Coxo, cujo, capiroto são alguns dos codinomes atribuídos pelo jagunço Riobaldo (Caio Blat, em interpretação magistral) à criatura com a qual ele acredita ter feito um pacto e que aparece no título da adaptação audiovisual de Bia Lessa para “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. “O diabo na rua no meio do redemunho” reúne os atores da impressionante montagem teatral assinada pela diretora. Só que eles não estão mais diante de uma plateia, mas da câmera do diretor de fotografia José Roberto Eliezer. “A linguagem cinematográfica proporciona a revelação da alma, dos poros, dos olhos e, nesse sentido, o cinema é bastante próximo do Rosa”, acredita Bia Lessa.

 

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Em narrativa não linear (“Essa boca minha tem ordem nenhuma”, avisa Riobaldo), a diretora faz os atores vagarem por um espaço vazio de fundo infinito e se desdobrarem para evocar árvores e animais do sertão descrito pelo autor. O resultado, novamente, fascina e atordoa. Porque, mesmo em outra linguagem, Bia Lessa continua a elevar a potência da prosa de Rosa. Reinventa a própria invenção. Sabe sublinhar o sublime. “O que é para ser: são as palavras”, como define Riobaldo. Leia, a seguir, a íntegra da entrevista de Bia Lessa ao Pensar.

 

"Acho espetacular o trabalho do Caio (Blat, que interpreta Riobaldo). Ele conhece a vida, tem coragem de experimentar a vida em toda a sua complexidade" Bia Lessa

reprodução

 

Você mergulhou no “Grande sertão” de Guimarães Rosa para uma exposição no Museu da Língua Portuguesa, para o espetáculo teatral e, agora, para uma adaptação audiovisual. Quais as diferenças entre esses mergulhos?


A diferença principal talvez seja a intimidade que fui estabelecendo com a obra. Silviano Santiago foi quem me fez entender esse processo. Com o tempo, fui ficando cada vez mais próxima do livro e por isso, com mais segurança do trabalho que fizemos calcado na obra. A nossa autoria foi ficando mais explicita. A exposição foi construída apenas com o texto, texto apresentado através de diferentes suportes, palavras escritas na terra, palavras bordadas em madeira, palavras escritas em tijolos – palavras que criavam imagens, mas sempre palavras.

 

No espetáculo teatral, as palavras foram para a boca dos personagens e se tornaram peças de um jogo onde movimento, corpo e cenografia estabeleciam um diálogo. No filme, abolimos o cenário, sobraram corpos, que vivem personagens, animais, vegetais e coisas – construímos um filme nos vazios. E talvez por essa razão a palavra volte a entrar não como legenda, mas como texto. O texto do Guimarães em diálogo com a cena construída por nós. Ambos com autonomia.

 




O que foi mais desafiador para estabelecer o diálogo da linguagem cinematográfica com a linguagem de Rosa?


A linguagem cinematográfica foi muito presente na criação do espetáculo teatral. Trabalhávamos com corte seco, os atores não entravam e saiam de cena; ora eram jagunços, ora viravam pássaros sem espaço para transformação. Uma mudança instantânea. A dificuldade na feitura do espetáculo era não trabalhar com imagens (“o sertão está dentro da gente”), construir o sertão de forma a evocá-lo e não a representá-lo. Levamos essa subjetividade de forma mais radical para o filme.

 

E a grande dificuldade era a partir dos parâmetros e dos meios de produção do cinema, uma produção mais industrial que artesanal – conseguirmos imprimir nossa “linguagem”. Utilizarmos todas as possibilidades técnicas que o cinema oferece sem descaracterizar a crueza que pretendíamos. Foi um trabalho bastante árduo e intenso, do ponto de vista das equipes, dos valores de produção, da montagem, da finalização. Ao mesmo tempo a linguagem cinematográfica proporciona a revelação da alma, dos poros, dos olhos e, nesse sentido, o cinema é bastante próximo do Rosa.

 


“Na extraordinária obra-prima "Grande sertão: veredas" há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar”, escreveu Antonio Candido no ensaio “O homem dos avessos”. Esse foi o seu ponto de partida? Confiança na liberdade de inventar? O que foi preciso para adquirir essa confiança?


Muito comovente essa pergunta. Quando me deparei com essa frase na crítica que o Eduardo Escorel fez do filme (na revista Piauí) quase caí para trás. Achei uma definição absolutamente assertiva. Uma precisão extraordinária. Acho que, se eu tivesse de posse desse raciocínio no início dos processos de trabalho, tanto da exposição, como do espetáculo e, agora, do filme eu teria sofrido menos.

 

Teria tido menos angústias. Mas eu sabia que diante dessa obra é necessário coragem. Talvez no filme, como diz Silviano, eu tenha podido, através da intimidade, ir mais fundo na invenção. Não de uma invenção original, mas de uma invenção no sentido de uma radicalização do já conhecido.

