“– E qual a verdadeira aparência do Diabo? – perguntei em tom provocativo. Arimã me encarou por alguns segundos, como se quisesse perscrutar meu íntimo e entender o verdadeiro sentido da pergunta.
– Isso vai depender de você.
– De mim, por quê? – indaguei, curioso em ouvir sua resposta.
– Porque não deve procurar o Diabo fora de você mesmo. Ao seu redor, no outro. O mal está dentro de cada um, e cabe a você invocá-lo, Assim, ele pode se projetar de incontáveis maneiras: em uma linda mulher, como um elegante cavalheiro, na forma de um velho sábio, em formas não humanas, ou mesmo em ações, mas todas são projeções do Diabo que habita em cada um, projeção do mal endêmico ao ser humano.
Ora, a sua tão querida literatura já lhe mostrou isso várias vezes: o retrato que atormentava Dorian Gray, o monstruoso Mr. Hyde atemorizando seu duplo, o pacato Dr. Jekyll, e o que não dizer do ímpeto demoníaco que irrompe no peito de Ralkólnikov, levando-o ao assassinato e logo depois o abandonando, deixando-o órfão em seu arrependimento e necessidade de expiação”.
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Diálogo acima entre o protagonista e um misterioso homem que pode ser o demônio Mefistófeles ou apenas uma encenação dele é um dos muitos contidos em “À sombra de Fausto”, livro de estreia na ficção de Nelson Ricardo Reis, ex-professor de literatura e doutor em literatura comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com lançamento neste sábado (31), na Quixote Livraria, em Belo Horizonte.
É um livro para amantes de viagens, artes e literatura e para crentes ou descrentes em Deus e no Diabo. Candidato a melhor romance de 2024, “À sombra de Fausto” parte do mítico pacto medieval de um homem com o Diabo, consagrado no clássico poema “Fausto”, do polímata Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o maior poeta e escritor alemão.
Mescla um roteiro turístico na Europa recheado de histórias seculares e referências literárias, em meio a um instigante duelo teológico-filosófico entre um jovem escritor, que está escrevendo o seu primeiro livro, e o enigmático Arimã, que ao longo da narrativa assedia o protagonista e o intriga sobre sua identidade.
É apenas um agente literário ou o próprio Mefistófeles em pessoa? Uma dúvida que também fisga quem lê a obra. “A ambiguidade instaurada durante a narrativa e a dúvida que acompanha tanto o leitor quanto o protagonista sobre a identidade real de Arimã (“humana ou demoníaca”) foram os principais desafios da escrita desta obra”, revelou Nelson Ricardo ao Pensar.
Como se sabe, “Fausto”, de Goethe, é um extenso poema do início do século 19 que trata da aposta entre Deus e Mefistófeles, uma das encarnações do Diabo, pela alma do ambicioso sábio alemão Fausto. Em busca de conhecimento, ele aceita um pacto sinistro com Mefistófeles. Goethe se inspirou na lenda da cultura popular sobre o médico e alquimista Johann Georg Faust (1480-1540), que, insatisfeito com suas limitações humanas e buscando poderes ocultos, fez pacto com o demônio Mefistófeles, que desceu à Terra para tentá-lo.
Turismo histórico
Em 'À sombra de Fausto”, Nelson Ricardo Reis traz a lenda medieval para o século 21 a partir de uma viagem a passeio por cidades europeias. O livro é narrado em primeira pessoa pelo jovem escritor, que não tem o seu nome revelado – o que sugere que seja um alter ego do autor. Ele segue um roteiro turístico com a mulher, M., por Lisboa, Barcelona, Sevilha, Granada, Veneza, Florença e Roma. Independentemente do objetivo principal da obra – o pacto fáustico – o detalhamento feito pelo narrador-protagonista em cada cidade visitada se transforma em aulas de história e de artes sobre monumentos, museus, castelos, catedrais e espaços públicos, com o seu respectivo contexto de glórias e de guerras e outras tragédias. Dessa forma, “À sombra de Fausto” desperta a curiosidade de quem não conhece os lugares visitados, e mesmo de quem já conhece, porque pode relembrar viagens.
