manuscritos recentemente descobertos do autor francês Louis-Ferdinand Céline em um escritório de advocacia em Paris -  (crédito: reprodução)

Manuscritos recentemente descobertos do autor francês Louis-Ferdinand Céline em um escritório de advocacia em Paris

crédito: reprodução


Que as obras artísticas contam muito sobre seus criadores e o contexto em que foram produzidas não é exatamente uma afirmação que foge do lugar-comum, mas há produções em que este é um elemento mais relevante. É o caso de “Guerra”, publicado de forma inédita pela Companhia das Letras neste ano a partir de um manuscrito de 1934 do francês Louis-Ferdinand Céline.

 

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As nove décadas que separam a redação do livro e o lançamento no Brasil obrigam o leitor a se desprender da ótica de análise moral contemporânea. O exercício serve não apenas para entender o espírito do período entre as grandes guerras na Europa, como para fruir de uma espécie de bastidor criativo de um nome que alia em sua biografia os fatos de ser um dos maiores escritores do século passado e uma das personalidades mais condenáveis.

 


“Guerra” foi escrito em 1934, dois anos após o lançamento do primeiro livro de Céline, “Viagem ao fim da noite”. Nunca publicado até 2022, o texto mistura relato autobiográfico com ficção para contar parte da experiência do autor francês na Primeira Guerra Mundial.

 

Produzido vinte anos após o início do conflito, o texto se passa especificamente do momento vivido na Europa entre 1914 e 1918, mas pode ser lido como o retrato desesperançoso de uma geração que, muito jovem, participou dos embates mais mortíferos da era contemporânea até então.

 

 

 


Duas décadas após ser recrutado, Céline colocou tinta sobre o papel convivendo não apenas com a memória dos anos de combate, mas também com uma insuportável dor de cabeça oriunda de ferimento de guerra e que o acompanhou até o fim de sua vida. A união de sofrimento físico e o desprendimento moral produzido pelo contato próximo com a barbárie e a morte perpassam todo o livro.


A história de “Guerra” consiste na jornada do narrador após se machucar em uma batalha e ser enviado a uma enfermaria onde viveu entre o medo de uma condenação por deserção e honrarias por ter se sacrificado no combate até fugir para Londres. Neste ínterim e na dualidade entre a infâmia e a glória, ele elenca relações de amizade, amor e sexo sempre afetadas pela mudança de perspectiva causada pelo conflito.


Em entrevista ao Pensar, Rosa Freire d’Aguiar, tradutora deste lançamento e de boa parte da obra de Céline no Brasil, fala sobre como “Guerra” reúne as características que tornaram o francês reconhecido como um gênio literário em suas obras publicadas anteriormente e, ao mesmo tempo, permite uma análise de sua produção em estado cru, sem edições e aperfeiçoamentos.

 

A jornalista, editora e tradutora também aborda a relevância do escritor diante de seu notório antissemitismo e histórico de colaboração com os nazistas na invasão à França durante a Segunda Guerra Mundial.

 

Rosa Freire D’Aguiar, jornalista e tradutora

Rosa Freire D’Aguiar, jornalista e tradutora

Arquivo pessoal

 

Entrevista/Rosa Freire D’Aguiar, jornalista e tradutora

‘‘Pouco importa a questão moral quando a pessoa é confrontada com a guerra e com a morte. O importante é fugir’’

 


Qual a relevância de “Guerra” para a obra já consolidada de Céline? Como o manuscrito recém-publicado dialoga com os livros clássicos?


Esse livro realmente tem uma história incrível. O Céline estourou quando lançou “Viagem ao fim da noite” em 1932. Esse livro foi escrito depois, em 1934, mas não foi lançado e trata de uma experiência que ele teve 20 anos antes, quando ele foi para a guerra de 1914, fica ferido e aí volta à França e é desmobilizado. Quando ele lança o “Viagem” em 1932, o livro é muito polêmico, mas faz sucesso relativo. Então, ele, que era médico se anima a seguir como escritor. Ele começa a escrever e trata sobre essa experiência da guerra. Tudo que Céline escreve tem um pouco de realidade e de ficção. Ele é meio megalomaníaco, uma pessoa realmente muito curiosa nesse ponto de vista, sempre fabula um pouco a história.

