A epítome de um dos mais teatrais políticos da história brasileira completa exatas sete décadas neste sábado e traz de volta ao noticiário um homem que, como poucos, jogou com os desígnios da opinião pública, promoveu sua personalidade e estampou páginas de jornais. Em um 24 de agosto como hoje, mas em 1954, Getúlio Vargas saía da vida para entrar na história e seu trágico desfecho é tema destas páginas do Pensar, construída a partir das páginas do acervo do Estado de Minas e como foram retratados os 20 dias finais do mais longevo líder brasileiro desde a Proclamação da República.

 

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“Guerra fria, petróleo e política sindical e trabalhista foram exatamente as causas dos principais enfrentamentos políticos. Em torno desses três cavalos de batalha alinharam-se amigos e inimigos do presidente. À medida que a luta se aprofundava, polarizavam-se as posições. De um lado ficavam os nacionalistas, defensores do monopólio estatal do petróleo e de outros recursos básicos, como a energia elétrica, partidários do protecionismo industrial, da política trabalhista e da independência na política externa. Para esses, os inimigos eram entreguistas, pró-americanos, reacionários, golpistas. Do outro lado estavam os defensores da abertura do mercado ao capital externo, inclusive na área dos recursos naturais, os que condenavam a aproximação entre o governo e os sindicatos, os que queriam uma política externa de estreita cooperação com os Estados Unidos. Os oponentes eram por eles estigmatizados como comunistas, sindicalistas, demagogos e golpistas.”

 




O trecho acima, retirado de “Cidadania no Brasil: o longo caminho”, clássico do historiador José Murilo de Carvalho, sintetiza com precisão o momento vivido pelo país na década de 1950, inaugurada com o retorno de Getúlio Vargas à Presidência da República. O clima de guerra e os ecos dos confrontos nada frios causados pela polarização entre Estados Unidos e União Soviética dividiam as páginas dos jornais brasileiros com o clima de crescente tensão na política interna.


O período entre 5 e 24 de agosto de 1954, iniciado e finalizado com um disparo de arma de fogo, elevou à última potência a disputa política vivida no país. O início se dá com o atentado da Rua Tonelero, quando Carlos Lacerda foi alvo de um atentado a tiros que vitimou um militar da aeronáutica. O jornalista e político era o líder da oposição mais ferrenha a Vargas e a possível ligação dos responsáveis pelo crime com o então presidente deu o combustível perfeito para colocar o gaúcho nas cordas.

 

MAnchete sobre a morte de Getúlio Vargas

arquivo EM

 


As páginas deste Estado de Minas daquele mês registraram a repercussão do atentado e como Getúlio reagiu nas semanas seguintes. Integrante dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, a publicação mostrou como as Forças Armadas e o mundo político tornavam incontornável a permanência do presidente no poder em edições que se revezavam entre os conflitos internos e externos.

 

As capas ora trazem fotos impactantes da retirada de tropas francesas da Indochina, ora estampam reviravoltas do poder como a manchete “Dutra a favor de renúncia”, ressaltando o “pulo do barco” de um dos maiores aliados de Getúlio.


Para que as críticas e o foco no “período mais difícil da vida pública” de Vargas, conforme estampado na capa da edição de 10 de agosto do EM, se esmaecessem dando lugar a um tom de apoio era preciso que o presidente escrevesse, dramatizasse e encenasse um ato ainda mais impactante que o atentado sofrido por Lacerda. O tiro desferido contra o próprio peito somado a uma emotiva e grandiosa carta de despedida aos brasileiros foi mais que o suficiente.


Em entrevista ao Pensar após análise da cobertura jornalística do agosto de 1954, o doutor em História e pesquisador do Projeto República da UFMG, Bruno Viveiros, contextualizou o período do suicídio presidencial e avaliou os desdobramentos da morte inesperada.

 

O professor conta como Vargas usou de seu talento para manobrar comoções populares até (e com) seu último suspiro e protagonizou ato que deu cabo a uma das figuras mais influentes da história da política brasileira em um tiro que ecoa até os dias atuais.

 

Quando voltamos aos jornais publicados naquele mês de agosto de 1954, vemos que o noticiário se dividia entre temas relacionados à Guerra Fria e as notas locais evidenciando o clima no governo federal após o atentado a Carlos Lacerda. Como o contexto global influenciou neste período tão crucial da história brasileira?


