imagem do livro

imagem do livro "Ressuscitar mamutes"

crédito: reprodução


Fernando Rinaldi
Especial para o EM

 

Faz parte do nosso imaginário a analogia entre texto literário e tecido, entre teia e trama, a escrita pensada como a tecitura de um texto. Na mitologia grega, Aracne foi, segundo nos conta Ovídio, uma tecelã habilidosa cuja petulância levou Atena a desafiá-la. Na competição, ambas teceram representações de episódios do passado para apresentá-las, em tapeçaria, no presente da ação.

 

Embora tenha certo fundo moralizante — a tecelagem de Aracne ousou mostrar os equívocos dos deuses e ela acabou sendo punida por Atena —, pode-se depreender do mito uma imagem ainda poderosa para a reflexão sobre as literaturas que lidam com a memória: as narrativas são tecidas com as linhas soltas e embaralhadas do passado e com as agulhas da linguagem, enredando reminiscências, vivências e fabulação.

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia


Em “Ressuscitar mamutes”, novo livro de Silvana Tavano pela Autêntica Contemporânea, a narradora habilmente tece a história da mãe, morta inesperada e precocemente, com fiapos de lembranças e outros fios que suas mãos alcançam: estudos científicos, citações literárias, artigos, entradas de dicionários, romances e ensaios. A composição textual do romance se faz com múltiplas matérias-primas que, de alguma forma, iluminam sua investigação a respeito do tempo, encarnada nas interrogações e hipóteses que surgem sobre a vida de sua mãe. Como se mãe e tempo fossem a frente e o verso do bordado, ou vice-versa — não é relevante saber qual é o avesso.

 


Antes de iniciar sua jornada em busca da própria mãe, a narradora nos apresenta o projeto científico real que dá título ao livro: com o objetivo de evitar o derretimento do permafrost, solo ártico que mantém os gases de efeito estufa sob a camada de gelo, um grupo de cientistas estuda criar em laboratório um híbrido dos mamutes com os elefantes asiáticos, os mamofontes. Esses novos mamutes possibilitariam a restauração do equilíbrio ecológico ao trazer de volta à tundra a pastagem capaz de conter as emissões de dióxido de carbono. Em outras palavras, para que haja futuro, seria preciso trazer o passado ao presente, mas um passado modificado.


Assim como no caso dos mamofontes, o gênero híbrido de “Ressuscitar mamutes” — mistura de ficção, memórias e fragmentos de inclinação ensaística — pretende preservar o futuro da memória por meio do resgate do passado, não exatamente como ele foi, mas da maneira como se pode presentificá-lo. Em “Instruções-exemplos sobre formas de viajar no tempo” e “Hojes”, as duas primeiras partes do livro, somos apresentados a fatos e discursos que pensam o tempo na sua simultaneidade, sincronicidade, pluralidade e mistério.

 

 

A narradora procura entender o tempo tanto no seu sentido científico quanto subjetivo na tentativa de apreender a figura da mãe, que vai surgindo em lampejos, no relato de lembranças e sonhos, e também na comparação com as “esperanças”, criaturas mágicas de Cortázar que passam um pouco alheias à vida.


Trivial e complexo


“Reinventar a vida ao lado dela — escrever faz parte desse esforço”, diz a narradora. Da terceira parte em diante, ao comprimir a história da mãe em poucas páginas, destacando fatos e eventos — reais ou inventados ou, ainda, reais mas com fendas preenchidas com imaginação (memórias híbridas?) —, ela faz o esforço de resgatá-la, tornando-a mais inteligível, ainda que por meio de um rascunho do que ela foi.

 

Escrevendo, redescobre uma mãe de vida tão trivial quanto complexa: uma mãe de corpo encolhido, metódica, sozinha; uma mãe que abdica dos desejos após a separação; uma mãe que a dada altura vira sua companheira de viagem. E uma mãe que surge na própria narradora, quando, com rosto mais envelhecido, vê nele os traços desse esboço de mãe.


Merecidamente elogiada por seu romance de estreia, “O último sábado de julho amanhece quieto” — que também toca nos temas do luto e da maternidade, mas a partir do ponto de vista de uma mulher que vai gestar simultaneamente um filho e a perda do companheiro —, em “Ressuscitar mamutes” Silvana é muito bem-sucedida em anunciar a impossibilidade de narrar a mãe para, a partir daí, narrar uma mãe de todos os tempos, inclusive os que ela não testemunhou ou nunca poderá testemunhar, mas que são igualmente verdadeiros.