 

Céline foge da França na II Guerra Mundial em 1944. Ele teve posições horrorosas durante a guerra. Ele era mais antissemita do que nazista digamos assim, eu nem sei se eu diria que ele era nazista medularmente. Nessa fuga, começamos a saga desses manuscritos. Esses documentos desapareceram, alguém que entrou na casa dele, em princípio, teria levado os manuscritos que ficaram um tempão sumidos e foram aparecer agora quase 80 anos depois. São quatro manuscritos em torno desse episódio dele na Primeira Guerra Mundial. O primeiro é esse que saiu agora. Dito isto, o livro é Celine em estado puro, eu diria que é um concentrado de Céline.

 

Eu havia traduzido três livros do Celine e “Guerra” é o quarto livro e uma espécie de extrato de sua obra. Tudo que ele vai desenvolver em outros trabalhos já aparece nesse livro. Você já vê bem a linguagem dele. Uma linguagem oral, mas não é uma linguagem popular. Eu achava sempre que era uma linguagem popular, mas na verdade é uma linguagem oral muito burilada, bem tratada e elaborada.


Podemos considerar o livro como uma espécie de bastidor do processo de escrita de Céline?


Eu acho que sim. É como uma espécie de um grande rascunho do que ele vai fazer depois. Eu morei anos na França como jornalista e lá eu li o Céline por curiosidade. Anos depois eu largo o jornal e começo a fazer traduções. Quando retorno ao Brasil, falei com o pessoal da Companhia das Letras para ver se a gente fazia uma tradução dos livros do Céline. Mas aí eu entrei numa espécie de contradição comigo mesma, porque eu tinha lido Céline em francês muitos anos antes e o que eu apreciava era exatamente a construção, a oralidade, a musicalidade dele. Então eu fiquei na dúvida sobre como traduzir tudo isso. Porque eu admirava o jeito dele de escrever, as palavras dele, e, se eu pusesse as minhas palavras, poderia deixar de ser o Céline. Eu seria então responsável por destruir um escritor que eu admirava, foi uma espécie de um de um dilema.

 

Rosa aguiar: ‘‘Eu sei que Céline foi um canalha, não há a menor dúvida, mas ele é um imenso escritor. A meu ver, a primeira metade do século 20 na França tem dois grandes escritores: Proust e ele."

Rosa aguiar: 'Eu sei que Céline foi um canalha, não há a menor dúvida, mas ele é um imenso escritor'

Arquivo


Em um momento do livro ele usa a fala direta para um personagem que perdeu uma parte da língua e se comunica com dificuldades. Imagino que seja uma tradução difícil e mostra a força da oralidade na narrativa.


Exatamente. É a linguagem oral, mas ao mesmo tempo muito elaborada. O terceiro livro dele que traduzi, chamado “De castelo em castelo”, é linguagem oral pura e eu acho que é o livro mais celiniano. Em compensação, eu achei que parava por aí, mas quando eu pego o “Guerra”, vejo que, na verdade, o que vai explodir lá adiante já está muito presente. Toda essa questão de às vezes usar frases sem predicado, ou sem verbo. Às vezes tem jargão ou algumas gírias muito especiais.


Temos que pensar que ele lança “Viagem ao fim da noite” em 1932, dez anos apenas após a morte de Marcel Proust e, naquele momento, ainda estavam saindo seus livros póstumos. Por acaso, estou traduzindo Proust no momento, então eu pensei muito nisso. Apenas dez anos separam aquela linguagem elaborada e certíssima em termos de sintaxe e vocabulário do Proust com aquela explosão do Céline, uma linguagem nova, refratária. Havia, claro, autores que faziam linguagem popular, isso sempre existiu, mas com Céline há uma virada da literatura, uma linguagem nova, uma linguagem oral passada para a escrita.