A história de agosto de 1954 é famosíssima, virou livro de Rubem Fonseca e até minissérie na Globo, até porque são menos de 20 dias entre o atentado da Rua Tonelero até o suicídio. Mas é preciso voltar um pouco antes para entender o que foi aquele mês. Desde quando Vargas ganha a eleição lá em 1950 e assume o governo, ele tem um grande opositor de peso, à altura do próprio Getúlio Vargas que é o Carlos Lacerda. Ele era um “homem show” e um grande jornalista. Ele tinha o jornal dele, a TV Tupi, a Rádio Globo e era o líder da UDN.

 

Logo nas eleições, ele diz que Vargas não poderia ganhar; se ganhasse, não poderia tomar posse; e se tomasse posse, não poderia governar. Então, logo de início lá em 1950, Carlos Lacerda já tinha colocado as cartas na mesa. Nesse contexto, os Estados Unidos estão de olho no contexto internacional da Guerra Fria. Depois que acaba a Segunda Guerra em 1945, eles são a grande potência ocidental.

 

A Europa inteira está focada na Cortina de Ferro, na construção do muro de Berlim dividindo a Alemanha, mas os Estados Unidos estão muito preocupados porque na América do Sul há dois grandes líderes políticos com grande aceitação popular: Getúlio Vargas no Brasil, que volta ao governo e Juan Domingo Perón na Argentina. No contexto internacional, o fortalecimento de dois grandes líderes chamados na época de populistas iria colocar uma pedra no sapato dos Estados Unidos e em suas pretensões de influência aqui na América do Sul.

 

Os Estados Unidos estão de olho no mundo inteiro, no que está acontecendo na Indochina, no restante da Ásia, na movimentação militar dos blocos econômicos, na influência deles na Europa e na política de aproximação da União Soviética com o leste europeu. É uma aranha querendo construir sua teia e tomar conta ou saber pelo menos o que está acontecendo com tudo. No caso do Brasil especificamente, os Estados Unidos estão de olho na eleição de 1950. Aquela foi a eleição com o maior número de votantes até então.

 

 

Antes dela o Brasil foi governado por Eurico Gaspar Dutra, que não era relevante para os EUA, mas quando Getúlio volta ao poder abraçado pelas massas e ganhando uma eleição de lavada com um discurso populista e de propensão à independência diante dos Estados Unidos, gera uma preocupação. A partir de 1952 e 1953, o Brasil passa por várias crises de carestia, o povo vai às ruas em manifestações que chegam a reunir 300 mil pessoas. A resposta de Vargas é feita nessa linha da política nacionalista.

 

Ele cria a Petrobras em 53 para nacionalizar o petróleo, isso afeta o mercado internacional também. Em janeiro de 1954, após já ter aumentado o salário mínimo diante da pressão popular, ele reajusta mais uma vez e, agora, em 100%. Nesse momento a elite política, o exército e também o Carlos Lacerda enlouquecem. É feito um manifesto com 80 coronéis e tenentes com críticas e ameaças: se Vargas não tirar o pé do acelerador, haveria uma intervenção militar. Nisso, Carlos Lacerda está brigando com Samuel Wainer, fundador do Última Hora, único jornal que apoiava o Vargas naquele momento.

 

O jornalismo político era uma peça fundamental nesse xadrez porque o Samuel Wainer era outro líder político que usava a imprensa como arma. Os jornais daquela época botaram para ferver e a opinião pública estava balançada. Chega a haver até um pedido de impeachment em que o Vargas é acusado de tentar fazer uma aliança com o Perón para criar um bloco na América do Sul que seria uma ditadura Argentino-brasileira. O deputado Wilson Passos, da UDN, partido de Carlos Lacerda, entra com o requerimento dizendo que os dois líderes estavam tramando a união na surdina. Esse pedido vai à votação em junho e 211 deputados votaram contra o impeachment, 35 a favor e 40 ficaram em cima do muro.

 

Quando chega agosto, o caldo derrama de vez. Há pedidos de impeachment sendo criados, manifesto público de coronéis contra o presidente e quando sai a notícia na madrugada de que um militar da Aeronáutica foi assassinado em um atentado que mirava Carlos Lacerda, todo o país fica chocado. Nesse momento a oposição interna, a imprensa, Lacerda, as Forças Armadas e a elite ligada aos interesses americanos estavam com a faca e o queijo na mão. Do dia 5 até 24 de agosto, a Aeronáutica criou um IPM (Inquérito Policial Militar) para investigar o crime militar dentro da Aeronáutica e Getúlio até propõe que ele se afastaria enquanto o crime não tivesse solução.

