Antonio Candido (1918-2017): anotações do crítico literário são lidas por Matheus Nachtergaele no filme de Escorel -  (crédito: Arquivo)

Antonio Candido (1918-2017): anotações do crítico literário são lidas por Matheus Nachtergaele no filme de Escorel

crédito: Arquivo


Eduardo Escorel
Especial para o EM

 

Em janeiro de 1997, prestes a fazer 79 anos, Antonio Candido escreveu à mão “O pranto dos livros” em um de seus cadernos de anotações – texto breve em que o narrador, já morto, imagina estar “fechado no caixão” à espera da vez de ser cremado “enquanto seus livros choram lágrimas invisíveis de papel e de tinta... Será o pranto mudo dos livros pelo amigo pulverizado que os amou desde menino, que passou a vida tratando deles, escolhendo para eles o lugar certo, removendo-os, defendendo-os dos bichos e até os lendo.”

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia

 

O lamento foi escrito vinte anos antes de Antonio Candido morrer, quando ele tinha a mesma idade que eu tenho hoje – mera coincidência, mas dá o que pensar. Foi o abalo emocional que senti ao ler “O pranto dos livros” pela primeira vez que levou o documentário “Antonio Candido, anotações finais” a ser o relato de um morto.

 

Tributário, sem dúvida, de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, mas primordialmente do próprio texto de Antonio Candido em que ele imagina livros que “choram o amigo que atrasava pagamentos de aluguel para comprá-los, que roubava horas ao trabalho para procurá-los, onde quer que fosse…”. Daí o documentário ser narrado na primeira pessoa pelo protagonista já falecido, sem quaisquer interferências de terceiros na forma de entrevistas.

 


Ter lido os cadernos 89 e 90 nos quais “Antonio Candido, anotações finais” é baseado foi um privilégio que acarretou responsabilidades. Minha impressão foi, além de um documento importante, serem obra literária preciosa que inclui reflexão rara sobre a iminência da morte, entre vários outros temas. Leitores, assim como espectadores, uma vez transposto o texto para cinema, teriam acesso ao pensamento do autor durante o ano e meio final de sua vida, de 13 de novembro de 2015 até 28 de abril de 2017, apenas 14 dias antes de morrer.

 

Tratando-se de Antonio Candido, o que o documentário a ser feito poderia revelar era nada menos do que excepcional – em resumo, a amplitude e variedade de suas preocupações por meio das quais é possível conhecer um ser humano de qualidade superior e sabedoria incomuns.

 


Com a morte de Antonio Candido surgiu na família, tendo à frente Laura Escorel, sua neta que morava com ele desde 2013, a ideia de preservar em imagens gravadas o aspecto do apartamento onde ele morou 21 anos; fazer cópia digital e organizar o acervo de cerca de oito mil fotografias dele e de Gilda, sua mulher; além de dar destino à biblioteca que assegurasse sua integridade.

 

Sem ter participação nessas tarefas, acabou cabendo a mim, meio por acaso, dirigir a gravação do apartamento e o registro fotográfico dos percursos que Antonio Candido fazia a pé, nas redondezas do prédio onde morava.


A partir de 2017, dediquei sete anos, em grande parte, à realização de “Antonio Candido, anotações finais”, inclusive durante a pandemia quando Laís Lifschitz e eu montamos à distância o documentário. Passei, a partir de então, a me preocupar cada vez mais com minha própria morte, a pensar na sua inevitabilidade e nos saudosos amigos com os quais me iniciei no cinema e morreram ainda moços.

 

 

Mantenho à minha frente na escrivaninha, logo abaixo da tela do monitor, uma ficha pautada 6x9 onde anotei o que Antonio Candido escreveu entre parênteses em 19 de maio de 2016: “O lento e incessante despovoamento do mundo a que pertencemos começa de repente a se acelerar” – aceleração que começou cedo demais para mim, com a morte de Glauber Rocha, em 1981, e ganhou velocidade com as de Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade na mesma década.


A imagem que acompanha a anotação feita em 19 de maio é a fotografia, de 1956, em que Antonio Candido está de chapelão e paletó, sem gravata, no portão aberto da ponte de madeira, perto de Cássia, no sul de Minas Gerais – ele estava na região para se despedir da Fazenda da Prata, antiga propriedade do seu avô homônimo, Antonio Candido de Mello e Souza, prestes a ser submersa pelas águas que a Usina de Peixoto iria represar. Não há de ter sido à toa que foi feita uma foto quase igual, com uma diferença – a ponte está vazia, sem Antonio Candido. Junto com essa imagem se ouve em voz off, próximo ao fim do documentário, a anotação de 2 de abril de 2017: “Serei eu o último neto vivo do meu avô? É provável.”

 

EDUARDO ESCOREL é montador, cineasta, professor e autor do livro “Adivinhadores de água: pensando no cinema brasileiro”

 

No filme

 

“Na madrugada de 12 de maio, oito meses antes dessa tarde de chuva em São Paulo, eu morri. Ao morrer, deixei meus cadernos de anotações no armário do corredor interno do apartamento onde morava há 21 anos. Comecei o primeiro caderno aos 15 anos, quando cursava o quarto ano ginasial, seguindo a recomendação de minha mãe, Clarice, uma mulher luminosa e grande leitora. Foi ela quem me aconselhou a registrar minhas impressões de leitura quando viu que eu estava resumindo, por escrito, um texto de divulgação sobre filósofos gregos. Nas décadas seguintes, destruí muitos desses cadernos em rompantes negativistas.”

 

Matheus Nachtergaele, que faz a interpretação dos textos de Antonio Candido, morto em 2017, aos 98 anos, no filme de Eduardo Escorel

 


“Antonio Candido, anotações finais”(Brasil, 2024, 87min)
• De Eduardo Escorel
• Narração de Matheus Nachtergaele
• Em cartaz em cinemas de Poços de Caldas, São Paulo e Rio de Janeiro a partir de 26 de setembro; a partir de 3 de outubro em Belo Horizonte.
• Sessões com debate com o diretor na próxima quinta-feira (26/9) em Poços de Caldas, no IMS, às 19h, com Maria José de Souza e no dia 2/10 em BH, às 20h, no Minas Tênis Clube, com Cláudia Mesquita.