 

 

O ponto alto do livro é a capacidade de a autora nos transportar com suas palavras, que entremeiam diferentes registros e tempos verbais e compartilham com o leitor momentos sensíveis e ideias sofisticadas com a mesma precisão.


“Mãe não tem limite,/ é tempo sem hora” são versos do poema de Drummond usado como uma das epígrafes do livro, em que o eu-lírico expressa o desejo de que houvesse uma lei para as mães nunca morrerem. Em “Ressuscitar mamutes”, embora a figura materna morra quase sem aviso, sua ausência é ponto de partida para integrá-la ao tempo contínuo do texto. Na tapeçaria tecida por Silvana Tavano, vemos surgir uma mãe caleidoscópica, de presença atemporal. Uma mãe simultânea à escrita e a todas as leituras futuras desse primoroso romance.

 

Fernando Rinaldi é formado em Relações Internacionais (PUC-SP) e Letras (USP), mestrando pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP e autor do romance “Dueto dos ausentes” (Reformatório)

 

Silvana Tavano

Silvana Tavano

Paulo Vitale/divulgação

 

Entrevista/ Silvana Tavano (autora de “Ressuscitar mamutes”)

 

Por Carlos Marcelo e Fernando Rinaldi, Especial para o EM

 

Qual o ponto de partida de “Ressuscitar mamutes”?


O livro nasceu do meu interesse pelas questões relativas ao tempo, um tema presente em muitos dos meus livros para crianças e jovens; também no meu primeiro romance – “O último sábado de julho amanhece quieto” - é o tempo que move a narrativa. Vinha escrevendo textos breves sobre esse tema quando assisti a um documentário em que cientistas explicavam de que forma a pesquisa genética poderia contribuir para recuperar ecossistemas hoje devastados reintroduzindo ali grandes animais da megafauna, como os mamutes, que além de pastar e fertilizar a tundra, ajudariam a conter o degelo mantendo no subsolo a ameaça de gases tóxicos. Fiquei intrigada com a reportagem, e a ideia de buscar no passado soluções para o futuro disparou a narrativa desse livro.


As investigações sobre o tempo e sobre a figura materna são as forças que movem a escrita de “Ressuscitar mamutes”. Quais perguntas você se fazia e que tipo de respostas pensa ter encontrado?


Até que ponto podemos confiar nas memórias, as nossas e as coletivas? Será que “lembramos” também do que não vivemos? Acho que parti das mesmas perguntas que muitas pessoas se fazem; não só das perguntas, mas da sensação de que vivemos em tempos simultâneos – o passado, o presente e o futuro que acontecem ao mesmo tempo dentro da gente. E me vali da figura materna como uma personagem que encarna esses tempos imaginados. Mais do que respostas, ensaiei caminhos, hipóteses sobre como teria sido se ou como poderia vir a ser se.


O título do livro nasce de uma pesquisa científica verdadeira e se torna uma imagem para o que você faz na literatura: resgatar o passado dessa mãe com as lentes do presente da narradora, imaginando futuros. Em certa altura, você diz que “ciência e literatura viajam no tempo dos sonhos para chegar ao impossível”. Você acredita que literatura e ciência se aproximam pelas hipóteses?


Tanto a ciência quanto a ficção avançam a partir de perguntas para imaginar e inventar o que ainda não existe – a ciência produz conhecimento, inovações, descobertas; a literatura cria personagens, histórias, mundos. Não podemos dizer que elas se encontrem em um único ponto, mas talvez caminhem de mãos dadas, unidas pela curiosidade, criando narrativas que tentam explicar (ou recriar) o mundo.


Você já comentou que começou a escrever o “Ressuscitar mamutes” durante a pandemia, antes de saber que ele viraria um livro. Pode contar mais do seu processo antes e depois de qualificá-lo e pensá-lo como romance? O fato de ele abarcar outros gêneros literários, como pequenos ensaios, causou alguma dúvida ou hesitação em algum momento?


