"Oreo", de Fran Ross

crédito: Reprodução


Breno Kümmel

Especial para o EM

 

Na onda de publicações de autores negros que foram traduzidos e editados no Brasil nos últimos anos, numa bem-vinda tentativa de sanar o atraso considerável de nosso mercado editorial, há uma mistura de escritores contemporâneos com outros que ganharam o status de clássico. Diferente de figuras do porte de James Baldwin (“O quarto de Giovanni”) ou Ralph Ellison (“O homem invisível”), recentemente reeditados, a escritora Fran Ross era um nome obscuro até mesmo nos EUA.

 

Nascida em 1935, produziu apenas um livro, “Oreo”, aos 40 anos, na década de 1970. Morreu em 1985. Foi uma aluna de destaque no meio acadêmico, mas não obteve êxito na carreira literária: o livro não causou impacto ao ser lançado e ficou sem reedição por muitos anos. De volta às livrarias, recebeu o charmoso descritivo de "clássico perdido".

 

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O fato biográfico mais expressivo de Fran Ross é o fato de ela ter sido brevemente corroteirista de Richard Pryor, comediante negro mais importante do século 20, precursor de figuras como Chris Rock e Dave Chappelle. É relevante, pois “Oreo” se lê mais como um livro de um roteirista do que de uma romancista tradicional: percebe-se uma necessidade de pôr a prova em cada página ou parágrafo sua sagacidade, sem a paciência ou interesse para um acúmulo de sentidos lentamente se transformando.

 

Essa hiperatividade, no entanto, irritaria apenas se não fosse tão bem-sucedida a cada trocadilho e cenário improvável conjurado a cada cena, como um jogador mais interessado em driblar do que fazer gol, e seu time ao final terminasse vitorioso em desconsideração do placar final.


A própria introdução do livro, assinada pela romancista Danzy Senna e felizmente mantida na edição brasileira, é muito útil como um farol para o leitor, que pode se desorientar com o ritmo claudicante da história e densidade de piadinhas a cada cena.

 

A semelhança com Kurt Vonnegut, apontada por Senna, na aparente desordenação narrativa num tom de desleixo estilizado, se soma a uma rara elasticidade linguística, com expressões em iídiche, alemão, francês, típica de autores do modernismo mais difícil, sem medo de exibir sua erudição incomum a cada esquina do texto. É claramente um livro de quem gosta de fazer a si mesma rir e compartilha seus melhores achados.

 


O romance narra a história de Christine, que recebe o apelido de Oreo devido ao destaque do sorriso muito branco em seu rosto negro parecendo o desenho o recheio da bolacha famosa; a expressão remete também ao epíteto dado a negros "brancos por dentro", que não apresentam as incontáveis marcas culturais da negritude na cultura estadunidense.

 

O enredo conta sua busca pelo pai, de origem judaica, numa paródia comicamente retorcida do mito de Teseu. A trama, no entanto, é apenas uma moldura para os diversos esquetes humorísticos que se sucedem. Situações e personagens aparecem e somem apressadamente, misturando a todo momento referências de infância, do mundo neoclássico, do repertório humanista e das tensões raciais americanas.

 


A tradução da edição brasileira, a cargo de Heloísa Mourão, é valorosa em seu esforço em manter-se no ritmo associativo frenético de Ross, mas há algo de intrinsecamente impossível na missão. Primeiro devido à barreira estrutural no ato de traduzir, pois qualquer construção vocabular mais estranha no português poderia ser apontada como um problema da tradução, enquanto no original a estranheza desperta a sensação de estarmos diante de uma inteligência incomum, insatisfeita com o uso corriqueiro do idioma.

 


Outra barreira é a cultural. Por mais que sejamos e nos tornemos cada vez mais americanizados, várias vivências seguem sem correlato nem mesmo aproximado. Da mesma forma que um jagunço não é propriamente um caubói e malandro não é exatamente um con man, os negros americanos e brasileiros têm grandes diferenças e as combinações intersemióticas de Ross frequentemente esbarram na ausência de equivalência. Não existe sotaque negro brasileiro como o African American Vernacular En-glish, não existe um cristianismo negro brasileiro com seu gênero musical distinto, não existe uma série de produtos famosamente mais consumidos por negros.

 


É louvável a iniciativa de traduzir um livro raro como “Oreo”, que traz uma visão diferente, ousadamente sarcástica e até mesmo divertida para os desafios e diferenças dos negros na sociedade americana. É nítido um parentesco formal com os papas do pós-modernismo dos EUA, hoje quase esquecidos, como Barth, Coover ou principalmente Barthelme, e também é interessante a tensão advinda da semelhança, pois as obras declaradamente cerebrais e formalistas frequentemente recebem a pecha de alienadas dos que ainda exigem utilidade das obras de arte, a disposição à comédia e ao jogo linguístico sendo supostamente um marco do privilégio de classe ou raça. Nesse contexto, que aqui é também o nosso, “Oreo” se mostra um marco das amplas possibilidades de expressão artística, enriquecendo o campo cultural e literário.

 

Breno Kümmel é escritor, autor de livros como “Sendo ele quem ele era” (Patuá)

 

Trecho de “Oreo”, de Fran Ross

 

Sempre que brincavam juntos, se Oreo pensava que seu irmão havia dito algo bobo ou estúpido ou fofo, ela fazia um de seus comentários ferozes do tipo "imagine se". As duas crianças tinham o hábito de, na expressão de Jimmie C."kafucá" (o u de "fundo") nos ouvidos – aliviar uma coceira que era de família. Certa vez, quando os dois estavam fazendo isso,Jimmie C. disse, muitosério: "vamos juntar nossa cera e fazer uma vela".


Oreo respondeu: "Imagine se você estivesse deslizando por um corrimão e ele se transformasse em uma lâmina de barbear".


Jimmie C. desmaiou.

 

Capa do livro 'Oreo'

Capa do livro 'Oreo'

Reprodução

 

“Oreo”
• Fran Ross
• Tradução de Heloísa Mourão
• Todavia Livros
• 264 páginas
• R$ 89,90