Fabrício Marques
Especial para o EM
O poeta Paulo Leminski (1944-1989) completaria 80 anos no próximo dia 24. A efeméride é marco oportuno para refletir sobre sua obra e seu legado. Nesse contexto, é muito bem-vindo o lançamento de “Quatro clics em Paulo Leminski” (ed. UFPR), de Rafael Fava Belúzio, desde já uma referência nos estudos sobre o poeta curitibano.
Fruto de uma tese de doutorado, o livro apresenta um autor hábil em tensionar o capricho acadêmico com o relaxo lírico, com doses de rigor, invenção e, quando necessário, humor. Ou, em outra via, o estudioso com verve ensaística permite-se escrever com a pena das normas técnicas e com a tinta da literatura.
O cerne do estudo está na identificação de pelo menos quatro estruturas, princípios ou procedimentos fundamentais, que Belúzio nomeia de sínteses, desenvolvidas na poética de Leminski e capazes de organizá-la: o zero, o breve, o par e a reunião do diverso. São os quatro cliques destacados no título do livro, um pouco ao modo do barulho da máquina fotográfica. Nessas quatro sínteses, condensa-se o essencial da lírica leminskiana.
Para chegar a esse resultado, o autor fez o balanço das abordagens das sínteses leminskianas pela crítica literária, percebendo então que a síntese se configura como pedra angular das elaborações artísticas do autor de “Catatau”, constituindo-se como tema recorrente na recepção crítica a Leminski.
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Um modo de exemplificar a presença das quatro sínteses nessa poética é analisar “contranarciso”, o poema de abertura do livro “Caprichos & Relaxos”. Isso porque o poema de abertura, sobretudo do Romantismo em diante, tornou-se um dos espaços em que o poeta apresenta de modo autoconsciente suas armas, sua visão de mundo, com a potência de expressar sua poética como um todo, e até mesmo revelar um núcleo nevrálgico a partir do qual o pensamento do poeta se estrutura.
O poema, na exegese de Belúzio, mostra como Leminski e seu “jeito mestiço” estão inseridos numa longa tradição do eu-lírico cindido, fragmentado. “Contranarciso” revisita a noção cristã de Deus trino, as variadas possibilidades do sujeito lírico se descontruir e reconstruir.
Tanto “contranarciso” quanto outros poemas analisados são poemas aparentemente “simples”, mas tentar lê-los evidencia a dificuldade que é lidar com as criações de Paulo Leminski, e apenas uma leitura aprofundada como a de Belúzio deixa ver os diversos sentidos que esses poemas têm.
Nesses e em outros ensaios do livro, o sarrafo mantém-se sempre alto. Belúzio maneja com segurança um arsenal teórico que inclui Roland Barthes, Gérard Genette, Isaiah Berlin, Eneida Maria de Souza, Thomas Sowell, para citar alguns. São examinadas outras obras de Leminski (romances, ensaios, biografias, quadrinhos), nas quais também as sínteses estão presentes, configurando-se mais do que uma característica de sua lírica, um núcleo fundamental de sua poética.
O livro pode ser lido como uma série de ensaios muito bem encadeados, feito cliques ou insights. Num deles, há a leitura de uma carta-poema de Leminski ao poeta Régis Bonvicino, em que o autor de “Distraídos venceremos” posiciona-se como comunista capitalista, americanizado. Emerge daí um Leminski complexo, de uma só vez “stalinista publicitário, parnasiano contracultural, capaz de exibir camisa Prada com estampa de Che Guevara”.
Em outro momento, Belúzio aproxima vida e obra do poeta, numa passagem quase epifânica, em que adentra surpreendentemente, em seu estudo, a narrativa de sua participação em uma oficina de haicai ministrada em Belo Horizonte pela poeta Alice Ruiz, que foi casada com Leminski. Nessa apreciação biográfica, constata-se, no plano existencial do poeta, que ele mal tem tempo para limpar o quintal da casa onde com a mulher e as filhas. Todo estímulo que recebe, ele retorna em poemas. Toda a sua atenção é voltada para a poesia, pois “a vida é curta – para mais de um sonho”.
Em síntese, “Quatro clics em Paulo Leminski” traz novos olhares para a sedutora poesia de Leminski, que um dia escreveu: “Raros olham para dentro, / já que dentro não tem nada. / Apenas um peso imenso, / a alma, esse conto de fada.”
Fabrício Marques é poeta e jornalista
Depoimento Rafael Fava Belúzio
Como conheci o poeta
“A primeira vez que vi Leminski foi no ensino médio, se não me engano. Na sala de aula, um poema apenas, um breve comentário sobre o autor e uma foto dele em preto e branco, tocando violão. Achei que o poeta tinha pernas de Abaporu. Depois, cursando Letras, conheci o Leminski enquadrado na Poesia Marginal. O mesmo escritorde antes, agora visto com Ana C., Cacaso e Chacal. Mas quando eu lidava com os versos, os textos estavam meio fora do enquadramento construído. Já no mestrado, enquanto pesquisava Álvares de Azevedo, li alguns livros do Leminski na biblioteca daUFMG. A fragmentação do sujeito lírico leminskiano me lembrava, de alguma forma, o sujeito lírico azevediano. Os dois poetas, unidos meio a esmo, acabaram ficando em silêncio comigo. Antes do doutorado, estudei e escrevi haicais, e então Leminski reapareceu e virou um gigante nada em vão. Lendo e relendo poemínimos, o autor fez enormes sentidos. Inclusive dialogando com Álvares de Azevedo, Bashô, Alice Ruiz, Goethe, Drummond, São Francisco de Assis, enfim, centenas. Durante pesquisas de doutorado e pós-doutorado, voltadas para o escritor, e na organização do livro “Quatro clics em Paulo Leminski”, fui conhecendo cada vez mais sempre o mesmo, embora vário, e cada vez mais tenho estranhamentos tocantes ao lidar com esse meu ex-conhecido. Um bom poeta leva anos.”
contranarciso
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
nnn
enfim,
nu,
como vim
>>>
Uma vida é curta
para mais de um sonho
“Quatro clics em Paulo Leminski”
• Rafael Fava Belúzio
• Editora UFPR
• 285 páginas
• R$ 100,00