Rafael Oliveira

 

Da justa divisão social às regras morais sazonais, da liberdade aos limites de uma disciplina inconteste, do equilíbrio entre a transmissão de amor e a imposição rígida do medo – Nicolau Maquiavel buscou explicar os conceitos de uma sociedade por lentes restritas. E muitas vezes conseguiu. No entanto, a ciência política diz muito, mas não esgota as respostas da humanidade.

 

De toda forma, houve quem tentasse e, em sua jornada, marcasse época e inspirasse Leonardo da Vinci, bem como preocupasse William Shakespeare. Claude Lefort (1924-2010), Professor de Filosofia política na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, cuja vida acadêmica se voltou a estudar as bases teóricas do totalitarismo e da democracia, analisou o homem que revolucionou “a arte da guerra” na transição entre os séculos 15 e 16 assumindo uma ambição jamais proposta dentro da ótica analítica padrão de Maquiavel.

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia

 

Muito além do conselheiro do príncipe, houve um ser que se utilizou da modulação de conflitos como um aspecto natural e estruturante da vida política corriqueira.

 




Quando condicionou soberania a equilibrar astúcia e traição, a manutenção do poder pelo usufruto da mentira e do homicídio, e questionou, no processo decisório, fatores como lealdade e compaixão, Nicolau Maquiavel colocou-se na prateleira dos que trafegam entre tempos históricos distintos; afinal, esta mesma receita é experimentada em diferentes espectros políticos, do hemisfério sul ao norte da Terra, e muito além de quando pincelou este raciocínio, na década de 1520, período em que o Brasil, por exemplo, vivia um processo exploratório pretérito ao que se tornaria a agressividade das tratativas coloniais que em 1532 se intensificariam.


Fato é que a polarização da humanidade não deixa de ter sido experimentada pela Florença do início do século 16, quando o protagonista desta resenha transitou entre a função de secretário político, diplomata, conselheiro, romancista, filósofo, historiador, poeta, músico, criador de exércitos e até mesmo exilado e prisioneiro.

 

O artista dos contornos intelectuais perfeitos em suas conexões, dentro de uma absoluta e implacável e agressiva imperfeição prática.

 

 

Em Florença, a solidez de uma república e a sede do poder da família Médici, forte e bem-sucedida em uma invasão no ano de 1513, levou o intelectual consultado por admiradores e seus contemporâneos mais temerários, a buscar a formação de um governo de posições conciliadoras, bem como justo e libertário. Não conseguiu implementar o que hoje se chama de “governo de coalizão”.

 

O homem que buscou a fórmula de gestões duradouras e eficientes passou para a História como pretensioso, mas tornou-se majoritariamente um guru pós-morte, e não um agente transformador em vida.


Maquiavel transitou entre a defesa do piedoso e do bondoso, concomitantes ao severo e cruel, como características que resultem em harmonia e paz. Quando os dias atuais colocam o acaso como fator de proteção em situações de distração, na brasilidade musical, o cientista italiano mostrava-se como ser obstinado pelo senso de oportunidade que, para ele, a fortuna real era a identificação de sortes e oportunidades, que por vezes são frequentes e, “em outros ventos”, há que se preparar para eventual temporada de obstáculos, na qual o poder de um governante deve ser irrestrito no aproveitamento do máximo que o autoritarismo pode invocar – e máximo não é metáfora: a morte para a prorrogação de domínios era uma exceção compreensível na lógica do intelectual.

 


No coração de suas obras, é possível identificar a inquebrável face do indivíduo como um corpo isolado da lógica de atuação dos governos e de um Estado. Enquanto chefe, Maquiavel considera perfeita a receita que una generosidade, justiça e benevolência. Entretanto, é claro sem abrir mão da imposição do temor. Desde que em nome da estabilidade e do bem-estar social, as ações de um governante possuem o que na contemporaneidade chamam de “moral flexível” e Maquiavel, inventor de tamanha licença poética, tipificava como moral “adaptável e/ou questionável”.

 

Ler Maquiavel torna-se procedimento importante para aqueles que desejam êxito em pleitos, sejam os candidatos ou seus marqueteiros

Divulgação



A moralidade individual, por sua vez, deve curvar-se em prol do coletivo e submeter-se à lógica das instituições e do modelo vigente de governança, na síntese do que escreveu e Claude Lefort destacou. Ou seja: Maquiavel trilhou uma rota que previa moralidade na vida do cidadão. Já na absorção das medidas políticas, é preciso tolerar o pragmático, o amoral e o impopular, se preciso for, pois estes – conduzidos como orquestras pelo gestor público – ao manter o controle efetivo do Estado, promoverá um ecossistema sustentável, ainda que no médio e longo prazo, naquilo que chamou de “natureza ideal do poder”.


Neste sentido, Lefort avalia: “Sem dúvida, ele (Maquiavel) julga, como o comum dos mortais, que há bons e maus príncipes, mas ele precisa estabelecer que o governante seja, legitimamente, o depositário do valor que encarna o Estado em sua própria existência (....). Ele dá a chave da ética maquiaveliana porque sua fórmula nos entrega a de todos os regimes, quer dizer, autoriza a reconhecer até nas formas aparentemente defeituosas do Estado o valor de sua existência; e porque, enfim, na transparência do bom regime, o social em seu ser tem o conhecimento de si”.

 


Em convergência com Nicolau Maquiavel, especialmente na leitura da inviabilidade da ausência de conflitos, Claude Lefort concebe a democracia como, mais do que um sistema político, um formato histórico brilhante por ser aquele em que os nichos sociais se comunicam politicamente sem a anulação dos elementos cruciais para a preservação das liberdades: a discórdia e o enfrentamento como combustíveis para o alcance de uma média crítica-interpretativa e, claro, democrática.


Logo, intelectual originário e estudioso do século 21 acreditam no poder do confronto para se chegar à harmonia, como na desavença de compassos que, ao final, se “auto-consertam” como um passe de mágica e reproduzem, de repente e para a surpresa de alguns, acertos rítmicos que dão inveja do tango argentino ao sapateado estadunidense.


É curioso pensar que, em 2024, ler Maquiavel torna-se procedimento importante para aqueles que desejam lograr êxito em pleitos, sejam os candidatos ou seus marqueteiros, ao time dos que precisam cumprir mandatos sustentáveis (mesmo que em fases turbulentas) e ao próprio cidadão que elege seus representantes, para entender as possíveis réguas de distinção dos competentes ou ineficazes, na “régua de Nicolau Maquiavel”, reduzindo as possibilidades de eventual equívoco nas urnas, uma vez que o teórico aponta os caminhos que se arriscam a projetar, inclusive, o certo e o errado.


O conjunto de sua obra consolida-se como um materialismo científico? A depender do “termômetro do empirismo” – ou seja, as balizas de determinado modelo de governança – é de fato mais assertivo que errático e, portanto, tangível dizer que Maquiavel traduziu uma época, ainda que por um ângulo particular, e produziu conhecimentos atemporais. Ele não respondeu tudo, mas quase. Ao menos na ciência política.

 

capa do livro "O TRABALHO DA OBRA MAQUIAVEL"

reprodução

 

“O TRABALHO DA OBRA MAQUIAVEL”
• Claude Lefort
• Tradução de Gabriel Pancera, Helton Adverse e José Luiz Ames
• Editoras Todavia e UFMG
• 800 páginas
• R$ 189,90

compartilhe