Muitas das leituras que fiz durante a pandemia - livros de ficção e não ficção - eram sobre o tempo e me levavam a escrever os trechos curtos que mencionei antes, textos que eu arquivava numa pasta batizada de “fragtempos”, porque eram fragmentos em torno do mesmo tema. Acho que comecei a entender o conjunto como um romance quando a personagem da mãe se embrenhou na narrativa colocando em cena passados e futuros inventados, e ainda de forma fragmentada, o que, para mim, tem tudo a ver com a própria ideia de tempo. A mistura de gêneros não foi intencional, mas ao longo do processo me convenci de que o ficcional, o ensaístico, o científico e o fabuloso se complementavam dando sentido ao que eu me propunha. Do ponto de vista formal, é um livro muito diferente do anterior, e imagino que também de um próximo romance.


Você tem livros infantis e juvenis que também investigam o problema do tempo. E, no seu romance anterior, “O último sábado de julho amanhece quieto”, os temas da maternidade e do luto também são abordados, embora de uma maneira diferente, sob a perspectiva de uma narradora que se descobre mãe ao mesmo tempo que perde o companheiro. Pensa que certas inquietações são recorrentes na literatura de cada escritor? Pode falar mais das suas, independentemente da forma que elas vêm a assumir no texto?


No livro “A louca da casa”, Rosa Montero cita Isaiah Berlin para dizer que existem dois tipos de escritores, os ouriços e as raposas. Ela explica: “Os primeiros se enrolam feito um carretel e estão sempre girando em torno do mesmo tema, enquanto as raposas são animaizinhos itinerantes que avançam sem parar por diversos assuntos”. Ela, Rosa, se reconhece como raposa, buscando e descobrindo “paisagens inesperadas” a cada novo romance. Já eu tenho o DNA do ouriço, sempre perambulando em torno das mesmas inquietações: o tempo, os ciclos, o começo e o fim de todas as coisas.


Você atua como docente no curso de formação de escritores do Instituto Vera Cruz. Quais os embates mais recorrentes entre o que os alunos pretendem expressar e o que foi efetivamente escrito? Como o contato constante com a escrita de outras pessoas ajuda a sua própria escrita?


Ler e comentar os textos dos colegas é parte essencial das oficinas. Mas não se trata de uma leitura banal: a ideia é observar e apontar o que deu certo ou não naquele texto – pode ser uma cena que parece apressada, o diálogo que soa artificial, uma personagem inconsistente etc. Ser capaz de perceber o que não está funcionando no texto do outro ajuda o próprio aluno a se ler cada vez melhor, e a sua escrita naturalmente amadurece. E sobre os embates, acho que mais complicado do que não conseguir se expressar com clareza é enfrentar os momentos de angústia em que a escrita não flui. Às vezes a gente precisa atravessar um deserto, e nunca é fácil. Mas também pode ser uma chance de refletir sobre esta ou aquela escolha ou até mesmo reavaliar o próprio projeto.


O que acredita ser possível e o que é impossível de ensinar?


É possível aprender a usar todas as ferramentas e técnicas narrativas necessárias para desenvolver uma ideia; também pode-se ensinar a ler e reconhecer esses instrumentos nos bons romances. Mas encontrar uma voz autoral exige disciplina, persistência, entrega e imersão. Escrever se aprende escrevendo.


Você estará na programação oficial da próxima Flip. O que espera de sua participação e da própria festa literária em Paraty?


Fiquei muito feliz com o convite, honradíssima por ter sido incluída nessa curadoria supimpa da Ana Lima Cecílio. Não tenho dúvidas de que a festa vai ser linda, a Flip é referência dos grandes encontros literários. Espero contribuir com as conversas e, principalmente, aprender com tantos escritores admiráveis que estarão por lá.


Lançamento em BH

 

Silvana Tavano estará em Belo Horizonte no próximo sábado (28/09) para lançamento de “Ressuscitar mamutes” no evento “Escrever juntas”. Será um bate-papo com a escritora mineira Isabela Noronha, autora de “Carlabê” (Companhia das Letras) na Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241). Após a conversa, a partir de 10h30, haverá sessão de autógrafos com as escritoras.

 

capa do livro "Ressuscitar mamutes"

capa do livro "Ressuscitar mamutes"

reprodução

 

“Ressuscitar mamutes”
• Silvana Tavano
• Autêntica Contemporânea
• 120 páginas
• R$ 59,80