Mas esse roteiro turístico é apenas degustação, porque o que interessa mesmo ao autor é o embate entre o protagonista e o pretenso Mefistófeles e a eterna dúvida do ser humano desde sempre: Deus existe? O Diabo existe?. “À sombra de Fausto” traz novamente esse dilema universal para o homem contemporâneo, cada vez mais em busca de um sentido para a vida, de um caminho – no caso, pela luz ou pelas trevas – para transcender a imperfeição.
O jovem escritor e sua mulher fazem a viagem a passeio. Ele quer levar adiante o livro que começa a escrever, mas, de maneira fortuita, surge um estranho homem chamado Arimã, que passa a procurá-lo para um pacto. Esse sujeito misterioso se apresenta como “mecenas das artes” e promete alçar à fama o futuro livro do jovem escritor, desde que o Mal triunfe na obra.
Em cada cidade, a presença ou a sombra de Arimã o rodeia, de Lisboa ao Vaticano, como uma tentação implacável. A narrativa de “À sombra de Fausto” nesse jogo de assédio contém um excesso. É o caso de uma “viagem” do protagonista com mescalina que ele ingere na casa de uma amiga da amiga de sua mulher. É um elemento estranho à trama, destoa do contexto, parece uma onipresença diabólica forçada. Em seu delírio alucinógeno, o jovem escritor se encontra com um emissário de Arimã. Poderia ter sido mais interessante, talvez, mostrar a força dessa tentação de forma onírica. Seriam mais críveis tormentos em sonhos.
Lógico que não precisaria apelar para aberrações como Freddy Krueger, de “A hora do pesadelo”, no qual a criatura demoníaca não se limita a um ser monstruoso, é também assassina. Mesmo porque nada há de terror no Diabo moderno, nem espaço para exorcismo numa lenda tão sublime como o pacto fáustico que a obra de Nelson Ricardo Reis explora muito bem. Esse deslize alucinógeno, entretanto, não prejudica em nada a grande excelência de “À sombra de Fausto”.
O diabo com chifres
Surpreendido pela proposta de um pacto literário e pelas aparições de Arimã em cidades diferentes, o narrador-protagonista tem longos e sucessivos embates sobre religião, filosofia e literatura sobre o Diabo, desde o bíblico Livro de Jó, passando pelo chifrudo medieval até o novo Diabo contemporâneo.
Diz Arimã: “A Igreja criou uma espécie de pedagogia do medo, onde o Diabo servia como espantalho para aterrorizar aqueles que não seguiam à risca os ditames e as diretrizes cristãs. O Diabo, na verdade, serviu à igreja. Pobre Diabo, a igreja o transformou em um servo do cristianismo. Serviu como um instrumento de dominação ideológica, política e social. Aqueles que não seguissem suas doutrinas ou tentassem se rebelar contra as condições sociais e economicamente miseráveis em que viviam seriam mandados para o inferno e seriam torturados na ponta do tridente de Satanás”.
Arimã continua sua aula ao jovem escritor: “O Diabo é feio por fora porque a Igreja o considera feio por dentro e entre os deuses pagãos que serviram de, vamos dizer assim, modelos para o tinhoso (...), foi o deus Pã, o mais explorado como modelo para a figura que o Diabo assumiu a partir do século XII. Dele vieram os chifres, as características caprinas, como o casco fundido, além de outras. Isso tudo porque o pobre Pã era um deus associado ao sexo, à fertilidade, e a outros prazeres mundanos. Meu jovem, a igreja não criou o Diabo, mas criou sua imagem, e o homem a mudou através dos tempos.”
