"Búfalos selvagens"

crédito: Reprodução


Ney Anderson
Especial para o EM

 

Após três anos da publicação do livro anterior, Ana Paula Maia volta com o romance “Búfalos Selvagens”. É o encerramento da Trilogia do Fim, formada por “Enterre seus mortos” e “De cada quinhentos uma alma”, todos publicados pela Companhia das Letras. Nesta nova trama, o personagem mais emblemático da obra da autora, Edgar Wilson, dá continuidade ao percurso destroçado da sua existência.

 

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Na companhia, novamente, de Bronco Gil e do ex-padre Tomás, eles tentam viver, ou sobreviver, com o que restou do mundo logo após os eventos apocalípticos do romance anterior, quando o mundo entrou num cataclismo nunca antes visto. O recomeço é no conhecido Matadouro do Milo, no Vale dos Ruminantes, presente nas outras obras. O local, agora administrado por Rosário, esposa de Milo, funciona como espaço de criação de búfalos, onde a mulher passa a trabalhar em sociedade com Edgar e companhia.


O que parecia um recomeço sem grandes problemas, no entanto, já se revela não tão simples assim. Logo no início, Edgar se depara com um palhaço morto na estrada, funcionário do Circo das Revelações, que está instalado nas proximidades do matadouro. A cena inicia uma série de eventos e tramas, porque o circo não é um espaço comum de entretenimento, mas um lugar onde é prometido direcionamentos espirituais por meio da vidente Azalea. Uma menina, não mais do que uma adolescente, que habita o misterioso universo do circo, arrastando uma verdadeira multidão de fiéis, entre outras esquisitices.

 


Ana Paula eleva ainda mais o estranhamento neste novo livro. Ele é mais potente. Como se depois da névoa e do apocalipse presente em “De cada quinhentos uma alma” surgissem figuras deixadas pelo evento anterior. Essa nova obra tem um tom bíblico e espiritual mais entranhado nos seus personagens, com um clima sempre hostil pairando em toda a trama. O que vem depois é uma incógnita, com os vários pecados íntimos que os homens carregam pouco a pouco revelados, não de forma explícita. A trilogia, aliás, tem essa perspectiva particular em primeiro plano, conduzindo a trama em boa parte, com elementos não apenas metafóricos da maldade, do terror e da morte rondando todos eles.


Em “Enterre seus mortos”, o início da trilogia, Ana Paula Maia mostra o significado da degradação da vida, tanto dos animais quanto dos homens, quando o corpo se torna inevitavelmente um estorvo. Edgar trabalha para uma empresa como removedor de animais atropelados nas estradas, recolhendo diariamente os bichos mortos, levando-os para serem triturados num moedor.

 

 

A rotina é abalada quando ele encontra dois corpos humanos na mata que circunda a região, ambos assassinados. Os amigos se deparam com figuras inescrupulosas, médicos mafiosos, que querem comprar os corpos para fins diversos. O leitor acompanha a saga de Edgar com Tomás para dar um fim digno aos mortos, como se a alma dos que já partiram precisassem desse final de ciclo para, enfim, descansar.


Já no romance seguinte, “De cada quinhentos uma alma”, publicado em 2021, a autora mergulha mais uma vez no mundo seco, sombrio e desolado. A humanidade está em via de extinção por conta de uma pandemia e pelas ações desumanas do governo. Os personagens estão caminhando para o fim. Edgar que antes recolhia animais mortos nas estradas, agora precisa recolher pessoas que sucumbem aos montes todos os dias, na companhia dos dois amigos.

 

O apocalipse proposto pela autora neste livro ganha contornos terrenos através do homem que se destrói, apenas com o gatilho de uma pandemia. É a consciência do caos divino afetando diretamente a criação humana, errônea, por isso fadada ao aniquilamento. O céu e o inferno lutando no mesmo chão em mundo fadado à escuridão.

