Poucos, ou talvez nenhum, confronto real da Guerra Fria tornou-se tema ou pano de fundo para tantos produtos culturais quanto a insistente e malograda investida americana no Vietnã. Sob os holofotes da música, cinema, literatura e da contracultura de uma forma mais ampla, o conflito que se estendeu por duas décadas entre 1955 e 1975, porém, ofusca a desastrada tentativa francesa de manter seu controle colonialista ante o movimento Vi?t Minh.

 

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Lançado no Brasil este ano pelo Manjuba, selo de não ficção da editora Mundaréu, “Uma saída honrosa” é fruto do esforço do escritor francês Éric Vuillard de jogar luz sobre a Guerra da Indochina em seu já conhecido estilo de relatar grandes eventos a partir e de conversas aparentemente comezinhas e foco nos bastidores em que homens eticamente questionáveis ditam o rumo da história de todo o planeta.

 




Vuillard repete em “Uma saída honrosa” a laureada receita de “A ordem do dia”, título publicado no Brasil pela Tusquets e que lhe rendeu o Prêmio Goncourt em 2017. Assim como na obra em que retrata os bastidores do apoio de empresários alemães na ascensão de Hitler e da invasão nazista à Áustria, o escritor recria os bastidores militares, empresariais e políticos da derrocada francesa no sudeste asiático e a consequente independência de Camboja, Laos e Vietnã.


O livro começa a contar a derrocada francesa a partir dos interesses empresariais da indústria francesa na Indochina, caso da gigante Michelin que explorava os trabalhadores locais na extração de látex. De viagens à Ásia a reuniões com políticos na Europa, Vuillard vai mostrando como os conflitos internacionais têm nos bastidores um pano de fundo que se assemelha mais a uma reunião corporativa do que a encontros de diplomacia.

 

 

 


Assim, com a promíscua relação entre políticos, militares e grandes corporações terminando com a população de um país em outro continente sob a mira de armas (e até mesmo o uso de Napalm antes da chegada dos americanos). Um dos pontos de destaque é como os parlamentares franceses associados ao lobby de indústrias interessadas na manutenção da guerra na Indochina conseguiram convencer seus pares na Assembleia Nacional Francesa a seguir com o dispendioso conflito a partir da lembrança do armistício de 1940. Evocando a submissão aos nazistas como uma vergonha que não poderia se repetir, decidiram por seguir com um confronto que ceifou centenas de milhares de vidas.


Em entrevista ao Pensar, Éric Vuillard falou sobre o processo de pesquisa e escrita do livro e comentou as semelhanças da influência corporativa no Estado do mundo atual com o cenário da Guerra Fria. Nas respostas, o escritor revelou referências brasileiras como o trabalho literário de Machado de Assis e mesmo o legado de Jair Bolsonaro (PL) prévio à presidência ajuda a entender como a crueldade da Guerra da Indochina não se limita a um tempo já passado na história da humanidade.

 

Éric Vuillard é autor reconhecido por obras que retratam históricos sob a ótica das decisões de bastidores

arquivo

 

Entrevista Éric Vuillard, autor de “Uma saída honrosa”

‘‘A guerra na Indochina nada mais foi do que a triste réplica da defesa dos nossos interesses privados’’

 

Em primeiro lugar, gostaria de começar perguntando sobre a escolha do tema. O senhor já discutiu outros acontecimentos históricos em períodos próximos ao tratado em “Uma saída honrosa”, mas o que o motivou a abordar especificamente a retirada francesa da Indochina?


Foi um detalhe que primeiro me chamou a atenção. Tinham-me dado um guia de viagens para a Indochina, de 1923, e, ao folheá-lo, deparei-me com um pequeno glossário para turistas: “tire uma foto, vá rápido, vá devagar, vire à direita, à esquerda…”, não havia uma única palavra educada para os vietnamitas. Apenas ordens. É claro que não tenho ilusões sobre as relações coloniais, mas mesmo assim fiquei impressionado com tanta violência, com uma violência tão inesperada num registro, a priori, bastante inofensivo da vida humana, o turismo, que apela em princípio aos bons sentimentos, à curiosidade, ao gosto pela descoberta...

 

Parecia-me que havia ali uma espécie de chave para compreender as relações coloniais, como se este pequeno léxico tivesse me permitido aprender um pouco a língua francesa durante a época colonial. E como, durante vários séculos, a escrita tentou libertar-se do falso discurso, olhei para os protagonistas desta história: os diretores das plantações, os deputados, os generais, os empresários, para fazê-los falar. Uma das expressões mais comuns de poder é o desprezo.

 

Qualquer poder demasiado assimétrico, qualquer posição vertical, está sujeito à ilusão da sua onipotência. Já não se vê os outros, deixa-se levar pelos próprios desejos, e se imagina invulnerável. Assim, até à noite da derrota, os generais franceses recusaram-se a dar o seu título ao general-chefe do Exército Popular do Vietnã, a quem chamavam General Giáp: o pequeno professor de história.Para entender melhor como foi a colonização, tivemos que tentar acompanhá-los, ler sua correspondência e desvendar seus segredinhos.

 

Queria ouvir tudo o que eles tinham para nos dizer, queria anotar cada expressão no seu pequeno léxico, encontrar o tom da sua voz, as suas verdadeiras respostas. Em um grande romance, Machado de Assis descreve perfeitamente uma elite arrogante e senhorial, cega para o mundo. “Dom Casmurro” é um retrato detalhado deste egoísmo dos ricos, da sua cegueira social. O personagem principal só se preocupa se é ou não um marido traidor; suas frases sofisticadas, seu raciocínio complicado, suas vãs suspeitas são produtos fiéis de sua posição solipsista. Apenas suas pequenas preocupações lhe interessam.

