Vou lhe contar uma coisa certa de ser mulher: viver para nós exige coragem e não é pouca e fraca. Quando ela não aparece precisamos buscar,caçar,escavar e até dinamitar.Mesmo em poços que parecem sem fundos, sem formas e sentidos; mesmo quando a quedaatravessa em nós o punhal do real: lá está ela pronta para nos fazer viver. Quando de nada nos serve rezar pela travessia dos inúmeros desertos que não escolhemos, ela sempre está lá.”

 

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Eis um trecho de “O avesso da costura – ou uma travessia”, de Cibele Oliveira. O livro da editora Patuá ganha lançamento neste sábado, as 11h, no Memória Gráfica, no Mercado Novo. “Onde esta publicação vai dar, não sei e não me preocupo, só quero que voe e que alguns leitores e leitoras possam percorrer esta travessia comigo.

 

O que desejo mesmo é manter o contato vívido com tantas palavras que habitam em mim e que me compõe e nomeiam”, afirma a psicóloga e cantoterapeuta, em sua estreia na literatura. “Um acumular de tantas palavras já vividas, escritas, escutadas, ensinadas, trocadas com muitas mulheres através destes dois ofícios que escolhi exercer, e agora o terceiro: de ‘escritora’. Ainda não me nomeio assim, prefiro o ato de ‘escrevivência’, como ensina Conceição Evaristo”, define. Leia, a seguir, entrevista com a autora, nascida em Bom Despacho e admiradora de Clarice Lispector.

 




Como nasce “O avesso da costura”?


Mesmo escrevendo desde menina, ousar publicar “O avesso da costura – ou uma travessia”, foi uma espécie de jorro, catarse, ou quem sabe uma associação livre de palavras e sensações que me acompanharam durante toda minha vida e se sintetizaram agora para formar e compor este texto. Este livro nasceu de dois outros que escrevi e não publiquei, um chamado “A travessia” e outro “Poesias vistas da janela”, no momento da pandemia, no qual o que me salvou internamente foi o ato de escrever.

 

Há quatro meses, fui tomada pelo “desatino” de escrever sem parar, em todo intervalo que tinha e fui construindo este livro, de partes do que já havia sido escrito misturadas com outras que brotavam incessantemente. Esta escrita foi como um deslizar ora pelo feminino deste meu corpo texto ora pelo feminismo, mas foi também como uma flecha que apontou para algo tão misterioso quanto corajoso que é o desvendar – ou o devir – de tornar-se mulher. A mulher que sou agora, narrada através de personagens fictícias e ao mesmo tempo tão reais, que me compõe agora.

 


Qual é a travessia apontada no título e realizada com o livro?


Sempre tive um contato íntimo com a palavra também por ser psicóloga (e estudiosa da psicanálise), cantora, professora de canto e cantoterapeuta, há mais de trinta anos. Todo meu trabalho e também maravilhamento na vida, tanto como como mulher e mãe, tanto como profissional da arte e da psicologia, revelam um caminho que percorri e auxiliei centenas de mulheres a realizar esta busca e encontros consigo mesmas.

 

São muitas mulheres e palavras que habitam em mim e que me compõe e nomeiam, é um acumular de muitas já vividas, escritas, escutadas, ensinadas, trocadas. Este livro foi mais uma (e das mais importantes) travessias que realizei, como mulher, pois como nos ensinou Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se mulher” e “nenhum destino biológico, psíquico ou econômico define a forma que a mulher ou a fêmea humana assume no seio da sociedade”. Nós, mulheres, neste mundo estruturalmente patriarcal, estaremos sempre em uma espécie de travessia, pois nada para nós está posto ou pronto.

 


Como foi “ousar escrever algo tão íntimo”?


Foi exercer a coragem. Quando terminei o texto e mandei para três pessoas, um que respeito muito literariamente, que é o poeta e editor Mário Alex Rosa, todos disseram: “publica”. Eu relutei muito internamente com esta ideia. Encaminhei para a Editora Patuá e mais duas e nas três o livro foi aprovado e escolhi a Patuá para a estreia. Fiz tudo tão timidamente, pois eu ainda não decifrei o porquê de ter ousado publicar (talvez o tempo “rei” dirá). Escrevo desde criança e mostro para pouquíssimas pessoas.

 

Mas, fui levada por um vento ou uma intuição – ou sei lá que nome que se dê – e decidi abrir esta travessia, e, publicado está! Escrever para mim é um cortar-se e remendar-se (ou vice-versa), algo inominável, apesar do tecimento de tantas palavras. É um ato, uma atitude de entrega de si. Um assombramento. Um encantamento. Um aguaceiro. Um precipício. Um embelezamento. Mas, sempre, um risco. Desejo, no meu íntimo, apenas que a cada dia mais eu realize apenas o ato da escrita, pois sempre farei disto – da arte – minha vida. Este é e sempre foi o meu viver. É disto que se trata. Este livro é sobre isto: a arte como instrumento de sensibilização da nossa “humanidade”.