O diabo burguês
Arimã, ou o pretenso demônio, segue falando ao jovem professor sobre a trajetória do Diabo: “A partir do século XVI, com o surgimento do pensamento racionalista, do Renascimento, da Reforma e posteriormente com o pensamento iluminista, o Diabo sofre uma radical transformação, transmuta-se de mito religioso para mito literário. Satanás passa a ser Mefistófeles, um Diabo muito mais elegante, inteligente, erudito, sofisticado, ou seja, literário. A igreja não precisava mais do Diabo como um ser opressor e aterrorizante, na verdade, a sociedade não o engolia mais dessa forma. A igreja então incentivou essa metamorfose e ainda continuou contando com os seus serviços de espantalho, mas agora agindo de maneira mais sutil. (…) O Diabo foi sendo usado à revelia das ideologias dominantes do ocidente, mudando de rosto, corpo e simbologia. Com os românticos, por exemplo, o Diabo passou a significar liberdade, progresso e ciência. (…) De monstro e inimigo, ele passou a ser uma espécie de mascote do romantismo, que simbolizava então o progresso e a vida moderna. (…) O Diabo, a partir do século XVIII é um burguês, um respeitável cavalheiro burguês, de bengala, monóculo e ideologia condizente com os novos tempos. O Diabo burguês não é feio e atemorizante como o medieval, e sim livre pensador e arauto do liberalismo. Assim o recriou a intelligentsia burguesa. (…) O homem cria e recria o Diabo, cria e recria Deus, de acordo com os ventos ideológicos e estéticos do seu tempo”.
O jovem escritor, entretanto, contraria Arimã e o deixa indignado: “Isso é literatura. (…). O Diabo hoje não passa de um produto de marketing, um produto publicitário, encontrado em latas de refrigerante, sacos de biscoito, no cinema, nos jogos de vídeo, na literatura infantojuvenil, no carnaval e até em festas infantis. Ele não assusta mais ninguém, pelo contrário, o Diabo está na moda. Ele é um ótimo garoto-propaganda.”
Assim, com debates calorosos como este ao longo de toda a narrativa, Arimã e o protagonista sem nome vão caminhando para um gran finale, que se desenrola em pleno Vaticano, um desfecho inusitado que sai do embate das ideias e passa para o confronto físico. Quem vencerá essa batalha? O Fausto contemporâneo ou o pretenso Diabo?
“Grande sertão: Veredas”
Outro grande atrativo de “À sombra de Fausto” são as referências a clássicos como “Grande sertão: veredas”. Nelson Ricardo Reis destina muitas páginas de seu livro para reverenciar a obra-prima de João Guimarães Rosa, principalmente na figura de um personagem que analisa meticulosamente o drama de Riobaldo perante o Diabo. Admirador da obra do escritor mineiro, Georg, um alemão que foi professor de literatura alemã no Brasil, diz ao jovem professor durante uma viagem de trem entre Barcelona e Sevilha: “‘Em Grande sertão: veredas’ um dos temas abordados por Guimarães Rosa é o drama existencial. Riobaldo é uma espécie de Hamlet sertanejo. Ele carrega consigo uma das principais dúvidas e questionamentos que vêm acompanhamento o homem há milhares de anos e que teve no personagem de Shakespeare um dos seus representantes mais angustiados. O romance de Rosa inicia-se com Riobaldo, já envelhecido e aposentado de sua vida de jagunço, contando sua história para um senhor que o narrador faz questão de deixar bem claro, em várias passagens, ser um homem culto, da cidade, queo escuta pacientemente. (…) Durante toda a narrativa, Riobaldo se questiona e questiona seu interlocutor sobre a existência ou não do Diabo.(…) A todo momento, bem e mal são contrapostos no romance”.
Também surpreendido pelo amplo conhecimento do companheiro de viagem sobre a obra de Rosa, o jovem escritor diz ao interlocutor: “Riobaldo queria em troca, no seu pacto, que o demônio lhe apaziguasse a alma? Se era, nosso herói faustiano pecou pela ingenuidade, pois não é coisa do Diabo tranquilizar almas e sim roubá-las; melhor dizendo, negociá-las, tomá-las em acordos escusos. Ou ele pediu um corpo fechado, uma capacidade sobre-humana de guerrear e chefiar seu bando que o habilitava a vencer Hermógenes [uma encarnação do Diabo]?,” pergunta o protagonista.
O alemão responde: “Sim, sem dúvida? O senhor está certo, certíssimo, era exatamente isso que o jovem Riobaldo desejava? Força, coragem, energia e um corpo fechado, como o senhor disse, para vencer seu inimigo e vingar a morte de Joca Ramiro. E mais, oferecer essa vingança como prova de amora Diadorim.