 

Ana Paula Maia

Ana Paula Maia é vencedora duas vezes do Prêmio São Paulo de Literatura

PABLO CONTRERAS/divulgação


Apocalipses íntimos


Então, o cenário em “Búfalos Selvagens”, claro, é pós-apocalíptico, com os habitantes desta história tentando se reencontrar consigo mesmo, reconstruir a vida após os eventos anteriores, buscando o oásis no deserto da alma. O aspecto religioso é diferente dos livros predecessores, sem querer ser jamais catequista, até porque, a fé das pessoas neste romance caminha por conceitos opostos e bem particulares. Numa trama cheia de mistérios, de apocalipses íntimos, eles vivem um novo tempo, tendo que conviver com a atual realidade, com o fim das coisas como até então eram conhecidas. As histórias dos três livros se conectam muito bem. Nesse “Búfalos Selvagens” entra mais o suspense, com o medo sendo melhor trabalhado. É uma obra sobre sobre fins e recomeços.


A fascinação de Edgar Wilson por animais selvagens, por exemplo, combina com o seu espírito agreste, comum aos outros companheiros. Todos com a mesma natureza animalesca. Com um detalhe que diferencia o humano do bicho: Edgar mata, mas carrega a fé no sagrado. Alguém que abate animais, mas que encomenda a alma do bicho para o divino, sussurrando orações no ouvido dos búfalos antes de abatê-los.

 


Ainda mais agora, ao lado de um circo de milagres e aberrações. E também com uma estranha igreja no mesmo espaço da fazendo, templo adornado com ossos humanos, onde o personagem Tomás faz as suas preces, pedindo aconselhamento e proteção ao mundo espiritual, mas não deixa as armas terrens longe do alcance das mãos.


No entanto, nada em “Búfalos Selvagens” é o que parece ser. No ambiente único criado pela autora, o ambiente se mostra completamente ligado com o estado de espírito dos personagens arcaicos. Edgar é um tipo peculiar, arisco. Um personagem central na obra de Ana Paula. Alguém de atmosfera rude, mas com todas as inquietações humanas. Ele é um personagem caçador por natureza, sempre à espreita de surpresas.


Existe na obra um clima permanente de desassossego. A narrativa de Ana Paula Maia arrasta o leitor para dentro daquele universo, sobretudo porque existem entrelinhas muito potentes, na sugestão do não dito de um mundo paralelo, povoado por homens fragmentados. Fraturados sobretudo na alma, depois do mundo que não é mais o mesmo. São seres arredios, iguais aos búfalos. De violência velada e inconformados. O evento presente em “De cada quinhentos uma alma” atingiu cada um deles de uma forma diferente, acentuando a essência que sempre carregaram.


A morte acompanha Edgar Wilson. A fé de Tomás se sobrepõe à razão. E Bronco Gil faz da sua rotina uma tábua de salvação. Todos eles alimentam a devoção na vida e carregam essa missão até o limite. Vivem ser saber para quê, para qual caminho seguir, mas vivem mesmo assim e fazem questão disso.

 

O texto de Ana Paula mergulha na mente dos personagens e o leitor passa a entender melhor as possíveis contradições. Praticamente não se tem notícia do mundo para além do cenário no qual estão inseridos. Nem mesmo o rádio funciona direito. Parece que estão numa espécie de limbo, com as próprias vidas se cruzando nas estradas, transmutando os reflexos do que eles já foram um dia.


Os personagens de “Búfalos Selvagens” buscam dar um sentido à vida e compreender o que acontece, e tentam, com isso, encontrar a paz. Mas a natureza deles, reforçada com o carma que carregam, é mais forte do que uma simples e tranquila reconciliação com o mundo. A autora pode ter até encerrado essa trilogia, mas a história de Edgar Wilson, junto com os companheiros de uma vida, ambientado nesse universo peculiar, parece que está longe de acabar.

 

NEY ANDERSON é jornalista e escritor, editor do site angustiacriadora.com (@angustiacriadora)

 

“Búfalos selvagens”
• Ana Paula Maia
• Companhia das Letras
• 136 páginas
• R$ 69,90