A violenta formação de nosso país é revisitada e reimaginada em

A violenta formação de nosso país é revisitada e reimaginada em "Rio sangue", novo romance de Ronaldo Correia de Brito

crédito: reprodução

 

As raízes e as vísceras do Brasil estão expostas no novo romance de Ronaldo Correia de Brito. Em “Rio sangue”, o autor do premiado “Galileia” (vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura) e de outros livros igualmente marcantes como “Dora sem véu” e “Estive lá fora” volta ao passado para, com um bisturi afiado, dissecar as veias e artérias que irrigaram a desigualdade e a opressão na sociedade brasileira nos últimos séculos. O resultado é um romance ágil, forte, cortante. Uma faca só lâmina.

 

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Cearense radicado em Pernambuco, Correia de Brito explora a geografia e a história dos dois estados nordestinos na saga iniciada com a chegada de uma família de portugueses ao Recife no final do século 17. Mas o faz a partir da lembrança de um feminicídio, “história que me assombra desde a infância”, ocorrido na chegada dos criadores de gado e plantadores de algodão ao sertão dos Inhamuns, onde nasceu.


O deslocamento dos integrantes dessa família dos canaviais pernambucanos para a aridez sertaneja estabelece uma trajetória de conquistas e desmandos. A violência do contato dos colonizadores com escravizados e indígenas é narrada sem subterfúgios pelo autor, que também escancara as contradições e interesses de religiosos católicos para a manutenção da estrutura de poder do Brasil Colônia.


“Todo homem é sujeito às mazelas do demônio, a cobiça, avareza, raiva, malícia, vergonha, inveja e paixão”, narra Correia de Brito. “Muitos sentimentos movem os personagens de ‘Rio sangue’, os melhores e mais elevados, os piores e mais baixos”, acrescenta o autor ao Estado de Minas.

 


“O romance se passa entre 1690 e 1730. Mas pego personagens como Henry Koster (viajante inglês, que viveu no século 19) e fatos de cem anos adiante e os trago para trás. Como se trata de uma ficção e não de um romance histórico, faço esse passeio livre pela nossa história. Afinal, durante alguns séculos as coisas mudaram bem pouco no Brasil”, acredita Ronaldo Correia de Brito. Leia, a seguir, outras respostas da entrevista do autor ao caderno Pensar.

 

Ronaldo Correia de Brito sobre "Rio sangue": "É um acerto de contas comigo mesmo e com a história brasileira falsificada"

Ronaldo Correia de Brito sobre "Rio sangue": "É um acerto de contas comigo mesmo e com a história brasileira falsificada"

J.R.Duran/Divulgação

 

Qual o ponto de partida de “Rio sangue”?


A história que me assombra desde a infância, um feminicídio que inaugura a chegada dos criadores de gado e plantadores de algodão ao sertão dos Inhamuns, Ceará, lugar onde nasci. Narro que dois irmãos e uma irmã, nascidos no Norte de Portugal e estabelecidos com os pais num engenho de Pernambuco, abandonam os canaviais pelas terras sertanejas, onde se misturam aos muitos fazendeiros em conflito pela posse das terras indígenas.

 

José, o mais velho, foi ordenado padre contra a sua vontade e se indispõe com João, o mais novo, homem atrevido e violento. Esta oposição dá o tom à saga, entrelaçando gerações e etnias. Histórias e lendas confluem para uma linguagem em que se misturam os saberes dos povos originários, africanos e ibéricos.


O que difere o romance lançado agora de seus livros anteriores?


Li um ensaio de André de Souza Pinto, mestrando da UFMG, com o título “Um crime que se repete na obra de Ronaldo Correia de Brito”. Ele registra em meus contos e romances a obsessão em narrar o feminicídio brutal. Gabriel García Márquez relata que a mãe pediu-lhe para nunca escrever sobre um assassinato ocorrido em sua cidade, na Colômbia. Mas García Márquez desobedece e escreve a novela “Crônica de uma morte anunciada”.


