Sérgio Sant’Anna (1941-2020) e as ficções reunidas em

Sérgio Sant’Anna (1941-2020) e as ficções reunidas em "Breve história do espírito": livro de 1991 volta com nova capa e posfácio inédito

crédito: WALTER CRAVEIRO/DIVULGAçãO



Sérgio de Sá
Especial para o EM

 

Trinta e três anos depois do lançamento original, “Breve história do espírito” ganha uma mais do que bem-vinda nova edição. São três narrativas assinadas por Sérgio Sant'Anna, mestre da prosa de ficção, merecedor de todas as homenagens e todos os relançamentos. Não são breves contos se levarmos em conta o tamanho tradicional do gênero no Brasil. Apresentam histórias de três diferentes homens em distintas fases da vida. E dão de bandeja excepcional presente para o espírito.

 

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O posfácio inédito de José Geraldo Couto afirma que a obra “ocupa um lugar central, não só cronologicamente, mas porque aprofunda a reflexão in progress do autor sobre o estatuto da palavra, da linguagem verbal, em sua relação com o mundo”. Entre “A senhorita Simpson” (1989) e “O monstro” (1994), Sant’Anna tramou em 1991 outra tentativa de rasgar o verbo, ainda brilhante na leitura hoje.


O escritor carioca, que nos deixou aos 78 anos em maio de 2020, vítima da COVID-19, está em plena forma em “Breve história do espírito”. É espantoso perceber como a literatura é capaz de exibir a beleza de situações banais quando tomada pelo “demo” (sim, o demônio, aquele que tenta, apela aos nossos erros), invocado em pequeno texto litúrgico de dimensão histórico-poética, na abertura que antecede as três ficções.

 


No script anunciado como princípio, a alma se deixa levar pela língua portuguesa escrita pelo “contista de província”. Ele escuta suspiros poéticos e saudades, sente dores e amores, vai às minas históricas de Ouro Preto e do Brasil, percebe e encara noites, mesmo quando é dia. Religião, sexo, álcool, morte. Como e quando nossas vidinhas ordinárias podem se transformar em algo relevante? Para quem? Com quais sentidos?

 


Para cada história, pelo menos uma grande sacação, como bem poderia dizer (e não necessariamente escrever) o autor em conversa informal à mesa de um bar ou restaurante, em Laranjeiras, no Flamengo ou em Botafogo. A província metafísica sai do contista para encontrar um Rio de Janeiro cheio de malandragem real, onde é preciso sobreviver em meio ao caos interno e à balbúrdia externa, atravessada por discursos publicitários.

 


No conto que dá título ao livro, um jovem crítico literário desempregado participa de processo seletivo para ser redator de panfletos de uma igreja evangélica. Deve escrever uma redação que responda à pergunta: quem sou eu? O duelo com a página em branco começa por dispensar o clichê, envereda por digressão filosófica e termina no botequim da esquina, em companhia de outro concorrente à vaga, vendedor de lote em cemitério.


A segunda história é a já clássica e contundente “A aula”, de ressonância barthesiana. Da cama bêbada à sala de aula sóbria, o personagem, professor de comunicação, também é obrigado a filosofar, agora de posse de um simples ovo palindrômico e de uma página de revista com propaganda de uma marca de cigarro. Sim, as mitologias cotidianas encontram forma extraordinária na fronteira entre a ficção e o ensaio.


A última narrativa, “Adeus”, é a que mais confunde personagens-atores na cena da página. Um jurista de 50 anos decide reunir, no apartamento de um general da reserva, mulheres que passaram pela sua vida e dois amigos, além do próprio militar. Trata-se de uma despedida, não se sabe exatamente de quem e para quê. E o leitor precisa chegar ao fim para desvendar o enigma. Vale dizer que é um conto de sabor “clássico”, às vezes José de Alencar, às vezes Machado de Assis.

 


Em Sérgio Sant'Anna, podemos sempre pensar que a escrita se dá como "cena", "ato" ou mesmo "quadro", pendurado por letras, palavras, frases, parágrafos. Em primeira pessoa nas histórias que abrem e fecham o volume e em terceira na narrativa do meio, o narrador realiza uma decomposição fina e elegante dos elementos que montam o texto e sabem do seu prazer.


Nas mãos de escritor menos hábil, tudo poderia ir por água abaixo. Na literatura de Sant'Anna, o leitor está sempre seguro de que ler só é possível porque o ato se confunde com viver. O empirismo se dá no desenrolar de um texto que abraça o outro, em percurso tomado por absoluta autoconsciência. Ninguém engana ninguém. E todo mundo engana todo mundo, a serviço de uma verdade que dura o tempo da leitura.


A nova capa de “Breve história do espírito” traz foto em preto e branco de Ana Carolina Fernandes no lugar de um céu azul habitado por anjinhos e mulheres sedutoras da "embalagem" original. Na imagem atual, a onda quebra nas pedras do litoral de um mar carioca. O que acontece a todo instante é, assim, vislumbrado por dentro de suas espumas agora estáticas. Ganha contornos poéticos. O ser humano não pode ser visto, mas está ali dentro, no verbo oceânico do autor – entre o raso e o profundo da linguagem.


Para mergulhar nessa prosa espetacular, basta aceitar o convite que o autor contemporâneo e cosmopolita faz, em busca da “expressão perfeita de algo indizível, um saber e um conhecimento que se colocarão sempre além, para fora do nosso alcance, porque talvez não sejam mais do que a comunhão perfeita com aquele indiferenciado de onde viemos e para o qual retornaremos”.

 


Primeiro, lemos este livro de Sérgio Sant’Anna para compreender o sensual da linguagem existente em todo e qualquer relacionamento humano. Lemos em 2024 com o mesmo propósito. Assim como a conjugação do verbo não se altera, autor e leitor permanecem em comunhão até o desfecho de cada conto, quando uma saída feminina se apresenta caso a caso. O amor vive e está presente: no retorno à casa matrimonial, na volta à cama erótica, na decisão de partir para o interior.

 

Sérgio de Sá é doutor em Estudos Literários, professor na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e autor de “A reinvenção do escritor: literatura e mass media” (Editora UFMG) e “Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades” (Edição do Autor).

 

Capa do livro

Capa do livro

Reprodução

 
“Breve história do espírito”
• De Sérgio Sant’Anna
• Companhia das Letras
• 128 páginas
• R$ 74,90