Ilustração de Samuel Casal
 -  (crédito: Samuel Casal)

Ilustração de Samuel Casal

crédito: Samuel Casal

 

Tadeu Sarmento
Ilustrações de Samuel Casal


I

Vamos deixar claro: na época em que se passa a primeira parte desta história (1515, início do século XVI), os humanos ainda apreciavam dar presentes raros & grandiosos uns aos outros. &, como é raro ver elefantes zanzando pelas ruas de Lisboa, o Rei de Portugal mandou buscar um nas selvas de seus domínios na Índia. Para presentear o Papa em Roma. Foi aí que começou a confusão. ¶ Por quê? Explico: ao menos, o Rei sabia o que era um elefante? Ótima pergunta, não é?

 

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¶ Bem, saber, saber mesmo, não sabia, pois nunca tinha visto um elefante pessoalmente. Mas ele leu um pouco sobre elefantes nos antigos bestiários, enciclopédias & relatos de viagens daquele século & dos anteriores. ¶ Por exemplo: sabia que elefantes são grandes. Isso era fácil & ele sabia. Que elefantes têm enormes orelhas de abanar; presas; pele cinza-espessa ou branca; trombas & pés redondos. De resto, o Rei era o Rei. Que tipo de Rei não conheceria tudo o que existe no mundo por ele conquistado? Então, mandou a carta.

 

 

¶ Eu mesmo a li, esticando os olhos por trás dos ombros do Governador da Índia de Portugal, em Goa. Nas tintas, o Rei acrescentava mais um capricho: queria um elefante branco, sinal de que o Papa reinaria justo & poderoso, com Roma coberta de paz & prosperidade. & ponto-final. ¶ “Mas onde vou arranjar um elefante branco a esta hora da noite?”, perguntou baixinho, balançando a cabeça com a carta nas mãos, o Governador.


II

Bom, já que falamos em “bestiário” lá em cima, deixem--me explicar. Monges lá do século XII adoravam escrever bestiários, pois tinham tempo & imaginação suficientes. Mas, com o final da aventura que relatarei, esse tipo de texto vai deixar de ser lido. ¶ Antes de dizer por quê, responderei à pergunta: o que é “bestiário”? ¶ Nada além de uma lista que mistura animais que existem com animais que os monges juravam que existiam, sem que o leitor consiga distinguir qual é qual.

 

 

¶ Por exemplo: como diferenciar, em um bestiário, um unicórnio de um rinoceronte, se os dois têm um chifre só? Além deles, nos bestiários temos o Elefante, o Leão, o Centauro, o Pelicano, a Formiga-Leão, o Pégaso, a Gárgula, o Minotauro, o Basilisco, o Dragão, o Grifo &, claro, a Sereia. ¶ Eis os animais estranhos & outros nem tanto que apareciam nas páginas de um bestiário. ¶ Quanto aos elefantes, sabemos muito bem que, nas selvas da Índia, eles são conhecidos por guardarem toda a história do mundo na cabeça. São sábios, pacientes, bons conselheiros, amigos. Por aí vai.

 

¶ E mais: quando sopram suas imensas trombas, é sempre para alertar outros animais sobre incêndios, mesmo a centenas & centenas de quilômetros de distância. O que em épocas de verão pode significar a diferença entre morrer queimado & viver. ¶ Por isso, o Governador não queria capturar um elefante, menos ainda para enviar pelo mar até Lisboa, para de lá seguir viagem rumo a Roma. Que ideia do Rei! Além do mais, os elefantes são considerados animais sagrados, & o Governador já estava meio cansado de fazer todos os caprichos de um Rei tão infantil.

 

¶ Mas, se o pedido é de um rei, o que um governador pode fazer? Bom, eu tinha a solução. ¶ Quando queremos falar com os homens, esperamos a hora em que estão dormindo. Só nesse estado, entendem o que queremos dizer. Claro, a técnica só não é recomendada para os mosquitos, pois humanos têm o péssimo hábito de dar tapas neles sempre que passam zunindo pelos seus ouvidos. ¶ Bem, como não sou mosquito, desci da árvore de onde estava admirando a lua de madrugada & soprei no ouvido do Governador tudo o que ele deveria fazer. Ao se levantar no dia seguinte, ele estava com a ideia na ponta da língua. Achando que era ideia dele, ainda por cima.

 

¶ Em seguida, corri à floresta para avisar Jaffar sobre o meu plano. Sendo o elefante mais velho de toda a Índia, Jaffar era uma espécie de líder para nós, pois era muito respeitado por sua memória & sabedoria. ¶ Jaffar tinha uns oitocentos anos, no mínimo, &, antes de viver nas selvas de Goa, tinha servido aos grandes conquistadores da Antiguidade como máquina de guerra. Colocavam sobre ele uma grande torre de madeira da qual os soldados lançavam dardos & flechas durante as guerras. ¶ Nem bem contei minha ideia & ele assentiu com a cabeça, mas dizendo que antes precisava combinar com Hanno & Ganda para ver se aceitariam ser trocados, já que os humanos do Reino não saberiam a diferença entre um & outro.

 

Sobre o livro e o autor

 

“A viagem de Hanno & Ganda” narra – em tom de fábula – a história de um inusitado presente dado pelo rei de Portugal, em 1515, ao papa, em Roma: um elefante, animal inexistente na Europa. O pedido é feito ao Governador de Goa, numa Índia dominada por Portugal e, para garantir que o presente seria exatamente o encomendado, seria necessário consultar os bestiários, publicações que representavam animais desconhecidos aos olhos europeus.

 

“Foi pesquisando para um romance adulto que acabei conhecendo esse fato histórico maravilhoso, e, assim que tomei conhecimento da história, enxerguei ali um tema bem bacana para lidar em um livro para crianças e jovens: a diferença entre fato e ficção, verdade e fantasia, ciência e imaginação, poder monocrático e democracia. Tudo isso com animais falando, como uma fábula”, conta o autor, Tadeu Sarmento, em entrevista publicada no site da editora Peirópolis.

 

Nascido no Recife, Sarmento mora em Belo Horizonte e publicou quinze livros, entre eles “Associação Robert Walser para Sósias Anônimos”, “E se Deus for um de nós?” e o juvenil “O cometa é um sol que não deu certo”, vencedor do 13º Prêmio Barco a Vapor em 2017. Também venceu, com “Meu amigo Pedro”, em 2023, prêmio da Biblioteca Nacional. O ilustrador Samuel Casal nasceu em 1974, em Caxias do Sul (RS) e mora em Florianópolis. No trabalho como artista visual há mais de trinta anos, já venceu oito troféus HQMIX e, em 2013, recebeu o Prêmio Jabuti.

 

“Percebi que o grande desafio na abordagem do texto seria justamente o de representar as criaturas de forma menos contaminada pelo conhecimento visual e diminuindo as referências deimagens que já temos prontas na nossa cabeça. Para isso, eu escolhi uma técnica onde não fosse possível controlar completamente o traço, deixando assim as artes sujeitas a acidentes e passíveis de mudanças de direção durante o processo” afirma Casal, também em entrevista no site da editora.

 

Capa do livro "A viagem de Hanno &Ganda"

Capa do livro "A viagem de Hanno &Ganda"

reprodução

 

“A viagem de Hanno & Ganda”
• De Tadeu Sarmento
• Ilustrações de Samuel Casal
• Peirópolis
• 64 páginas
• R$ 66
• Lançamento neste sábado, às 15h, na Livraria do Belas (Rua Gonçalves Dias, 1581, Lourdes, Belo Horizonte)