Ninguém da minha família pediu algo parecido, porém nunca tive coragem de mergulhar a fundo na história do feminicídio que me impressionou. Sempre escrevi flashes, recortes e angulações.


Em “Rio sangue”, mergulho no passado que me assombra e me legou a herança de um crime que não cometi.


Para alcançar isso, encarei desmandos e crueldades de nossa colonização, horrores praticados em nome da Igreja Católica e da coroa portuguesa.


Qual foi o sentimento que o moveu durante a escrita?


O de um acerto de contas comigo mesmo e com a história brasileira falsificada. Os que detinham o poder da escrita assumiram narrar nossa história. Produziram um amontoado de mentiras, um entulho que precisamos vasculhar com cuidado para alcançarmos um mínimo de verdade.

 

Sabia pouco sobre a nossa formação, me ensinaram tudo errado nas escolas, fake news não são apenas de agora, são de sempre. Sofri nos quatro anos de escrita do romance, tinha sonhos e pesadelos, mas escapei melhor.


O que o levou a voltar ao passado e escrever um romance sobre um dos momentos decisivos da formação do povo brasileiro?


Contar uma história que interesse às pessoas do nosso tempo. Aprimorar meus conhecimentos sobre o país em que vivo. Fui psicanalisado durante dez anos e ao mesmo tempo fazia formação. A casa da terapeuta ficava em frente à do meu formador e, sempre que ele me via entrando para a seção de psicanálise, falava: “Está indo cavar, Ronaldo? Cave, cave”.


Quando se cava à procura de botijas, esperando encontrar ouro, pode-se achar caixas de sapatos velhos, ou potes cheios de merda. Depois de anos de psicanálise individual, precisei me situar dentro do meu passado histórico, saber até onde sou responsável pelo que acontece em torno de mim no presente e o que posso fazer com as minhas ferramentas de médico e escritor para mudar a realidade.


Escrevi “Rio sangue” desejando que os leitores, sobretudo os mais jovens, percebam o quanto fomos e somos enganados.


Ao final desse romance, você cita, nas notas, livros e escritos que foram citados ao longo da narrativa. Como estes livros o ajudaram a formular a narrativa de “Rio sangue”? Recorreu a outras fontes de pesquisa? Quando termina a pesquisa e começa a invenção?


É claro que ‘Rio sangue’ se trata de um romance, uma ficção. As notas se referem às lembranças que me invadiam durante a escrita, um conto de Miguel Torga ou de Poe, por exemplo, trechos da Bíblia e do Mahabharata... Mas há muita pesquisa no livro, eu não vivi entre 1680 e 1730 e tinha de recorrer aos registros da época. Quando uma família portuguesa chega ao porto do Recife, precisei estudar como se fazia uma atracagem, o que os viajantes avistavam ao se aproximarem da costa pernambucana, como se vestiam, como eram os prédios da vila.

 

Quando precisei de uma personagem para um enredo amoroso, encontrei-a numa tese universitária sobre uma prisão feminina da época, para moças que transgrediam normas de comportamento social. Os vários achados me davam as informações complementares à ficção ou serviam de ponto de partida para o enredo e tramas. Outro exemplo é o do viajante inglês Henry Coster, que eu transformo em personagem para se tornar mais fácil expor suas ideias colonialistas e escravagistas e as contradições do Reino Unido de onde ele veio.

 

O que transformou a Inglaterra de maior nação escravagista em repressora da escravidão não foram sentimentos humanitários, mas apenas interesses econômicos. Henry Coster expõe essas contradições. Mas no romance não respeito cronologias e fatos, personagens de um século à frente podem aparecer num tempo anterior, embora respeite características do romantismo, na valorização do historicismo.

 

“A vida não consiste numa única história”, lembra o narrador no início do romance. Em “Rio sangue”, temos diversas histórias, de diversos personagens, que vão sendo amalgamados em uma grande saga familiar. Como fez para juntar esses afluentes em um mesmo rio?


