“Ela mesma criou”
Minha mãe era natural daqui mesmo, habitava a região de Igrejinha. Ela nasceu lá pro lado do Angical. Uma moça órfã, causa que a mãe dela morreu – quando era ainda criancinha, d’uns quatro aninhos – no parto do irmão. O pai era muito cachaceiro, não deu para criar ela, nem o irmão pequeno. Eles foram criados pelos avós. Quando mãe tava com idade de 12 pra 13 anos, seu avô foi preso e a sua avó morreu, por isso ela foi acabar de criar com o padrinho. Naquele tempo, se faltasse mãe, pai, avô e avó, quem criava eram os padrinhos. A família determinava, era a lei da Igreja Católica.
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D’uns tempos, ela ficou moça e arranjou namoro com meu pai em festa famosa: festejo de Santa Cruz. Foi aí que o padrinho dela soube do namoro, brigou com ela... Disse que não abençoava o casamento porque meu pai era muito novo, moleque. Apois, num dia, ela saiu da casa do padrinho e foi morar com a avó paterna: Maria de Brito. Lá meu pai pediu o casamento com ela – a véu. O padrinho dela não aceitou, nem foi. Minha mãe casou tendo 22 anos com meu pai de 18: – Ocê é parecida com seu pai. Até as estripulias de seu pai cê tem, Geralda. – Quando a mãe tava assim, tranquila, ela contava história.
Meu pai? Não nasceu por aqui: veio criança de Paracatu de Seis Dedos – perto de Pirapora. A mãe dele faleceu e um fazendeiro da Cuia – que era desses do Ramalho, povo rico – trouxe ele pra criar ainda criancinha. Hem? Não sei se eram aparentados não.
Desde jovem meu pai era vaqueiro desse padrinho dele, Claudemiro, que era casado, mas não teve filhos. Meu pai cresceu em fazenda plantando lavoura e cuidando do gado. Não! Ele não era dono de terra, só que tinha um pouco de gado e criava cabra.
Dizia minha mãe que ele caducava comigo uma coisa mais terrível! Quando ele chegava em casa, ela tinha o direito de me pegar só pra dar de mamar: – Ah, ando demais, passo o dia quase fora. Eu tenho que ficá com minha fia a hora que eu chego – ele dizia.
– Geralda, se seu pai fosse vivo, cê não prestava pra nada! Ô homi que tinha uma loucura – a mãe falava assim...
Um dia, meu pai chegou apavorado do campo: deixou o gado solto e entrou em casa pra me ver. Ele carecia de me ver antes de prender: – Antônio?! Vai prendê o gado! Depois cê vem pegá essa menina...
– Ê, já vou prendê o gado! Só vou dá um cheirinho... Sabe o que vai acontecê?! Eu vou mandá fazê uma ponta de cabresto bem grande, pra deixá o cavalo lá fora do terreiro e vir desfiando o cabresto até na rede de minha fia, dentro do quarto.
Minha mãe pensou que era brincadeira dele! Daí a pouco, ele chegou com um cabresto feito com essa ponta enorme de couro cru, trançado. Ele descia do cavalo e vinha puxando a corda do cabresto até a minha rede.
A mãe ficava admirada: – Como uma pessoa tem uma cabeça dessa?! Por causa dessa menina fazê um cabresto desse comprimento?! – Ele respondia só: – É porque não posso deixá o cavalo saí do lugar. Eu tando, eu puxo na corda.
Deus chamou ele quando eu tinha quatro meses. Meu pai faleceu com 20 anos. Só teve eu – filha pequenininha. Ele tava com 2 anos de casado quando começou com pneumonia, uma dor no peito e deu uma doença: vomitava sangue vivinho.
Dava febre muito alta – ele foi morrendo... Minha mãe contou que quando ele tava passando mal-mesmo-de-morrer, ele levantou da cama, foi na rede e falou assim:
– Maria, vem aqui! Eu não vou escapá dessa... Não tem como eu escapá... Já tô quase finalizando. Mas você vai cuidá da minha fia direitinho, e se ocê não dé conta, dá ela pra meus padrinho criá, como me criou. Porque é muito difícil pr’ocê criá uma menina sozinha, sem tê ajuda...
– Eu não vou dá minha fia não, que eu só tenho ela... Como é que eu dô?! – Ela não quis dar... Deu pra batizar, mas pra criar não! Ela mesma criou.
Sobre o livro
“A porta aberta do sertão – Histórias da Vó Geralda” é um livro que surge da transcrição dos relatos das falas de Geralda Brito de Oliveira, a Vó Geralda, que há 10 anos recebe na Fazenda Menino, no Noroeste de Minas, os caminhantes que realizam a travessia inspirada em “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Duas das caminhantes, Isla Nakano e Renata Ribeiro, se tornaram interlocutoras de Vó Geralda e são coautoras do lançamento da Relicário.
“A porta aberta do sertão– Histórias da Vó Geralda”
• De Geralda de Brito Oliveira, Isla Nakano e Renata Ribeiro
• Ilustrações de Paula Harumi
• Relicário Edições
• 244 páginas
• R$ 59,90