Livros são como alimentos
Outra atração de “À sombra de Fausto” vem do livreiro Ernesto, que tem um sebo e ressalta ao narrador-protagonista a importância dos livros. Aqui vão alguns exemplos: “Os livros são como alimentos. Na verdade, o livro é o alimento da alma. Há aqueles que são ingeridos distraidamente, de maneira fortuita, simples tira-gostos. Entretanto, há aqueles que devem ser degustados com deleite, com as finas iguarias, diria até que merecem um preparo todo especial: vestimenta adequada, uma cadeira confortável e, para aqueles que apreciam, um fundo musical criando atmosfera, ou seja, tudo aquilo que permita saboreá-lo quase que com religiosidade. Há aqueles também que devem ser deglutidos com vagar, pois são alimentos pesados, de difícil digestão, e exigem do organismo vivo que o tem em mãos, o leitor, um tempo próprio para assimilá-los”.
Ernesto cita mais receita literárias: “Há livros que são extremamente saborosos, mas enjoativos e, devido a isso, devem ser consumidos esporadicamente, com alguns tipos de doces, por exemplo. Em compensação, há aqueles que não têm gosto algum, não agradam ao paladar, mas são extremamente nutritivos. (…) Há aqueles que você consome por compulsão e quando termina vem a frustração: excesso de carboidrato e excesso de proteína. (…) Há aqueles que não ‘descem’ e cujo prato deve ser largado no meio, por mais frustrante que isso possa aparecer a um gourmet literário. Há aqueles cujo gostinho só aparecem no final. Há também aqueles cujo gosto só é sentido tempos depois, devido à complexa elaboração dos seus temperos. (...) Os pratos são variados, os gostos diversos. Ler é empanturrar-se de vida.”
Com tantas referência filosóficas e teológicas, “À sombra de Fausto” entra para a lista de obras referenciais sobre o pacto fáustico – com o Diabo presencial ou apenas como sombra – além de “Grande sertão: veredas”, “Fausto”, “Doutor Fausto” (Thomas Mann), “Mephisto” (Klaus Mann), “A trágica história do Doutor Fausto” (Christopher Marlowe), “Crime e castigo” (Dostoiévski), “O retrato de Dorian Gray”, (Oscar Wilde), “O Mestre e Margarida” (Mikhail Bulgákov), “O advogado do Diabo” (Andrew Neiderman), “Macário” (Álvares de Azevedo), “O coronel e o lobisomem” (José Cândido de Carvalho) e seu desfecho apoteótico, enfim, incontáveis tentações diabólicas.
“À SOMBRA DE FAUSTO”
• Nelson Ricardo Reis
• Quixote+Do
• 320 páginas
• R$ 60,00
• Lançamento: Neste sábado (31/8), às 11h, na Livraria Quixote, rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, Belo Horizonte
Entrevista/ Nelson Ricardo Reis, professor e escritor
"A arte tem sido uma pedra no sapato das religiões"
Como surgiu a ideia do livro com a releitura de Mefistófeles numa viagem de turismo? É baseado em algum fato inspirador ou é tudo ficção? Veio do “Fausto”, de Goethe, mesmo ou de “Grande sertão: veredas”, cuja relação Riobaldo-Diabo é amplamente analisada em “À sombra de Fausto”?
A ideia da abordagem temática surgiu há mais de uma década. Eu sabia o que queria dizer e achava que devia fazer isso através de uma releitura do mito fáustico. Entretanto, me faltavam o ambiente da história, o cenário e um fio condutor. Como já falei em outras entrevistas, a viagem que realizei para a Europa anos atrás me serviu como uma espécie de coluna vertebral, para que nela eu pudesse apoiar a narrativa e desenvolver os temas que me eram caro e, claro, o fulcro central do livro, que é a proposta de um pretenso pacto faustiano.
Várias narrativas ficcionais do mito de Fausto me serviram como base e inspiração: “A trágica história do Doutor Fausto”, de Christopher Marlowe (o primeiro autor conhecido a ficcionalizar o mito), o “Fausto” de Goethe, o “Doutor Fausto”, de Thomas Mann, além de outros menos conhecidos, como a versão do mito escrita por Fernando Pessoa (inclusive daí o título do meu romance... na verdade escrevi meu livro à sombra de muitos faustos).
