Luiza Mussnich
receituário
em resposta a Chico Alvim
diferente
do que se faz com um resfriado
pondo um casaquinho na bolsa
meias pra dormir
não se prevenir
da paixão
por mais que depois
a gente fique tremendo
a gente fique temendo
a gente fique de ressaca
a gente fique doído
doido atrás de um remedinho
Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia
paixão
um alvo do qual procuramos desviar
mas que atingimos sem querer apesar
da falta de pontaria
aperto o gatilho
quem cai
sou eu
turismo
quando alguém diz
que conheceu uma cidade
porque por lá passou
três quatro dias
visitou a igreja tal
o castelo medieval
tomou um sorvete em frente ao monumento
de um cavaleiro empunhando uma espada
se debruçou no parapeito daquela sacada
com vista para o rio
provou a comida típica
o chope com muita espuma
para conhecer uma cidade
para conhecer alguém
é preciso mais
do que três quatro dias
por mais que sejam dias longos e bonitos
que escureça tarde
quando alguém diz
que conheceu uma cidade
numa viagem turística
tenho vontade de dizer
que quando vou a uma nova cidade
tenho sempre a sensação
de não a conhecer
como você e eu
turistas um do outro
que temos apenas
nos visitado
mas com a assiduidade
com que visitamos alguém
gravemente doente
o cenário é quase o mesmo:
nós ali febris
tentando não padecer
loteria
vocês se conhecem sem saber
se aquilo vai durar
um flerte no bar
romance epistolar
uma embriaguez
as horas daquela noite num motel ao lado
alguns minutos num lavabo
tempo de a neve parar de cair
trinta meses, o quanto duram as paixões
dá pra embaçar um carro
tempo suficiente para passar a madrugada ajudando o
outro a expelir catarro
tempo que os tempos não comportam
um namoro em que se conheçam as famílias
um carnaval
duas filhas
uma viagem de cinco dias
alguns poemas
um casamento
um testamento
três cachorros
um bonsai
uma música
uma biblioteca compartilhada
uma tartaruga
uma vida inteira
a vida inteira tentando esquecer
depois de Ana Martins Marques
duas pessoas
arrumando os mesmos livros
em estantes em instantes
diferentes
formam um par?
doença
contraiu matrimônio
apocalipse
se o mundo acabar amanhã
sobram baratas
assentos do meio
jujubas laranjas
tesão
poemas
pizzas de aliche
pelúcias na maquininha do parque
culpa
tamanhos pp
carros brancos
chupetas perdidas
sonhos incompreendidos
milhares de galáxias intactas
o amor
Sobre a autora e o livro
Nascida no Rio de Janeiro em 1991, Luiza Mussnich chega ao terceiro livro de poemas, “Todo o resto é muito cedo”. Os anteriores foram “Lágrimas não caem no espaço” (2018) e “Tudo coisa da nossa cabeça” (2021). No novo livro, o primeiro pela editora Bazar do Tempo, a carioca estabelece diálogos com outros poetas como Francisco Alvim e Ana Martins Marques.
No posfácio, a poeta e tradutora Prisca Agustoni destaca o fato de Mussnich retomar “o fio antigo da necessidade humana da representação (como é possível ver no título do belíssimo poema “origem da representação”)” e conduzir o leitor a um “universo poético em tensão, no qual Eros e Thanatos – dois deuses poderosos da mitologia grega – disputam a narrativa”.
“Em especial”, aponta a autora do premiado “O gosto amargo dos metais”, “o amor e suas várias declinações se configura como o tema dominante do livro e atravessa quase todos os poemas, como uma faca que entra num corpo vibrante e disseca seus funcionamentos: alegria, medo, terror, paixão, loucura, leveza, tristeza, frustração, gravidade, ironia, desilusão, desamor.”
“Todo o resto é muito cedo”
• De Luiza Mussnich
• Bazar do Tempo
• 88 páginas
• R$ 58,00