 

 

A Aeronáutica ganha um apoio do Exército e da Marinha e não aceita nenhum tipo de afastamento. Eles querem a renúncia de Getúlio. Ele está sabendo que se não renunciar vai haver um golpe de estado. Neste contexto, o suicídio passa uma rasteira nessa movimentação. Ele realmente abre mão da vida e entra na história como diz na carta que vira um sucesso instantâneo e vira até marchinha de Carnaval. O circo pega fogo de vez e a gente só consegue entender esses 20 dias se voltarmos um pouco no tempo.


Qual era o clima do país antes e depois do suicídio? Como Getúlio manejava um governo populista e popular mesmo com uma cobertura negativa de parte massiva da imprensa?

 

Uma das reportagens do Estado de Minas na edição após o suicídio conta que o Juscelino Kubitschek dá uma volta de carro em Belo Horizonte antes de ir ao Rio de Janeiro para o enterro. É interessante, porque ele quer saber o clima e o que está acontecendo. Tem um quebra-pau generalizado, um vendedor ambulante morreu em BH no dia 25 por conta dos confrontos. Todo mundo ficou com medo porque o cenário era de caos absoluto.

 

Para se ter uma ideia, o Carlos Lacerda teve que se esconder na embaixada dos Estados Unidos, o povão descobriu que ele estava lá e foi para depredar o prédio. Lacerda fugiu de helicóptero e ficou escondido num navio na Baía de Guanabara enquanto o tumulto não passava. No Rio de Janeiro, eles queimaram bancas que vendiam o jornal da UDN. Viraram os automóveis d’O Globo de ponta cabeça. Em Porto Alegre, com o Brizola, houve confusão. Em Recife, começaram a tocar marcha fúnebre. E aqui em Minas Gerais, o JK primeiro viu como estava a situação de Belo Horizonte e depois pegou o avião e foi para o Rio de Janeiro para acompanhar o enterro do Vargas. Juscelino é um grande Herdeiro do próprio Getúlio, tanto é que ele vai ser eleito na eleição seguinte.

 

Além disso, pelas reportagens do Estado de Minas, é possível perceber até mesmo quem passou agosto inteiro batendo no Getúlio Vargas e no Samuel Wainer e em quem estava ao lado do do do governo muda um pouco a postura. Em um editorial do dia 26, o próprio Assis Chateaubriand fala sobre “a poesia em Getúlio Vargas”, ainda que ao mesmo tempo diga que era patética a maneira como ele queria conduzir as massas. Dentro do exército, principalmente dentro da Aeronáutica, o golpe contra o Getúlio já estava todo esquematizado, porque eles apostavam que o Getúlio não iria renunciar e isso ia forçar o exército a sair para as ruas.

 

Eles foram pegos no contrapé com o suicídio. O suicídio foi uma manobra política. O tiro aconteceu por volta de 8h30 e acontece uma grande tensão até a confirmação das informações. Quando se tem a certeza que não se trata de um boato, o povo vai para a rua. Esses órgãos de comunicação, os jornalistas que atacaram Vargas, tiveram que tirar o pé. O povo faz quebradeira, bota fogo. Assim que o avião que sai do Santos Dumont para levar o corpo até São Borja decola, a população que estava na porta do aeroporto se dirige à Aeronáutica, que fica ao lado, e acontece um quebra-quebra generalizado, por exemplo.

 

 


Getúlio chega a se licenciar antes do suicídio, mas o exército não aceitava que sua deposição se desse de qualquer outra forma que não uma renúncia. Como isso afetou sua decisão de autoextermínio?


Os dados foram lançados e Getúlio, com a resposta negativa do exército, se suicida. Asim ele interrompe a marcha em direção ao golpe militar naquele momento. A população na rua quebrando tudo faz com que os chefes militares recuassem, porque foi um momento de drama. Você vê as fotos das cenas das pessoas chorando, se debulhando em lágrimas com aqueles lenços encharcados pela morte do “pai dos pobres”. A carreira política do Getúlio Vargas foi sempre nesse clima.

 

A palavra que define isso é mesmo “drama”. O drama que foi criado com os discursos no estádio do Vasco da Gama, com os desfiles. Foi sempre um grande teatro de rua a política naquele momento. O drama está justamente aí. As pessoas indo às lágrimas, pegando pau em pedras para atirar, para quebrar o carro da Tribuna da Imprensa e do jornal O Globo. Lidar com esses ânimos, com essas paixões foi um grande talento do Vargas. Ele já tinha entrado pra história. Mas, com o suicídio, ele entra pra história chutando a porta. É comum ouvir que o suicídio de Vargas atrasou um Golpe de Estado no Brasil em dez anos.


Como foi essa década que separa a morte do presidente e a tomada do poder pelos militares em 1964?


