Salomé Esper, nascida em 1984 na cidade argentina de Jujuy
 -  (crédito:  Paula Luvatti/divulgação)

Salomé Esper, nascida em 1984 na cidade argentina de Jujuy

crédito: Paula Luvatti/divulgação


Ludimila Moreira
Especial para o EM

 

A literatura latino-americana sempre esteve às voltas com a tradição da linguagem fantástica que transtorna ou desfigura o real pela presença do estranho, convertendo o imaginário familiar em algo anormal. Na Argentina, as escritoras têm se destacado com livros impactantes que ganham traduções, resenhas e leitores pelo mundo. Este panteão insólito, formado por pulsões libidinais, mundos aterrorizantes e realidades agônicas, foi iniciado por nomes como Silvina Ocampo e Aurora Venturini e tem atualmente Mariana Enriquez, Selva Almada, Samantha Schweblin e Ariana Harwicz como expoentes.

 

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Em sua estreia no romance com “A segunda vinda de Hilda Bustamante”, Salomé Esper mostra fôlego para entrar nessa relação. A edição brasileira, da Autêntica Contemporânea, ganhou uma excelente tradução de Sérgio Karam que faz funcionar ritmo, sintaxe lírica e dicção melancólica e espirituosa.


A topografia rural da Argentina interiorana descrita por Selva Almada e Ariana Harwicz é também constitutiva do projeto estético de Salomé Esper. Nascida em 1984 na cidade de Jujuy, no extremo noroeste argentino, formada em Comunicação Social na Universidade Nacional de Córdoba e especializada em Design Editorial no México, Esper também explora um imaginário insólito que mistura o místico e religioso, o comezinho dos pactos domésticos e as pautas que acossam o psiquismo de mulheres como a maternidade compulsória e a felicidade conjugal.

 

 

Esper explora o imaginário interiorano com uma perspicácia que é poética mais que sociológica, ao lidar com os mexericos, os segredos, os interditos e os pecados como o adultério (de Hilda com cortês e apaixonado Genaro) e a violação do sacerdócio pelo padre. Toda essa economia de acontecimentos e seus sujeitos de preces, traumas e sonhos são colocados em uma mirada psicanalítica dos instintos e sintomas que amplificam a realidade cheia de atritos, desejos, delírios e beleza.


Tanto a representação do espaço urbano como a conquista das perspectivas das paisagens rurais se irradiam na narrativa pela figura da personagem Hilda, que exerce esse domínio na tração do enredo sem se impor como voz narrativa: Hilda não se confessa, é narrada. Quando retorna do mundo dos mortos, seu corpo desorbita o real e instaura uma temporalidade apocalíptica que conjuga a chegada de gafanhotos: mesmo que o racional diga que os insetos estão em trânsito por causa da fumigação de pesticidas nos campos do norte, paira a promessa de praga bíblica, unido ao toque febril de sinos e vidros que se estilhaçam cidade afora.

 

 

 


Assim como Lázaro, o personagem bíblico que teria ganho a dádiva maior dos milagres, Hilda Bustamante revive depois de um ano de seu sepultamento, protagonizando um périplo de dessacralização das convencionais maneiras de narrar uma ressurreição. Um romance que irrompe com a boca da protagonista cheia de vermes, “a estranheza daqueles corpos moles mexendo-se entre seus dentes” e se desdobra entre gracejos, suspense, ternura e amor.


Seria possível narrar a ressurreição de uma mulher de 79 anos sem falar dos afetos nostálgicos que compõem o grande coro de pranto diante de sua ausência? Esper nos enrodilha em um espiral de fotogramas, no encalço dos rastros de fascínio, generosidade e ternura deixados por Bustamante que tanto a invocação de sua lembrança quanto às cenas que seguem sua saída da tumba logo no início da narrativa nos entregam uma personagem misteriosa e engraçada, algo entre uma possível Amélie Poulain senhorinha e a imagem plasmada de uma dona de casa afeita à amizade com as plantas.


O inventário de memorabílias e o jogo com o impossível do realismo sem o componente maçante das ficções parabólicas ou do alegórico moralizante forjam as linhas de força de um romance elegíaco do inverossímil e da escrita como gesto restaurador da correspondência com os mortos. O legado da pacata primeira vida de Bustamante passa inicialmente pela mudança de cidade aos 30 anos de idade.

