Hans Magnus Enzensberger -  (crédito: Henry S. Dziekan III/ AFP)

Hans Magnus Enzensberger

crédito: Henry S. Dziekan III/ AFP


Daniel Arelli

Especial para o EM

 

Nascido em 1929 em Kaufbeuren, na Baviera, Hans Magnus Enzensberger viveu seus anos de formação artística, política e intelectual no período que se estende do imediato pós-guerra a maio de 1968. Seus primeiros dois ou três livros de poesia ganharam notoriedade sobretudo em função de seu teor marcadamente crítico-político, numa época em que preponderava na Alemanha Ocidental o otimismo do milagre econômico.

 

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Com efeito, tanto seu livro de estreia, “Defesa dos lobos”, de 1957, quanto os poemários que lhe seguiram: “Língua do país”, de 1960, e “Braile”, de 1964, foram considerados “furiosos, elegantes e de uma raiva controlada”, e renderam a seu autor o título de “jovem irado”.


Não obstante, Enzensberger demonstrou desde suas primeiras experiências literárias como redator radiofônico, ainda em 1955, notável versatilidade e pluralidade de interesses, dedicando-se com intensidade também a questões relativas à crítica cultural, à filosofia, ao pensamento científico, à teoria da comunicação, à matemática, às artes, e assim por diante, como atestam suas quase sete décadas de intensa atividade literária. O poeta, amplamente considerado um dos mais importantes intelectuais europeus do pós-guerra, faleceu em 2022, em Munique.


Os 90 poemas da presente antologia começaram a ser traduzidos em 2013, ano em que passei a residir em Munique por ocasião de uma temporada de estudos. Por acaso, encontrei num sebo da Amalienstrabe, bem perto da universidade, o volume “Poemas: 1955-1970”, publicado em 1971 em formato de livro de bolso. Li os primeiros poemas de pé no próprio sebo e comecei a traduzi-los naquele mesmo dia. Traduzir foi um impulso natural, como um exercício de leitura e escrita expandida – o que, evidentemente, não deixa de ser. Desde então, desenvolvi uma certa obsessão pela poesia de Enzensberger. Nunca parei de frequentá-la e de traduzi-la, sem pressa, sem projeto prévio, apenas pelo prazer de fazê-lo.

 


Já a ideia da antologia “Destinatário desconhecido” surgiu em meados de 2022, quando eu dispunha de uma primeira tradução de mais ou menos 50 poemas. Ela contém um recorte das várias facetas de seu trabalho: dos poemas políticos “irados” de juventude aos mais líricos; da sua dicção mais prosaica às tentativas mais experimentais; dos poemas em diálogo com as ciências, a matemática e a filosofia aos textos zoopoéticos, e assim por diante. Segundo me consta, a antologia publicada pelo Círculo de Poemas acabou se tornando a mais abrangente disponível em português até o momento.


Daniel Arelli é professor de estética da Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais. Autor dos livros de poemas "Lição da matéria" (Prêmio Paraná de Literatura 2018), "Pavilhão" e "O pai do artista" (semifinalista do Prêmio Oceanos 2023). É um dos editores da revista "Ouriço" e tradutor de autores como Adorno, Arendt, Badiou, Benjamin e Heidegger.

 

Para o manual de literatura do ensino médio

 

Não leia odes, meu filho, leia os horários dos trens:
são mais exatos. Desenrole os mapas náuticos
enquanto ainda é tempo. Fique atento, não cante.
Virá o dia em que voltarão a pregar listas
no portão e a pintar marcas no peito dos que dizem
não. Aprenda a passar incógnito, aprenda mais que eu:
a mudar de bairro, de passaporte, de rosto.
Exercite a pequena traição,
a imunda salvação de cada dia. É para
fazer fogo que servem as encíclicas,
e os manifestos, para embrulhar a manteiga e o sal
dos indefesos. Raiva e paciência são necessárias
para soprar nos pulmões do poder
o pó fino e mortífero, moído
por aqueles que tanto puderam aprender,
que são exatos, por você.


*

A visita

 

Ao erguer o rosto da folha em branco,
vi o anjo no quarto.

Um anjo totalmente ordinário,
suponho que do escalão mais baixo.

Você não imagina,
disse ele, o quanto é dispensável.

Um único dentre os quinze mil matizes
da cor azul, disse ele,

acrescenta mais ao mundo
do que tudo o que você faz ou deixa de fazer,

isso sem falar no feldspato
e na Grande Nuvem de Magalhães.

Até a orelha-de-mula, discreta como é,
faria falta – você não.

Encarei seus olhos claros, ele esperava
pelo contraditório, por uma longa batalha.

Não me movi. Esperei
que ele sumisse, em silêncio.