Outros livros que tratam do tema do Diabo e sua influência sobre o homem, mas não através do mito de Fausto, ancorado no pacto, também orbitam em torno do processo da escrita do livro e da história em si, como “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, e “O Mestre e Margarida”, de Mikhail Bulgákov.
O protagonista de “À sombra de Fausto” não tem nome. Ele seria um alter ego de Nelson Ricardo, que usa a metalinguagem (no caso, um livro dentro de outro) para criar um novo Fausto (um pacto solitário com o Diabo não pelo conhecimento, mas para publicar um livro) e assim fisgar e intrigar o leitor e o próprio protagonista sobre a verdadeira identidade – humana ou demoníaca – de Arimã, o misterioso homem que o assedia?
Sim, sem dúvida o personagem é um alter ego do autor, mas sem nunca perder sua autonomia e liberdade como uma personagem puramente ficcional. A questão da metalinguagem imbricada com a proposta de um possível pacto faustiano é o tema central do livro. A ambiguidade instaurada durante a narrativa e a dúvida que acompanha tanto o leitor quanto o protagonista sobre a identidade real de Arimã (“humana ou demoníaca”), foram os principais desafios da escrita desta obra.
Da mesma maneira que Arimã enreda o protagonista em uma espécie de jogo, o leitor também é levado ora a acreditar, ora a duvidar sobre a aura identitária que paira sobre Arimã. Mesmo que a frase final do livro sugira uma explicação definitiva, ou não, esta dúvida do leitor e do próprio protagonista, é algo inerente à estrutura da obra.
Como homem culto, por que o protagonista não questiona o estranho nome de Arimã como questiona sua identidade? A escolha do incomum nome Arimã parece não ser aleatória, é um deus maléfico – que corrompe humanos – do zoroastrismo, a antiga religião persa que trata também do eterno embate entre bem e mal e pode ter influenciado o lendário médico medieval alemão doutor Fausto e a criação de Mefistófeles. A escolha do nome Arimã seria também para aumentar a curiosidade do leitor sobre a identidade do homem misterioso?
A escolha do nome Arimã com certeza não foi aleatória; como você mesmo disse, Arimã, ou Ahriman, ou mesmo Angra Mainyu, é uma divindade do zoroastrismo, na maioria das vezes, mas nem sempre, associada ao mal, em contraposição a Mazda, por sua vez, quase sempre associado ao bem, nesta religião maniqueísta que lançou muito dos fundamentos dos dogmas do cristianismo. A escolha do nome teve realmente a intenção de fazer esta referência à figura do lendário Doutor Johann Georg Faust, o médico, alquimista e mago que viveu na Alemanha entre o final do século XV e a primeira metade do século XVI, e que deu origem ao mito.
Um dos objetivos é criar a curiosidade no leitor e fazer com que ele pesquise a origem do nome. Sobre o fato do protagonista não questionar o “estranho” nome, isso pode ser explicado pelo fato de, mesmo sendo uma pessoa culta, não é estranho o fato dele desconhecer os nomes das entidades de uma religião da antiga pérsia, além do fato que o próprio nome de Arimã tem várias grafias e quando apenas pronunciado, e não lido, pode passar por um simples nome árabe.
Ao longo da obra, o protagonista faz um instigante duelo de ideias teológicas e filosóficas com Arimã, mas vai se corrompendo e se transformando num homem mal que chega até a espancar a mulher, M, como visto na história da literatura, desde “Fausto”, Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Dorian Gray, Raskólnikov até Kevin Lomax e outros incontáveis personagens, com a presença do Diabo em “pessoa” ou apenas sugerida. Essa transformação confirma o pensamento de Jean-Jacques Rousseau (o ser humano nasce bom, a sociedade – o mal – é que o corrompe) e contraria o de Thomas Hobbes (o homem já nasce mal) e o próprio Arimã? O que o senhor pensa desse dualismo, está com Rousseau ou com Hobbes e Arimã?
A princípio estou do lado de Rousseau, apesar de algumas vezes nos deparamos com situações de tamanho horror, que chegamos a duvidar da bondade natural do ser humano; mas não tenho condições aqui, neste espaço, de me aprofundar em uma questão tão complexa, que envolve várias áreas da ciência, como a sociologia, a antropologia, a psicologia, além de outras periféricas.
