Luna Vitrolira, expoente da poesia pernambucana: um Brasil ainda pouco visto em nossa produção poética surge em

Luna Vitrolira, expoente da poesia pernambucana: um Brasil ainda pouco visto em nossa produção poética surge em "Memória tem águas espessas"

crédito: josé de holanda/divulgação


Edma de Góis
Especial para o EM

 

No momento em que parte da autoria brasileira contemporânea reivindica para si o empenho de resgatar o passado dos escravizados sequestrados para o Brasil e criar narrativas de “imaginação da liberdade”, para utilizar um termo da teórica e professora da Universidade de Columbia, Saidiya Hartman, Luna Vitrolira apresenta uma poesia que faz elo entre o continente africano e uma geografia específica do Brasil, a Zona da Mata de Pernambuco. Assim, seu livro “Memória tem águas espessas”, lançado este ano pela editora Diadorim, acrescenta um acento bem-marcado à produção de poetas negras, ao trazer experiências de heranças africanas, realçando um Brasil ainda pouco visto em nossa produção poética recente.

 

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O corte da cana, por exemplo, imagem comum para quem conhece a realidade de trabalhadores e trabalhadoras dos canaviais, mistura-se com o passado do escravismo por meio de uma temporalidade que é, ao mesmo passo, o tempo de quem escreve e o tempo do poema. Pernambuco e África são anunciados já na largada do primeiro poema que diz: “minha família veio num desses / que não afundaram / com a tempestade”. É dele também que se extrai o título da obra: “difícil encontrar os ossos/ e as pedras que dirão de nós/ memória tem águas espessas”.

 


O livro vale-se das epígrafes, recursos preciosos de apresentação de textos, para colocar o leitor diante do baque que os aguarda. O poeta Solano Trindade, as escritoras Geni Guimarães, Noémia de Sousa e o artista Mestre Anderson Miguel são os nomes de referência que enfeixam o princípio dos poemas do segundo livro da artista – a ancestralidade que contorna a existência do eu-lírico da poesia de Vitrolira.

 


As perdas somadas, de território, da família, da própria língua e do nome, perpassam os poemas feito linha invisível, porque são violências perpetuadas até hoje. Um sintoma disso é a adoção de nomes que remetem às origens ou linhagens familiares por teóricas como Hartman, bell hooks e Gloria Anzalduá. Nomear faz parte não só da existência como também do reconhecimento do indivíduo pelo outro que evoca seu nome. “(...) perdemos nosso nome/ idioma-território-palavra/ a des lembrança e seu des serviço/ des lembrança e seu des serviço/ des lembrança e seu des serviço”.


Menção importante é que a poesia de “Memória tem águas espessas” se ocupa de diferentes experiências radicadas na palavra falada, sejam as vivências da poeta com maracatus, com a poesia de improviso ou o canto. O resultado é uma obra em diálogo com diferentes texturas artísticas, o que também convoca o leitor a caminhar além do livro. Não à toa, seu trabalho anterior, “Aquenda: o amor às vezes é isso” (Editora Livre, 2018), desdobrou-se em várias ações artísticas, confirmando o gesto de Vitrolira como uma artista-etc.

 

Uma das principais vozes da poesia em Pernambuco na atualidade teve o primeiro livro finalista do Prêmio Jabuti de 2019 e também produziu um disco homônimo. Em 2023, Vitrolira subiu ao palco principal da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) com a performance que compõe o mesmo projeto. Ela também está à frente do projeto “Mulheres de Repente”, da qual faz parte a Mesa de Glosas do sertão do Pajeú, modalidade de poesia de improviso.

 


Todos esses dados biográficos (entre outros que alargariam este texto, Vitrolira é também atriz, produtora e professora de literatura brasileira) deslizam para a nítida sonoridade dos poemas, não apenas porque na gênese da lírica está o canto, mas porque, como vemos, sendo uma experiência afrocentrada e decolonial, não pode ainda ser separada do corpo da mulher que escreve.

 

Em outra chave crítica, é possível acrescentar que Vitrolira põe em execução uma expressão de um eu que se debruça sobre si mesma para amplificar a voz de mulheres e homens subtraídos de sua humanidade. Uma experiência hedionda e comum, mas que quando transformada em matéria literária, não pode prescindir de quem fala, afinal como a poeta pontua: “eu não sou a história do outro”.


EDMA DE GÓIS é jornalista, doutora em Literatura (UnB), com pós-doutorado em Literatura e Cultura (UFBA) e em Estudo de Linguagens (UNEB)

 

Trechos

 

I.
eu sou a foice
o ferro e o passado dessas águas

II.
o continente se levanta
e se recria

eu sei dos Malês
da revolução de Goiana
da junta do Beberibe
da rebelião dos Romas

da chacina de trucunhaém
das mulheres de tejucupapo

minha alma Palmares
meu sangue Catucá
sonhou quariterê

carrego nos dentes
a revolta do engenho Santana
a revolta dos búzios
a revolta das carrancas

nenhuma guerra será justa
nenhuma guerra será santa

eu também sou a revolução pernambucana
jamais vencida
e o desejo e libertação
ateando fogo
nessas turbinas


III.
sei pelas terras do passado
guardadas
debaixo das unhas

não tem banho demorado que tire
é de família

IV.
há séculos moramos na raiva
pelos que atravessaram
tantos caminhos
de água e cana

há século morremos vendo
o corpo escanzelado
de nossa genealogia

cantando um grito seco
no porão das embarcações

há séculos nascemos
qual bicho de carga
arrancados

de um ventre marcado à ferro
de uma vagina cortada a faca

há séculos levamos flores à sepultura
da gente branca

desejando vestir sua pele
lustrar suas máscaras

seus contos de violação dessangram

o pai-nosso e as velas
o pai-nosso e as velas
o pai-nosso e as velas

há séculos

 

Capa do livro MEMÓRIA TEM ÁGUAS ESPESSAS

Capa do livro MEMÓRIA TEM ÁGUAS ESPESSAS

Reprodução


MEMÓRIA TEM ÁGUAS ESPESSAS
• De Luna Vitrolira
• Diadorim
• 117 páginas
• R$ 50,00