 

O casamento com o sindicalista Álvaro, ainda que marcado por uma liturgia dos costumes, dissemina ternura e parceria comoventes diante de eventos traumáticos como o desejo frustrado pela gravidez e os sintomas inegociáveis dos trabalhos de luto do companheiro. Outro marco desta primeira herança é a amizade entre mulheres como signo de saúde mental e trunfo para rasurar as expectativas de um familismo às voltas com as demandas incessantes do patriarcado como a maternidade.


O ingresso de Hilda ao grupo de Devotas da Igreja é menos revelador de uma espiritualidade confessa do que um sintoma de desamparo. Clara, Susana e Carmem são as missionárias que dão concretude às muitas profanações que ganham vida com a segunda vinda da amiga. O arco narrativo de Suzana é um dos mais magnéticos porque, além do desejo de não performar uma maternagem ativa, a personagem se vale da Igreja como refúgio para encobrir sua grande chama libidinal: a leitura de romances de suspense nos bancos sóbrios do templo. A amiga será uma das devotas a renegar o culto e o abraço à Hilda em sua revinda, o custo desse gesto sendo muito bem trabalhado pela autora.


As herdeiras mais afetadas pela morte e segunda vinda de Hilda são Gabriela e Amélia, responsáveis pela presença da parentalidade na vida conjugal de Hilda e Álvaro. Depois de cenas de violência doméstica na casa dos vizinhos, Hilda toma fôlego e ameaça com uma faca o namorado de Gabriela, que abandona a companheira grávida. Entre hospitalidade, empatia e amor parental, Gabriela passa a ser considerada filha do casal e a carismática e genial Amélia, neta. Amélia que deixará de ser criança e dará corporeidade, pela escrita de bilhetes, a um dos finais mais emocionantes da literatura contemporânea.


Dois ritmos se entrecruzam por todo o romance: o de resgate mnemônico da primeira vida e o apelo vertiginoso desta revinda, apelo que se converte em devoção e negação por parte das amigas e zelo, medo, regozijo, pacificação por Álvaro, Gabriela e também pela eufórica Amélia, que assimila sem nenhuma mediação a volta da vovó Hilda. A casa de Hilda Bustamante em sua segunda vinda vai se tornando um lugar de culto e peregrinação, sobretudo pelo choque que aciona as amigas Carmem e Clara a elaborarem uma espécie de seita apócrifa.

 

Nesta realidade acossada de sustos e medo, a notícia se espalha e o milagre se extingue assim como chegou, sem processos de racionalização. Resta, ali, diante de um rigor mortis com traços de aurora boreal, um final apoteótico e nada sobrenatural, uma netinha que nos surpreende com algo que nós leitores de literatura já intuímos: pela escrita o morto se presentifica e a vida de saudade se torna menos impossível.

 

Ludimila Moreira é historiadora e doutora em literatura pela Universidade de Brasília

 

Trecho

 

“Hilda acordou com a boca cheia de vermes, a estranheza daqueles corpos moles mexendo-se entre seus dentes. Quis se sentar com uma fúria muito parecida com o nojo, mas bateu a cabeça em algo. Cuspiu. Cuspiu rápido, sentia-se confusa, até perceber a boca voltaria a ficar vazia. Estava escuro, não enxergava nada, teria caído da cama e rolado pelo chão no meio da noite? Teria esquecido de como se dorme depois dos setenta e nove anos? De onde saíram os vermes?


Mexeu os braços esperando encontrar um espaço amplo como o que imaginava haver debaixo de sua cama, porém suas mãos encontraram a resistência de um material desconhecido, uma espécie de parede muito fina, uma caixa muito grande.


Algumas vezes, quando pequena, Hilda acordava de uma sesta longa e pesada com a mesma confusão, não conseguia saber se recém entardecia ou se já era plena madrugada e havia perdido um dia inteiro, todas essas horas, toda essa perda. Apenas silêncio e quietude, não havia ruídos ou sinais de um mundo que ainda estivesse funcionando. Teriam todos morrido? Seus pais teriam morrido? Ela teria morrido? Lembrou-se disso agora, e então soube. Sem entender, sem poder explicar. Soube que tinha morrido.”

Capa do livro "A segunda vinda de Hilda Bustamante"

Capa do livro "A segunda vinda de Hilda Bustamante"

Reprodução

“A segunda vinda de Hilda Bustamante”
• De Salomé Esper
• Tradução de Sérgio Karam
• Autêntica Contemporânea
• 160 páginas
• R$ 59,80