Confesso que foi a parte mais difícil, mas como sou treinado desde criança a ouvir e a narrar histórias, o que aprimorei escrevendo cartas para as pessoas iletradas e preenchendo prontuários de pacientes, ganhei habilidade nesse ofício. Vivi pelas cozinhas das casas, o reino das mulheres, onde se contavam as melhores histórias, muitas vezes interrompidas ou deixadas sem concluir. Frequentava as debulhas, lá as pessoas cantavam, liam e contavam histórias.

 

E tinha as conversas de alpendres, de terreiros, de roçados, que davam a impressão de que o mundo estava sendo recriado em palavras, inventado novamente por mulheres e homens. Antes mesmo de estudar as teorias de Walter Benjamin sobre a distensão e a apropriação dos escritos alheios, eu observava o jeito das pessoas narrarem, as divagações e confluências narrativas, as apropriações do que outros criaram e, sobretudo, a interseção de narrativas com a história principal. Uso esses conhecimentos no romance.

 

De repente, a história se parte e surge algo desproposital, aparecem outros narradores e narrativas, a história é interrompida e não conto o final. Abuso das distensões, sou bem shakespeareano. Todos lembram que no ‘Macbeth’, enquanto o rei Duncan é assassinado, um porteiro bêbado divaga sobre os falsos ganhos da embriaguez.

 


No livro, há um personagem que, protegido pela religião católica, comete uma série de desmandos e abusos, inclusive sexuais. E outro, da mesma religião, que, para aliviar a culpa e o sofrimento causado, lembra, em uma frase que ecoa nos dias de hoje: “A família acima de todos, Deus acima de tudo.” Como a religião aparece em “Rio sangue”?


A frase repetida por Jair Bolsonaro parece cunhada por ele, mas já existia antes, era também do catolicismo, religião que não tem mais prestígio nem poder, agora conquistados por evangélicos pentecostais e neopentecostais, por figuras como Malafaia e Edir Macedo. No romance, ela pode soar anacrônica, mas refere-se à truculência e à insaciável fome de riqueza e poder da Igreja de Roma. É impossível falar sobre a história do Brasil sem referir a Igreja Católica.

 

Enquanto Duarte Coelho bombardeava os caetés, de seus navios ancorados num braço de mar em Igarassu, frades e padres oravam e jogavam água benta para o alto, batizando os “infiéis” para eles não morrerem pagãos. No morro, onde antes moravam os indígenas assassinados, mandaram erguer uma igreja em louvor aos santos Cosme e Damião, pela vitória alcançada. Podemos ter complacência com essa Igreja associada ao Estado, no caso o reino de Portugal? Ela se manteve fraca e dúbia, com algumas exceções, em relação aos indígenas, e foi impiedosa com os africanos e seus descendentes.

 

Comove ver a cantora Maria Bethânia lendo sermões do padre Antônio Vieira, porém enquanto vejo e escuto, não esqueço o veredito de Vieira, justificando e validando a escravização dos africanos e exortando os escravizados a não serem rebeldes nem revoltosos, a aceitarem com paciência castigos e sofrimentos para se redimirem dos pecados.

 


Além dos colonizadores portugueses, o livro traz também como personagens os que foram subjugados por meio do dinheiro e da violência, como os escravizados e os indígenas. Como foi dar voz aos que não tinham direto à voz?


Em “Rio sangue” todos têm voz, todos falam, indígenas, negros e brancos. No Ceará, não houve grande escravização de africanos e seus descendentes, se compararmos a Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Os indígenas eram mais frequentemente escravizados. Bernardo Vieira de Melo e o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, depois de destruírem o Quilombo de Palmares, adentraram os sertões para combater os indígenas.

 

A orientação era poupar apenas as mulheres para servirem de esposas aos invasores. Como a região ficou por longo tempo fechada a influências externas, vozes e histórias se guardaram. Cresci ouvindo-as de meu pai, de tios de primeiro, segundo e terceiro grau, de vaqueiros, trabalhadores do campo, gente velha com memória do passado. Ao escrever o romance, as vozes ressurgiram, vivas como se eu as escutasse novamente. Tentei reproduzi-las da forma mais precisa.