Contudo, posso afirmar que sua leitura do livro está totalmente compatível com uma das minhas ideias principais, qual seja, de mostrar a degeneração e a corrupção da moral humana, influenciadas por algo, a princípio incompreensível para o protagonista, mas que vai aos poucos alterando sua personalidade e inclusive levando-a solapar alguns de seus mais caros valores. Além da cena em que o protagonista agride fisicamente M... há a forte cena de cunho sexual entre ele e Helena.
Para o senhor a literatura e outras artes são divinas e epifânicas, como dito nas páginas 21 e 43? Por outro lado, as artes são “maléficas” para a religião porque a confrontam e neste sentido podem ser libertadoras para o homem preso ao pecado inventado por uma Igreja opressora?
Essa é a visão de Arimã, pois ao se identificar com Mefistófeles, também vê uma divindade em si mesmo. Se o bem provém de um ser divino, seu contrário, o mal, também nasce de outro ser divino. A visão do protagonista não é esta, pois na mesma página 21 ele responde: “O autor não é um deus, e creio que a maioria deles, pelo menos os mais conscientes de sua função, não acredita nisso.
Um bom escritor de ficção sabe que seu trabalho consiste em criar mundos imaginários, seres ficcionais e situações hipotéticas, jamais deixando que o seu mundo idealizado tome parte ou interfira no mundo real. Também não vejo a arte como algo maléfico para as religiões; pois isso depende do momento e do lugar. A arte renascentista e a arte barroca tiveram como uma de suas funções fortalecer o cristianismo. Agora se olharmos para a modernidade: Picasso, Bacon, Gide, Salman Rushdie e tantos outros, a arte realmente tem sido uma pedra no sapato das religiões estabelecidas.
E o personagem Juan, que diabos tem a ver com a narrativa de “À sombra de Fausto” com o seu discurso machista? Ele irrita as mulheres do livro e as leitoras, mas tem a simpatia do protagonista.
O personagem Juan foi concebido exatamente com a função de ser execrável aos olhos do mundo moderno e do politicamente correto. O capítulo de Barcelona tem o objetivo de imprimir uma quebra na densidade do romance e criar um anticlímax para os capítulos finais. É uma parte da história que Arimã não aparece, mas sua influência se faz presente, inclusive na pretensa simpatia do protagonista em relação a uma pessoa espirituosa, mas abjeta em seus conceitos morais.
Qual o seu Diabo preferido em toda a literatura? Não vale Arimã (risos), se é que ele é mesmo o Diabo. E qual o seu livro similar preferido: “Fausto”, “O paraíso perdido”, “A divina comédia”, “O Mestre e Margarida”, “Grande sertão: veredas”...?
O diabo é um dos seres mais literários da história da humanidade, aparece em centenas e centenas de narrativas, de epopeias a contos, passando pelo teatro, romance, etc. Sua figura é extremamente rica para a exploração artística, e aqui agora falo de todas as manifestações da arte, da pintura ao cinema. Para escrever este romance passei quase dois anos quase que exclusivamente lendo livros que têm a figura do Diabo (independente de sua denominação: Capeta, Lúcifer, Arimã, Capiroto, Sete Peles, Mefistófeles e tantas outras) como personagem, dos clássicos: “O paraíso perdido”, “Fausto”, “Grande sertão: veredas”, “O Mestre e Margarida”, etc, até obras pouco conhecidas do leitor brasileiro, como “O Diabo coxo”, de Guevara, “O Diabo no corpo”, de Radiguet, além de dezenas de obras teóricas que tratam da figura do mal e suas representações.
Essas leituras serviram para compor um personagem, que apesar de se chamar Arimã, não se identifica em sua plenitude com a entidade do zoroastrismo, mas procura ser uma síntese representativa dessas manifestações, com, claro, uma ênfase maior no charme e na sedução da figura de Mefistófeles. Seria para mim quase impossível escolher um livro similar favorito, pois meu romance chama-se “À sombra de Fausto”, como já disse, por ser escrito à sombra de todos estes grandes livros que tratam do pacto fáustico, e um leitor atento encontrará dezenas de referências a estas obras. Mas o maior dentre os maiores é sem dúvida a versão de Goethe para o mito.