Orlando Margarido

Especial para o EM

 

Cinema e artes visuais mantém relacionamento antigo no contexto nacional, sobretudo na produção de filmes voltados a nomes consagrados e revisão da memória. Na mão inversa, não raro, artistas se valem do audiovisual como recurso em suas criações e mesmo realizam projetos cinematográficos que rompem os circuitos tradicionais de museus e galerias.

 

A colaboração encolhe, no entanto, quando se trata de câmeras voltadas à cena artística atual. Daí a oportunidade que o longa-metragem documental “Presença”, recém-lançado nos cinemas, propicia para refletir sobre conceitos e modos de abordagem a um universo habitualmente entendido como hermético.


Tanto mais porque o diretor capixaba Erly Vieira Jr. contempla no filme uma das modalidades de arte mais desafiadoras, ao eleger duas representantes e um terceiro com raízes ou formação no Espírito Santo dedicados à performance. Ao critério se somam a ascendência afro e o uso do corpo como expressão de Castiel Vitorino Brasileiro e Marcus Vinícius, ambos nascidos em Vitória, e a mineira ali radicada Rubiane Maia.

 

No formato, trechos das performances se revezam com depoimentos das duas artistas sobre suas inspirações e os preceitos das obras. Já as ideias de Marcus Vinícius surgem numa rápida entrevista dada na Argentina, onde morou, recuperada pelo filme. Sua morte precoce em 2012, na Turquia, ao retornar de um projeto na Mongólia, interrompeu uma carreira em ascensão internacional e um portfólio que conta com quase sessenta iniciativas, realizadas em 22 países.

 

Marcus Vinicius, Rubiane Maia e Castiel Vitorino no olhar de Erly Vieira Jr: a arte da performance

Lucas Sabino


Marcus Vinícius é sintético, porém, na definição do que o guiava. “Meu desejo como meu rastro”, aponta na entrevista. Muitas vezes nu, os trabalhos o expõem estático num pasto com bois ou com todo o corpo envolvido numa fita adesiva onde se lê ‘frágil’, caminhando pela orla de Ipanema. Por vezes buscava um espaço sem intenção a priori, a exemplo da visita a ruínas na Ilha da Pólvora, em Vitória.

 

Ali, em uso recorrente do fogo, ele acende um rastro de pólvora entre reentrâncias de paredes quebradas. Pelo caráter quase sempre efêmero, muitas vezes de experimento único, performances contam comumente com o registro em imagem para permanecer. É o que possibilita conhecer o legado de Marcus Vinícius em site organizado por Vieira Jr, também pesquisador e professor de Artes Visuais, e o de suas duas colegas.


No histórico da arte brasileira, não faltam precedentes nas ações performáticas. Flávio de Carvalho (1899-1973) foi marco, na metade dos anos 1950, ao passear pelo centro paulistano em traje criado por ele, com saia, meias arrastão e sandálias. A vertente se intensificou nos anos 1960 e 1970 com nomes como Hélio Oiticica (1937-1980) e seus famosos Parangolés, e Lygia Pape (1927-2004).

 

Ambos, inclusive, adotaram o audiovisual não apenas para registro, mas sim como parte integrante das obras. Em seu estudo da influência do cinema nas artes visuais, o teórico franco-belga Phillipe Dubois chamou esse movimento de “cinema de exposição”. Pape ainda iria além e realizaria diversos filmes nessas duas décadas.


Não por acaso, para ficar apenas em Oiticica, o criador multimídia seria merecedor de mais de uma revisão de trajetória pelo cinema, com destaque para “Hélio Oiticica” (2012), assinado por seu sobrinho César Oiticica Filho. O documentário une na montagem imagens de arquivo e áudios de entrevista para compor um quadro orgânico entre personalidade e obra, inevitável reconhecer, de grande apelo cinematográfico. Em outro exemplo recente, dispositivo similar foi utilizado pelo diretor Carlos Nader em “A Paixão de JL” (2015), em que gravações de José Leonilson (1957-1993) na forma de um diário íntimo servem a uma narração enquanto surgem suas pinturas e bordados.


O método funciona para nomes emblemáticos, com distância suficiente no tempo para reunir denso material e redimensionar seu valor, mas não seria aplicável para quem está em plena evolução de um modelo artístico. Por quebrar paradigmas quanto às formas clássicas da arte como pintura ou escultura, a performance tem sua exigência na compreensão e fruição, o que “Presença” leva em conta.

 

O trio capixaba ainda traz a singularidade de representação relativamente recente de um universo de raiz afro, nem tanto evidenciado por Marcus Vinícius para além do corpo, mas notório em menor ou maior grau no caso de Castiel Brasileiro e Rubiane Maia. Esta apresenta uma diversidade de recursos e conceitos que aludem à vontade do voo e importância de sentir os pés no chão. O conceito nasce de uma instalação de 2015 e resulta em um segundo projeto com andanças por monumentos e praias, dedicado ao respiro de seus ancestrais e à dor do racismo.

 

Marcus Vinicius, Rubiane Maia e Castiel Vitorino no olhar de Erly Vieira Jr: a arte da performance

Lucas Sabino


Reserva florestal e matriz africana


Diferentemente dos demais, Castiel Brasileiro vincula seu trabalho a uma origem específica, a Fonte Grande, região de morro da grande Vitória que abarca uma reserva florestal onde a família está há três gerações. A essa matriz se soma a africana para quem se apresenta também como psicóloga e macumbeira.

 

Suas referências valorizam a natureza, na qual a mata atlântica da vizinhança entra com força, a cultura Bantu dos ancestrais e incluem entidades espirituais como a calunga. Apela com frequência à dança, como na performance acompanhada pelo tambor do pai, em gênese evidente de culto do candomblé. Em uma inversão do conceito de Dubois, “Presença” oferece a chance de o cinema expor uma arte que se encaixa com perfeição à tela grande.

 

Orlando Margarido é jornalista e crítico de cinema

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