 

combate na primeira guerra mundial: conflito no início do século 20 matou milhares de jovens franceses

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arquivo


O livro passa uma mensagem decadente de certa forma, uma visão desesperançosa da guerra que me lembra mais a produção de Samuel Beckett, por exemplo, do que de um “Adeus às armas”. Como “Guerra” se encaixa na produção literária do período entre guerras?


É isso mesmo. Eu acho que esse livro é mais sobre o horror da morte e da guerra que produz morte. O mais importante desse livro, a meu ver, é a experiência de um jovem. Céline nasceu em 1894. Tinha 20 anos quando vai para a guerra e com 21 ele volta para casa com essa pancada na cabeça que ele conta no livro. ele se queixou de dor de cabeça até morrer. Então é uma obra que trata muito mais sobre o horror do conflito do que sobre o fim da guerra, não é como um “Adeus às armas”, mas mais algo sobre a brutalidade da morte.

 

Sobre reunir um bando de jovens e mandar para uma espécie de um matadouro tendo absoluta certeza de que 90% deles vão morrer. A Primeira Guerra foi a que mais matou jovens na França, que teve dificuldades em se reparar décadas depois.


O personagem principal passa boa parte do livro preocupado com a chance de ser condenado por deserção. Existe na obra uma relativização da moral no contexto da guerra?


No limite, o que ele diz é que pouco importa a questão moral quando a pessoa é confrontada com a guerra e com a morte. O importante é fugir. Se você vai ser desertor ou não, paciência. O Bébert (amigo do protagonista, narrador-personagem e uma representação do próprio Céline), por exemplo, em vários momentos vai fingir no livro que está mais machucado do que realmente está, o que pode ser lido como um comportamento de pouca índole moral, mas isso não importa.

 

Essa característica, aliás, foi um choque quando Céline lança o primeiro livro dele. Em uma das reações da época dizia-se que o Céline vai tão longe, que ele irá a qualquer lugar. Quer dizer, para o bem ou para o mal, o que ele quer é ir, quer fugir de uma coisa que está incomodando. Se há coisas erradas politicamente ou moralmente pouco importa.


A biografia de Céline é bastante problemática. “Guerra” pode ser uma boa porta de entrada para quem tem restrições em começar a ler a obra do francês?


Acho que é uma excelente porta de entrada, mas as pessoas têm que entender que é um livro que não foi revisto. Francamente, vendo os livros seguintes do Céline, não acho que ele ia mudar muita coisa. O mais chocante do livro ficaria tal qual está, porque isso aparece nos outros livros. Uma outra questão é o antissemitismo do Celine. É claro que eu sei que ele foi um canalha, não há a menor dúvida, mas ele é um imenso escritor. A meu ver, a primeira metade do século 20 na França tem dois grandes escritores: Proust e ele.

 

Nesse livro (“Guerra”) tem tudo que ele vai explorar no futuro. Tudo já aparece aqui de forma embrionária. Ao mesmo tempo é um Céline em estado puro, até porque ele talvez não tenha revisto várias passagens que ele vai explorar depois com uma certa uma certa preocupação de burilar um pouco o texto. Em “Guerra” ele está em um estado cru, digamos. Então, eu acho que é um excelente livro para quem quiser começar a lê-lo. Eu sou daquelas que acham que os escritores têm que ser tomados no conjunto, na íntegra. Quer dizer, ele foi um canalha. Ele foi, de fato, uma pessoa odiosa, horrorosa. Mas é um baita escritor. E aí como é que você faz? Tem que ler e condenar as loucuras e as canalhices que ele escreveu.

 

Capa do livro "Guerra"

Capa do livro "Guerra"

reprodução

 

“Guerra”
• Louis-Ferdinand Céline
• Tradução de Rosa Freire d’Aguiar
• Companhia das Letras
• 160 páginas
• R$ 74,90