Para se ter uma ideia esse tal Manifesto dos coronéis de 1954 tem como um dos signatários o Olympio Mourão Filho, que dez anos depois daria o pontapé inicial do golpe. Essa elite militar que, em 1964, colocou João Goulart para correr está se formando ao longo desse período todo. Castelo Branco, Golbery, Costa e Silva estão dentro dos quartéis. É uma história longa porque o exército brasileiro sempre teve aspirações políticas desde a guerra do Paraguai. Foi quando eles voltaram e a monarquia os escanteou gestando o golpe de 1889, com a Proclamação da República, um Golpe de Estado dentro dos quartéis.

 

O tenentismo nos anos 1920 também é um exemplo que mostra que essas pretensões existiam também à esquerda. Luiz Carlos Prestes era um tenente e a coluna Prestes é fruto dessa revolta tenentista. Ao longo dos anos 1930, o Getúlio Vargas colocou esse pessoal para correr, tanto o exército, como comunistas e integralistas, o Getúlio mandava e desmandava. Esse sentimento das Forças Armadas só voltou à tona com a guerra com a Segunda Guerra Mundial e os pracinhas indo para para a Itália lutar pela democracia.

 

Quando eles voltam, estão sob uma ditadura do próprio Vargas, que renuncia em 1945. Então, os militares estão sempre de olho no que vai acontecer. Em 1954 o Getúlio Vargas, dá um golpe de mestre e afasta qualquer possibilidade de um golpe militar naquele momento e assim ele segura a barra durante um bom tempo.Mas as tentativas não cessaram. Café Filho assume após o suicídio e governa tentando apaziguar os ânimos. Na eleição seguinte, João Goulart, que foi ministro do Trabalho de Vargas e estava na confusão do aumento de 100% do salário mínimo, era uma peça chave, assim como JK e Carlos Lacerda do outro lado.

 

 

Naquela época as candidaturas a vice e a presidente eram independentes e Jango se candidata a vice e vence com um número muito maior de votos que o Juscelino, que é eleito presidente. Com o resultado, os militares, a UDN e os alinhados com os Estados Unidos viram que quem ganhou foi um presidente alinhado com Getúlio Vargas e um vice-presidente que tinha sido seu ministro.

 

Ali já houve uma tentativa de golpe para que JK não assumisse, mas o general Lott segura o jogo democrático e garante a posse. Um outro Golpe de Estado foi barrado durante a posse de João Goulart quando Jânio Quadros renunciou. Em 1964 não teve jeito, mas foi uma gestação mesmo, com várias tentativas; idas e vindas para tentar um golpe no Brasil. Logicamente que com os Estados Unidos sempre de olho no que está acontecendo aqui.


De alguma forma podemos dizer que essa aura do Getúlio foi perdendo forças nos anos seguintes ao suicídio e isso permitiu o sucesso do golpe?


Eu acho que essa aura do Getúlio nunca acabou. Ele é o responsável pelo caráter nacionalista e personalista na política brasileira. Vamos pensar, Getúlio é o pai dos pobres; JK é o presidente Bossa Nova; João Goulart e o Brizola se colocavam como herdeiros direto do Getúlio Vargas.

 

Isso perdurou, Tancredo articulou a redemocratização então é "Tancredo já; o Collor era o caçador dos marajás; depois a gente tem o FHC com a alcunha de pai do plano real; depois vêm Lula e Bolsonaro e permanece essa visão de mundo em que uma única pessoa é o salvador da pátria. Uma andorinha só não faz verão, no Brasil a gente acha que um político vai ser capaz de sozinho solucionar todos os nossos problemas. Então há um paternalismo político muito grande que é fruto dessa aura do Getúlio Vargas.


Ele de certa forma inaugurou essa cultura na política brasileira?


Exatamente. Ele inaugura isso. Os presidentes da época da República Velha, do café com leite, não tinham esse apelo popular. A maioria dos brasileiros não sabia nem o nome dos presidentes, porque era uma esfera muito elitizada e distante da rua e do cotidiano. A partir de 45 e 50 é que as grandes massas são incluídas no jogo político e passam a ter um contato direto com essas questões.

 

Getúlio Vargas, já de 1930 a 1945, vai construindo essa imagem que vigora até hoje. Antes dele nenhum nome na política brasileira era tão próximo da população assim. Talvez só o Floriano Peixoto que era o Marechal de Ferro ou o Deodoro da Fonseca.

