho tido, principalmente nos últimos três anos, a respeito do impacto da tecnologia na democracia e de como a plataformização da internet e o oligopólio das Big Techs têm sido nefastos para a proteção da democracia no mundo e corroído o tecido social.


Olhar para um momento de muito otimismo em relação à internet traz necessariamente um estranhamento, mas não é ruim, é uma redescoberta positiva porque, embora a internet hoje esteja funcionando sem regras e de uma maneira muito ruim, nada garante que ela precise ser assim, né? Acho que a reflexão é: como a gente volta até aquele espírito otimista daquele tempo. Como voltar a enxergar a tecnologia como uma ferramenta a serviço da humanidade e da democracia, e não contra a democracia.


Por outro lado, você ressalta que colaborar com o WikiLeaks foi seu “batismo de sangue”, pois o trabalho lhe forjou como jornalista. O que contribuiu para isso?


Sobre ser o meu batismo de sangue, eu já tinha feito várias coberturas complexas e perigosas e que me marcaram, mas o projeto do WikiLeaks foi um marco na história do jornalismo. A quantidade de pressão envolvida nesse projeto contra mim, mas, principalmente contra o pessoal do WikiLeaks, foi enorme. Manter uma serenidade no trabalho era difícil no momento em que você tinha, por um lado, ameaças explícitas do governo da maior potência mundial, e do outro todos os jornalistas querendo ter esses documentos.


Eu sem receber nenhum dinheiro, tentando fazer um trabalho sério e, ao mesmo tempo, tentando aproveitar o momento para fazer testes sobre como fazer jornalismo, como fazer a coordenação de um projeto desse tamanho de maneira independente, foi um momento de muito aprendizado e não só em termos do fazer jornalístico e das técnicas de tratamento, cuidado e como você lida com vazamentos massivos de informação, com grandes bases de dados secretas, mas também a respeito de como a tecnologia pode ser muito revolucionária.


Como é estar à frente da Agência Pública? Quais são os principais desafios, as dificuldades mais recorrentes? O que vêm por aí?


Nós temos 40 colaboradores no total e somos o maior veículo sem fins de lucro do país. Temos repórteres de diferentes níveis de experiência, inclusive grandes repórteres premiados. Somos a agência de notícias mais premiada do país, ou seja, a gente conseguiu desenvolver, ao longo desses 13 anos, uma reputação e uma trajetória premiada e de impacto que permite que a gente possa focar em fazer jornalismo investigativo com muita qualidade e através de muitas parcerias.


Mas sempre tem coisa vindo por aí. E como nós somos jornalistas investigativos, a gente não costuma adiantar muito o que está investigando, mas o que eu posso dizer é que a gente está fazendo alguns podcasts de muito impacto e que devem sair em breve. Um deles a gente fez através de crowdfunding, financiamento coletivo, que é o podcast sobre a história do Samuel Klein, fundador das Casas Bahia, que é acusado de ter criado e promovido uma rede de exploração de meninas.


Temos grandes investigações também que vão vir esse ano. E, além disso, a gente vai fazer uma cobertura das eleições com foco nas questões climáticas. A gente viu o que aconteceu no Rio Grande do Sul: as nossas políticas públicas estão muito atrasadas em relação a se preparar para a emergência climática que já começou.

 

Se a jornalista Natalia Viana de hoje pudesse passar uma mensagem ou mesmo um conselho para a Natalia de 2010, qual seria? Por quê?


Eu acho que diria para ela ter mais confiança em si mesma e talvez armar uma estratégia de lançamento da Agência Pública e de defesa desse jornalismo mais ousada, com maior impacto, e com maior alcance. Mas eu acho que também diria para ela ficar tranquila, porque tudo iria dar certo.


Outra coisa que eu diria, obviamente depois de 13 anos observando a importância e a relevância que os podcasts têm atualmente, seria: grave tudo! Seria muito bom ter os registros sonoros daquela época ou até vídeos. Infelizmente não temos, está tudo na minha memória e, agora, apenas nesse livro, nesse registro escrito.

 

Capa do livro "O vazamento: memórias do ano em que o WikiLeaks chacoalhou o mundo"

Capa do livro "O vazamento: memórias do ano em que o WikiLeaks chacoalhou o mundo"

reprodução


“O vazamento: memórias do ano em que o WikiLeaks chacoalhou o mundo”
• De Natalia Viana
• Editora Fósforo
• 344 páginas
• R$ 89,90 (e-book R$ 62,90)