 

Luiza Lemmertz interpreta Diadorim: "As pessoas não tão sempre iguais, ainda não foram terminadas", LEMBRA BIA LESSA, CITANDO "GRANDE SERTÃO"

divulgação


Como foram as suas conversas com o diretor de fotografia José Roberto Eliezer? O que estabeleceram para a câmera e para os atores?


Como não tivemos um tempo grande de preparação, tínhamos que filmar numa determinada época, entre uma coisa e outra. As conversas eram diárias, e muitas vezes bastante ásperas. O Zé Bob (apelido do diretor de fotografia) trazia uma qualidade técnica comovente e, ao mesmo tempo, uma forma de trabalhar vinda de uma experiência de um estilo de cinema diferente do nosso. Acho que nossa luta (minha e dele) foi fundamental para esse filme ser o que é.

 

Agradeço a ele o acabamento, a qualidade da fotografia e ele me agradece os paradigmas que foi obrigado a quebrar durante as filmagens. Acredito e gosto demais das amizades que surgem dos trabalhos – são amizades sólidas, amizades que surgem de um desejo real de superação, de uma forma de estar no mundo, em relação ao discurso que se tem e a ação que se estabelece. Zé Bob se tornou um grande amigo.

 

Quanto aos atores, não tivemos uma preocupação com ‘interpretação teatral versus interpretação para a câmera’. Sempre tive problemas com essas palavras: interpretação, representação. Meu trabalho caminha na direção de um jogo cênico vivo e não de uma representação. Gosto de personalidades e não de intérpretes – não acredito em representação.

 

Nesse sentido os atores estavam preparados e ávidos pelas novas regras que o cinema propõe – eles continuavam sendo eles, mergulhados nas situações e linguagem propostas pelo Guimarães, e dialogando com a câmera, com os planos sequências, com os meios de produção. Eles estavam com uma intimidade muito grande com o texto, com minha forma de trabalhar e com o prazer de estar num espaço com outras regras.

 

 

Para você, o que é mais marcante no diálogo estabelecido entre Guimarães Rosa com a língua portuguesa?


Genial para mim é o conhecimento da linguagem do Brasil profundo e a liberdade de criação. A partir dessas ferramentas: conhecimento e liberdade, tocar na alma dos homens como nunca se viu.


O que significa o diabo – com seus diversos codinomes – para Riobaldo e para os outros personagens de “Grande sertão”? E o pacto?


“O diabo está dentro da gente. O diabo é e não é.”


Em determinado momento do filme, Riobaldo se questiona: “Quem é que eu sou?” Você teria uma resposta para a pergunta dele? E quem é Diadorim, na sua visão?


Respondo, novamente, através do próprio Rosa: “As pessoas não tão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Essa a verdade maior que a vida me ensinou.”

 

Luisa Arraes se desdobra em diferentes papéis na adaptação audiovisual da obra de Rosa

divulgação


Como definiria o trabalho de Caio Blat como Riobaldo? E como foi o envolvimento dele e de todo o elenco no filme depois de terem feito a peça?


Acho o trabalho do Caio espetacular, acho o Caio espetacular. Ele conhece a vida, tem coragem de experimentar a vida em toda a sua complexidade. Possui as ferramentas físicas, psíquicas e intelectuais, para mergulhar num trabalho como esse. O elenco foi formado a partir da diversidade, não atores, atores, pessoas de diferentes regiões, diferentes costumes e vivencias.

 

O trabalho sempre foi o de potencializar as diferenças. Nunca paramos de trabalhar, de ensaiar, de construir o espetáculo e depois o filme. Mesmo depois de estreado, ensaiávamos a cada apresentação. Temos todos a consciência de que “o homem não está terminado”. No filme não foi diferente. Agora no lançamento continuamos assim. Levamos o filme debaixo do braço, de canto a canto, continuando o trabalho.

 

 

Quais as suas passagens favoritas do livro? E a sua frase favorita de “Grande sertão”?


Isso muda de quando em quando, mas ando comovida com: “Fugi. Vim-me.” É de uma imensa sabedoria, fugir significar voltar para si. Passagens são muitas, mas morro sempre que leio a sequência da morte do Diadorim até o final do livro, o julgamento de Zé Bebelo, a morte da mãe, os amores todos e, principalmente, as dúvidas em forma de redemunho.


“O diabo na rua no meio do redemunho”


(Brasil, 2023, 127 minutos, de Bia Lessa, com Caio Blat, Luiza Lemmertz, Luisa Arraes, Leonardo Miggiorin)

 

• Em cartaz até o dia 4/09, às 19h30, no UNA Cine Belas Artes (Rua Gonçalves Dias, 1.581,
Belo Horizonte)

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