 

O único nome tão grande quando Getúlio se tornou após chegar ao poder foi Dom Pedro II, que era muito querido. Inclusive, quando ele foi deportado após o golpe da República, vários setores, inclusive da população negra, tentaram defender a permanência do Dom Pedro II aqui no Brasil. Mas os republicanos correm com ele na madrugada para deportar a família real e não ter esse tipo de possibilidade. Então, a figura do Getúlio Vargas é determinante.

 

Carlos Drummond de Andrade

José Medeiros/O Cruzeiro/EM/D.A Press

 

Em crônica publicada na edição de 26 de agosto do Estado de Minas, o itabirano Carlos Drummond de Andrade, já radicado na então capital brasileira, se esgueirou entre as dezenas de notícias com o clima de comoção e perplexidade dos brasileiros para escrever um texto mordaz e irônico em que brinca com o sucessor de Vargas, Café Filho, e a provinciana classe alta da Zona Sul do Rio de Janeiro.

 

Apelo ao vizinho


Carlos Drummond de Andrade

 

Rio, 25 (pelo telefone) - Na manhã de 24, não era apenas a feira livre que punha movimento e côr nas ruas finais de Copacabana. Havia grande agitação dos moradores que saíam de seus apartamentos e casas para conferenciar na calçada. Automóveis em número inusitado iam chegando junto a esse comício de pessoas do bairro, e lhe acrescentavam rostos não costumeiros de senadores, fotógrafos, altos dignitários civis e militares, além desses importantes anônimos, talvez os mais importantes de todos. Olhos e gestos convergiam para certo edifício na esquina da Av. Copacabana e Joaquim Nabuco, de onde devia sair o Messias.


O Messias era o nosso prezado vizinho Café Filho (foto), que pela madrugada se investia do mais alto mandato da República. Não fosse a notícia trágica, que logo depois circulou ensombrado o contentamento regional, este seria perfeito. Mesmo assim, os povos da Av. Atlântica, Av. Copacabana e das ruas Joaquim Nabuco, Raul Pompéia, Francisco Otaviano, Rainha Elizabeth e outras nações limítrofes revelavam nas fisionomias esse sentimento de orgulho muito legítimo, por haverem dado um dos seus homens à direção dos negócios do país. Sentimento que já iluminara, anos atrás, o rosto dos cidadãos da rua Gustavo Sampaio, no Leme, quando dali saiu para o governo o general Dutra. As ruas são comunidades sensíveis e consideram-se rincão natal de seus moradores, decorrido certo período de estágio probatório.


Não direi que toda essa efusão em torno da figura do sr. Café Filho tivesse caráter desinteressado. As moscas do carro do poder já lhes zumbiam em volta do domicílio, dispostas a acompanhar aquela viatura, pelo menos ladeira acima. Entre as caras risonhas, muitas havia que não apresentavam o singelo traço comum aos habitantes do posto 6, que é ainda e não sabemos por quanto tempo, o recanto de um pouquinho provinciano e pacato de Copacabana. Nosso barbeiro Braga e nosso farmacêutico Otávio, que exercem suas profissões no mesmo edifício de onde saiu o novo presidente, podem atestar que o bairro é sóbrio em suas expansões e não cultiva absolutamente o hábito do “puxa”.


Contudo, há interesse e interesse. E mesmo os vizinhos do dr. Café, que apenas se regozijaram pela ascensão desse co-paroquiano a um posto singular, já agora mais de sofrimento que de brilho, encerravam no peito uma ambição ardente que não será difícil identificar. É que esse trecho da zona sul se tornou seguramente e sem pretensão de destacar-se dos demais pontos do Distrito Federal, o mais afetado pela falta d’água, o mais esquecido, martirizado e angustiado de todos aqueles onde as banheiras há anos são depósito de uma triste água lamacenta e comprada e onde famílias inteiras passam a noite em vigília, à espera que as torneiras deixar cair um pingo d’água que não pinga.


Sem dúvida esperamos antes de tudo, que o presidente Café governe em termos de união nacional, promovendo a moralização dos costumes administrativos e tornando menos alarmante o caos financeiro e econômico. Mas o que pedimos ao vizinho Café, conhecedor do nosso drama cotidiano e local, é que nomeie um prefeito capaz de servir água no posto 6, ao menos 3 vezes por semana.


Não se abstenha de fazê-lo receando a censura de que esta é medida de sua conveniência individual. Beneficiando os vizinhos submeter-se-á em escala pequena a um teste de sua capacidade de beneficiar o povo em geral e daí partirá para maiores e mais espetaculares realizações. Petróleo, saneamento e baixa dos preços virão em seguida.


Do fundo da nossa sêca e do nosso abandono elevamos nossa esperança ao ilustre vizinho do edifício Mamoré.

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