*

Aos trinta e três anos

 

Ela tinha imaginado tudo bem diferente.
Esses mesmos fuscas enferrujados.
Uma vez, quase se casou com um padeiro.
Antes leu Hesse, depois Handke.
Agora faz palavras cruzadas na cama.
Não leva desaforo de homem para casa.
Foi trotskista por muitos anos, mas do seu jeito.
Nunca teve em mãos um cupom de racionamento.
Quando pensa no Camboja, se sente mal.
Seu último namorado, o acadêmico, gostava de apanhar.
Vestidos de batique esverdeados, largos demais para ela.
Parasitas nas plantas à janela.
Na verdade, ela queria pintar, ou emigrar.
Sua tese de doutorado: Lutas de classe em Ulm de 1500
a 1512 e seus rastros na canção popular:
bolsas, começos e uma mala cheia de anotações.
A avó às vezes lhe manda dinheiro.
Danças tímidas no banheiro, pequenas caretas,
horas a fio de leite de pepino no espelho.
Ela diz: Pelo menos não vou morrer de fome.
Quando chora, parece ter dezenove.


Os desaparecidos


para Nelly Sachs

Não foi a terra que os engoliu. Foi o ar?
Eles são muitos, como areia, mas não foi areia
que viraram – foi nada. Em massa
são esquecidos. Muitas vezes e de mãos dadas,

como os minutos. Mais do que nós,
mas sem lembrança. Não registrados,
não decifráveis no pó, desaparecidos
seus nomes, colheres, sapatos.

Não nos causam remorso. Ninguém
pode rememorá-los. Nasceram,
fugiram, morreram? Sua falta
ninguém sentiu. O mundo
é sem lacunas, mas se mantém inteiro
pelo que não abriga,
pelos desaparecidos. Eles estão em toda parte.

Sem os ausentes nada haveria.
Sem os fugitivos nada seria firme.
Sem os esquecidos nada seria certo.

Os desaparecidos são justos.
Assim sumimos também nós.

*

 

Lembrança do momento crucial

 

A manhã do arrependimento, que te percorre os membros como uma lombalgia;
o dia em que você se fez de ridículo por toda a eternidade;
a noite em que você jaz no chão com o sangue escorrendo pelo nariz;
a hora em que você descobre que se enganou por catorze anos, nove meses e duas semanas;
o minuto em que sua própria filha te encara como uma estranha;
o momento em que você acredita sentir a ponta da faca nas costas;
o instante em que você encontra a carta de adeus em cima da mesa da cozinha;
o décimo de segundo em que a avalanche começa a se desprender sob seus pés;

e antes e depois uma quantidade inimaginável de instantes de despreocupação.


*

 

Remédio para dormir

 

Cápsula espacial colorida
minúsculo grão de mostarda de amnésia
que desnuda seu núcleo
nas profundezas do dilúvio

Tufão branco em copo d’água
catarata química
que eu engulo
que me afoga

Chiaroscuro embaçado
Nilo azul
que marmoriza meu cérebro
até eu submergir

Milagre silencioso
toneladas em miligramas
nele exalo meu medo
e minha alegria

até o fundo do dia estridente

 


Bichinho de estimação

 

Minha tristeza é meu hamster.
Não deixo que ela morra de fome. De noite,
ouço como ela cava, raspa, fuça
na sua gaiola. De manhã,
quando estou de bom humor,
costumo abrir a grade.
Então ela corre com as patinhas rosadas,
me procura, prova a ração,
me provoca com as narinas tremendo.
Aí ela funga na minha mão
até que eu perca a paciência,
agarre-a pelo cangote eriçado
e a enfie de volta na gaiola,
aos guinchos, virando
os olhos em pânico. Com um clique
travo o trinco atrás dela
e sou feliz.

*

O autobiógrafo

 

Ele escreve sobre os outros
quando escreve sobre si.
Ele escreve sobre si
quando não escreve sobre si.
Quando escreve, não está presente.
Quando está presente, não escreve.
Ele desaparece para escrever.
Ele escreve para desaparecer.
Naquilo que escreve
ele desapareceu.

*

 

 

Casa isolada


para Günter Eich

Quando acordo
a casa está em silêncio.
Ruído, só dos pássaros.
Pela janela não vejo
ninguém. Aqui

não passa rua alguma.
Nenhum arame no céu
e nenhum arame na terra.
O que é vivo está quieto
sob o machado.

Ponho a água no fogo.
Corto meu pão.
Inquieto eu aperto
o botão vermelho
do pequeno transistor.

“crise no Caribe… roupas mais brancas
mais brancas e mais brancas…
tropas em prontidão… fase três…
that’s the way I love you…
ações da siderurgia se recuperam…”

Não pego o machado.
Não parto o aparelho em pedaços.
A voz do terror
me acalma. Ela diz:
ainda estamos vivos.

A casa está em silêncio.
Não sei armar armadilhas
nem fazer um machado de pedra lascada
quando enferrujar
a última lâmina.

 

Capa do livro "Destinatário desconhecido: Uma antologia poética: 1957-2023"

Capa do livro "Destinatário desconhecido: Uma antologia poética: 1957-2023"

reprodução

 

“Destinatário desconhecido: Uma antologia poética: 1957-2023”
• Hans Magnus Enzensberger
• Seleção, tradução do alemão e posfácio de Daniel Arelli
• Círculo de Poemas
• 224 páginas
• R$ 74,90
• E-book: R$ 52,40