 

 

“O tempo não tem a pressa da chuva escorrendo”, afirma o narrador. E qual é o tempo que resta ao romance em tempos de pressa como o que vivemos?


Sem épica não há sociedade possível porque não existe sociedade sem heróis em que se reconhecer, e a épica da sociedade moderna é o romance, li em Jacob Burckhardt. Nunca se escreveu nem foram publicados tantos romances como agora, embora haja tão poucos leitores. Me parece que já não são os romances que engendram os heróis, mas a cultura de massa, os shows, a internet e a televisão.

 

Pedro Bial chama os participantes do “Big brother” de os “heróis da casa” e tenta transformá-los em heróis do país. Vivi em sociedades narrativas, com pessoas que gostavam de ouvir e narrar histórias. Não faltava tempo para isso. Montaigne afirmou que contava, não ensinava. Porém na França em que ele viveu, numa entrevista à rádio France, me perguntaram se eu gostaria de criar narrativas a partir de conversas curtas de WhatsApp.


Quando me sentei para escrever “Rio sangue”, pensei justamente no contrário disso. E deixei que os personagens falassem à vontade, que enchessem o romance com as suas falas e histórias e fossem construindo o romance como se tivessem vontade superior à minha. Acredito que um homem normal é aquele capaz de contar sua própria história.

 


Você lembra, na abertura do livro, que 2024 marca os 40 anos de “Baile do Menino Deus”, 20 anos de “Faca” e 15 anos de “Galileia”. Poderia comentar o significado de cada uma dessas obras para a sua trajetória como escritor e dramaturgo?


Embora eu tenha trabalhado por quase um ano com o meu editor Marcelo Ferroni e a equipe da Alfaguara, considero o término de “Rio sangue” o dia 22 de agosto de 2023, quando enviei o nono tratamento para a editora. Menciono “Baile do Menino Deus”, escrito em parceria com Assis Lima, com música de Antonio Madureira, por se tratar de um grande êxito em minha carreira de dramaturgo.


“Faca” é um livro de contos editado pela CosacNaify, por Augusto Massi e Rodrigo Lacerda, com posfácio de Davi Arrigucci Jr., minha estreia para maior número de leitores, um livro que me abriu portas. Em “Galileia”, reinvento o sertão como um universo sem endereço certo, periferia de cidades grandes, e me inscrevo na galeria dos escritores que, cada um ao seu modo, criaram o imaginário de sertão.

 

Capa do Livro "Rio sangue"

Capa do Livro "Rio sangue"

reprodução

 

“Rio sangue”
• Ronaldo Correia de Brito
• Alfaguara
• 320 páginas
• R$ 89,90


Trecho de “Rio sangue”, de Ronaldo Correia de Brito

 

O sertão.


Mas o que é mesmo esse lugar?


Uma paragem referida como as terras de trás, bem depois de depois, onde o Cão perdeu as botas. No litoral, bastava olhar o oceano para refazer os vínculos com Portugal, seguir numa travessia longa e perigosa, mas ao fim... nem sabe se os avós continuam vivos, se a avó ainda canta romances. Certamente não.


Deseja o começo de outra vida, um esboço de sertanejo já se desenha nele, diferente do que era na infância portuguesa, na Mata de Pernambuco ou na Bahia litorânea. Gosta de ser homem encourado, mais do que padre com gestos aprendidos em anos de doutrinação. No seminário, o corpo deformou-se em maneiras de sacerdote e a memória repetiu credos sem juízo nem certeza.


– Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra.


Crê mesmo, com fé e convicção? Daria a vida por Jesus, como os mártires da Legenda áurea, que a mãe lê todos os dias?


– Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica.


Crê mesmo?


– Creio na ressurreição da carne.


Sim, desde que ela ressuscite para o gozo.