Clarice Lispector está na epígrafe e, no livro, no desejo de ter na estante os livros da escritora em “um lugar bem alto e destacado”. Como a leitura de Clarice atravessa a sua vida? Quais os livros mais marcantes da escritora?


Como eu escrevo no livro: quando li Clarice pela primeira vez, eu era uma jovem estudante de psicologia e canto e foi um misto de susto e encantamento. Eu nunca tinha visto alguém colocar as palavras daquela forma. Ela para mim é deslumbrantemente uma escritora – a maior – do psiquismo feminino, nunca houve nem haverá alguém que construiu este tipo de linguagem. Eu leio Clarice e é como se eu tivesse também escrito o que leio ou como se eu fosse as suas personagens também.

 

Crio com ela uma intimidade na leitura como com nenhuma outra, através dos seus fluxos do consciente e inconsciente, sua fragmentação narrativa, suas metáforas surpreendentes, enfim sua abordagem linguística totalmente singular; o que me transporta para uma experiência literária muito profunda e subjetiva. Para mim os mais marcantes, sem dúvida, são: “A paixão segundo G.H.”, “Uma aprendizagem ou o Livro dos prazeres” e “Todos os contos” para mim tem um sabor especial. E sim, um dia, quem sabe bem velha, terei lido e terei todos os livros dela num lugar bem destacado da minha estante.

 


Como a música se diz presente nas suas palavras?


Comecei a perceber a música e o canto/a poesia dentro dela, aos quatro anos de idade, na cidade em que nasci, no interior de Minas (Bom Despacho), com seus congados, folias de Reis, procissões, missas, marchinhas de carnaval, cirandas, quadrilhas. Sempre observei as letras, o ritmo que elas tinham, a métrica, o compasso, a narrativa da linguagem revelada ali. Mesmo sem saber o conceito destas coisas, era algo meu, uma curiosidade de menina, um saber prático que eu trazia e ia apreendendo. Comecei a tocar violão com sete anos e nunca mais deixei de levá-lo nas rodas e festas com amigos.

 

Sempre tive um contato íntimo com a palavra também por ter me tornado psicóloga (e estudiosa da psicanálise), cantora, professora de canto e cantoterapeuta, há mais de trinta anos. Tudo em mim revela um caminho que percorri com as sonoridades e vibração das palavras. Como escreveu tão bem o poeta Mário Alex Rosa na orelha do livro: “A sonoridade está encorpada no seu modo de viver e ver o mundo da autora. Se pode dizer que a música vem regendo a sua vida desde menina. No entanto, se a música é intensa em Cibele, não será menos no seu interesse pelas palavras, pelo som das palavras, pelo ritmo de uma frase, de uma oração.

 

Num fluxo contínuo acompanhamos uma narradora que precisa falar e precisa transformar seus silêncios em falas escritas.” No meu texto existe o ritmo, o fora do ritmo, o silêncio e o som, as frases que compõe uma melodia ora tão métrica, ora tão caótica, pois tudo é caos e é também harmonia. E como canta nosso eterno Bituca (que também está no meu livro): “de tudo se faz canção.” Na minha vida foi assim, e este livro não se fez diferente.


Trecho


De “O avesso da costura – uma travessia”


Será tudo o que eu disse, um sonho? Escrevo para não morrer da realidade? Esta é a mais pura verdade:sem a arte — em vida — eu me mataria. Vou construindo uma velha em mim, com suas danças, cantos, trens de ferro, procissões, praças e cirandas. Dali deste lugar, enxergo o mundo todo. Boa coisa esta, a de fazer esperançar. Quando for bem velha quero ver minhas netas brincando no quintal de minha casa desabrochando sois e ter na estante todos os livros de Simone, bell, Cora, Adélia, Isabel, Matilde, Hilda, Lya, Guimarães, Fernando, Freud, Gabriel, Carlos, Mia e num lugar bem no alto, destacado e claro, os de Clarice.

 

Sei que posso nascer quantas vezes for necessário.Sou parteira de palavras, desejose rotas e reconstruo meus destinos.Escrevo sobre meu corpo todos os meus desvios e caminhos percorridos. Não quero morrer de novo e rio disto. Já debocho da dor sentIDA. Pedro era tão meu, mas eu o via de fora e sempre tive agonias com labirintos. Sou erupções de perguntas e caminhos. Minha alegria é ruidosa e escancarada, há décadas leio mulheres e sinto-me deslizante. Nesta vida pouco ou quase nada se explica.Quem sabe, um dia tomo também coragem de fazer voar meus escritos? (Serei eu mais uma a alimentar-me de palavras?).Fiquei de joelhos no chão quando Pedro se foi — e ele nem estava distraído. Se tenho arrependimentos?Sim, mas não revelo.

 


Capa do livro "O avesso da costura – ou uma travessia"

Reprodução

 

“O avesso da costura – ou uma travessia”
• Cibele Oliveira
• Editora Patuá
• 70 páginas
• R$ 50
• Lançamento neste sábado (31/8), às 11h, no Memória Gráfica (Mercado Novo, Rua Rio Grande do Sul, 499, Centro, Belo Horizonte)

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