Alícia Duarte Penna -  (crédito: Paulo Schmidt/Divulgacao)

Alícia Duarte Penna

crédito: Paulo Schmidt/Divulgacao


Ana Elisa Ribeiro

Especial para o EM

 

Embora seja ideia corrente que a poesia não vende, que tem desempenho comercial complicado e ruim, é verdade que poetas provavelmente não estão dispostos (e dispostas) a deixar de escrever e publicar, a despeito da perspectiva desanimadora, do gargalo fechado das editoras grandes e das dificuldades da educação formal em abordar o gênero nas salas de aula, com isso tornando a formação leitora menos poética e talvez mais algorítmica, em tempos de fórmulas e cópias.

 

O fato é que, na contramão e ainda bem, muita gente escreve e publica poesia, e que são as editoras ditas independentes ou pequenas que continuam fomentando e encorajando essa produção. É muito improvável que um ou uma poeta, hoje, se tiver um livro publicado em editora de grife, não tenha antes uma história larga (ou breve) e interessante com editoras pequenas. A maioria dos poetas, no entanto, passará a vida publicando em pequenas tiragens, em selos quase locais, sem grandes problemas. Geralmente, isso também significa produzir livros de qualidade gráfica e literária que não ficam a dever nada a uma produção mais industrial, embora os alcances possam ser bem diferentes.

 

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“Origem-destino” é o terceiro poemário de Alícia Duarte Penna, poeta mineira de Belo Horizonte que transitou entre revistas literárias, jornais, antologias e colaborações com outros artistas. O livro está dividido em três partes (com 40, 21 e 3 poemas), somando 64 textos distribuídos em 129 belas páginas publicadas pela fantástica Impressões de Minas. A editora tem feito livros cuja materialidade importa, isto é, dedica-se à execução de projetos gráficos cuidadosos e notáveis, somando à poesia uma camada de sentidos gráficos, expressos em cores e papéis especiais, texturas e dobras surpreendentes.

 


No mar de livros de poesia publicados atualmente, Alícia Duarte Penna se destaca. A voz poética irônica, às vezes debochada, de riso entredentes e sussurros maliciosos, torna a leitura de “Origem-destino” um passeio à beira do divertido, sem perder de vista a crítica social e o comentário afiado do nosso tempo. O livro é composto também por dois posfácios: um breve texto do poeta e editor Mário Alex Rosa e um longo ensaio do professor Teodoro Rennó Assunção, da UFMG.

 


Além de uma esperta e aparente simplicidade, da inspiração na oralidade, de referências musicais e populares, a poesia de Alícia Duarte Penna é refinada, o que não quer dizer empolada nem difícil. Seus comentadores apontam suas qualidades, dando exemplos e mencionando um elemento que me parece fundamental: a reflexão da voz lírica sobre a condição de mulher, sem que isso a traia ou a lance ao lugar da doçura e da delicadeza feminis. Não, essa voz poética prefere, por vezes, o sarcasmo e o grito. Está expresso na página 65: “(sussurro onde – ouça! – urro).


Outro elemento temático, mas também formal, que vale mencionar em “Origem-destino” é a metalinguagem e mesmo a metaedição. Diversos poemas refletem sobre a linguagem, a poesia, o escrever e a feitura do próprio livro, numa espécie de dobradura do processo editorial sobre si. Frequentam também a obra a cidade, o país, o mundo, passado e futuro, a juventude, o envelhecimento, certo desalento, algum desapego e o desejo de que a poesia desafie os arautos do livro comercial, simplesmente existindo por aí, posta à venda e circulando pelas redes sociais. Vale desacelerar o tempo e mergulhar nas origens e nos destinos, projetados e a projetar, de Alícia Duarte Penna.

 


poemas de “origem-destino”

Crio vésperas

 

Depois das partidas do pai,
da mãe, do navio.
Depois dos fins das terras,
das bandeiras, do horizonte.
Depois de escritas uma, duas,
quarenta e dez histórias,
apronto uma viagem.
Tudo para até que eu volte.
As abelhas desocupam-se.
As mulas têm o lombo nu,
nuas pela primeira vez.
Os ponteiros arrastam-se
em horas de verão.
A custo compro o xampu
A custo embalo o xampu.
Empilho as roupas na mala cinza.
Estas mesmas roupas, vestidas,
estes sapatos mesmos, calçados,
os óculos.
Até a volta, pronuncio,
despedindo-me de mim,
que temo ser eu,
inamovivelmente.
Apenas desta vez vou voando
(não a pé)
e não deixo migalhas de pão pelo caminho,
Elizabeth.


Sargasso Sea

 

Enquanto chove, o mar está calmo.
O que o mar traz quando chove:
emaranhados verdes, de outros verdes
(mesmo o mais claro é de água, não de pássaro ou folha,
sem amarelo que convença em composição com o azul,
e o mais escuro é verde-roxo, vermelho de verdes somados,
de- e re-compostos, concentrados em poção, elixir, veneno).
Traz uma xícara, um frasco de xampu, aberto,
troncos naufragados e salvos mil vezes,
nos quais buscamos nervosamente o sinal
de alguma civilização, não obstante incomunicável.
Entre o mar e a vila, na distância vazia,
corro, corro, corro,
desprendendo-me
(essas pernas herdadas de outro corpo
_ o corpo do pai).

Nesta folha em branco
querem escrever outras mãos outras palavras,
perdidas estas medidas,
afastado este véu,
pulada esta janela e, dela,
esta cerca, fronteira
que me separa das amantes, das loucas, das desesperadas
e, do grito, este silêncio que ainda é meu e ouço.
Por isso este poema escrevo
em voz alta, aos teus ouvidos,
beijada a tua boca, leitor,
com esta língua escrita por outras mãos nas tuas.
Me quererás?
Ou preferes tu que tudo se resolva com palavras?
Que no princípio e no fim seja o verbo
_ papel e tinta encerrados em capa?
Pois vou eu à luta:
corpo, sangue, cabelos.


Estonteante

 

Pudesse ter um leão em casa,
ser estonteantemente feliz.
A vida numa linha,
segura e solta
ao vento que não cessa
_ e o leão em casa.

 

poema inédito

 

(do livro “No espaço”, a ser lançado em 2026)


Esta uma árvore

Fica esta uma árvore
(no feminino que lhe designam),
à beira do abismo,
torcida pelo vento,
tomada por alguma praga, labareda,
seu tronco aberto à dissecação.
Dramática a examino (dramática a descrevendo),
até descobrir que sua seiva esperta
esgueira-se pelo pouco que lhe sobra
até as folhas sem esforço,
verde-lumes, lá em cima.

Fica onde estanco, inexperta,
olhando ao longe e abaixo,
sem dispor de asas,
quanto mais trupe, caravana,
esta árvore, uma
(quase única),
no ponto de onde decido voltar,
fica.

 


Sobre a autora

 

Nascida em 1962 em Belo Horizonte, Alícia Duarte Penna publicou “Duo terno e gravata” (independente, 1984), “Quarenta e dez poemas” (Scriptum, 2012) e “origem-destino” (Impressões de Minas, 2023). Seu próximo livro, “No espaço”, sairá em 2026. No dia 29/11, às 10h, a poeta estará na FALE-UFMG, no “Encontro com o extremo contemporâneo”, organizado pela Profa. Silvana Pessoa.

 

Capa do livro "origem-destino"

Capa do livro "origem-destino"

reprodução


“origem-destino”
• De Alícia Duarte Penna
• Impressões de Minas
• 136 páginas
• R$ 55