 

Ele me lembra os generais franceses, incapazes de captar o essencial, concentrando sua atenção em suas trincheiras, em seus bunkers, enquanto o inimigo os cerca lentamente. Numa altura, a nossa, onde a riqueza está concentrada, onde o poder global está a endurecer, tive a sensação de ouvir novamente, à nossa volta, o mesmo tipo de tom, o mesmo tipo de respostas. O desprezo está em toda parte no serviço.


Do ponto de vista brasileiro, os conflitos no Vietnã são amplamente explorados na cultura popular após a guerra liderada pelos EUA, mas a história que antecede a entrada dos americanos no conflito não é tão difundida. A riqueza não abordada da exploração francesa na Indochina motivou-o de alguma forma a escrever sobre o assunto?


Esperamos sempre poder proteger com rigor as nossas guerras e conflitos políticos dos interesses mais materiais, das motivações mais estreitamente financeiras. Gostaríamos de encontrar ali outras motivações, propósitos mais gloriosos. Infelizmente, esta distinção raramente é possível. Para melhor localizar as minas francesas no norte do Vietnã, indiquei cada uma delas num mapa; e para melhor acompanhar os acontecimentos da Guerra da Indochina, elaborei um pequeno mapa das batalhas.

 

De repente, ocorreu-me que essas duas cartas eram na verdade uma só, estavam sobrepostas. Já não existia a Batalha de Cao Bang, a Batalha de Mao Khé ou a Batalha de Ninh Binh de um lado, e as minas do outro lado, uma vez que cada uma das batalhas tinha ocorrido perto de uma mina, como se fosse história militar. A guerra na Indochina nada mais foi do que a triste réplica da defesa dos nossos interesses privados. Assim, os mapas tomados um a um não passavam de ficções confortáveis: a geografia humana de um lado, a glória militar do outro.

 

E agora, se os considerarmos juntos, a ficção se dissipará. Decidi então renomear as batalhas: batalha pela Cao Bang Tin Mines Limited Company, batalha pela Ninh Binh Coal Mines Limited Company. E foi assim que as nossas batalhas mais gloriosas foram subitamente transformadas em sociedades anônimas.

 

Em 23 de março de 1954, paraquedistas franceses pousam na área de Dien Bien Phu no início do sangrento cerco de 55 dias

Arquivo



“Uma saída honrosa” segue sua característica de abordar acontecimentos importantes da história mundial a partir dos bastidores e de conversas aparentemente informais intercaladas com dados e informações específicas. Você acha que esse estilo ajuda a tornar a história mais suave e a leitura mais intrigante?


Deixo-me levar pela escrita, pelo que a linguagem revela, pelo que o enredo e a montagem descobrem. Ao longo do caminho surge a necessidade desta ou daquela pesquisa, surge uma bifurcação, surge um detalhe. Na França, o General de Lattre é um herói nacional, participou da libertação do território, é um dos vencedores da Segunda Guerra Mundial e teria sido o último líder da força expedicionária francesa na Indochina, digno deste nome.

 

Mas, se folhearmos as suas notas, publicadas por admiradores, ele compara literalmente os vietnamitas a macaquinhos. Parece-me que a escrita com atenção aos gestos, às palavras e às atitudes impede-nos de passar demasiado depressa por certos detalhes, e permite, graças à história, ouvir esta conversa coletiva que se realiza constantemente, em todo o lado, em todos os momentos.

 

Ao mesmo tempo, é como ouvir como se você não estivesse lá, como se estivesse em silêncio num canto da sala, e ainda assim ouvi-lo de si mesmo, da sua privacidade, da sua interioridade mais profunda, sem nunca poder dizer que esta conversa não nos diz respeito, sem poder desviá-la ou reprimi-la.


O jornalismo, muitas vezes, tenta seguir esse estilo ao cobrir os bastidores das negociações políticas, por exemplo. Você acha que é possível contar a história a partir desta perspectiva de que conversas casuais e idiossincrasias de políticos e pessoas poderosas impactam a macropolítica em tempo real? Ou é um estilo que depende de análise retrospectiva?


À primeira vista, pode-se acreditar que o pequeno léxico do guia de viagem que me inspirou, que o seu sotaque racista e autoritário, pertence ao passado, a uma época passada. Na realidade, as condições de vida que ela pressupõe não são totalmente abolidas e a história das desigualdades não termina com o estabelecimento de algumas leis sociais e do sufrágio universal. Hoje, a riqueza está concentrada como nunca antes na história e a vida é em grande parte estruturada por desigualdades. Em 1998, Bolsonaro disse ao jornal Correio Braziliense. “Que pena que a cavalaria brasileira não foi tão eficaz quanto a americana. Exterminaram seus índios”.

 

A afirmação desigual torna-se pura e simplesmente criminosa, o passado ressurge sem nenhum filtro, a distância social estrutura literalmente o pensamento. Em certos aspectos, a divisão demasiado rigorosa entre o passado e o presente permite-nos exonerar-nos de forma barata, refugiar-nos atrás do progresso técnico, felicitar-nos pelo nosso conforto de vida face ao sofrimento do passado. Na realidade, mesmo que as formas materiais e culturais variem, existe uma continuidade de desigualdade e dor. Todo o passado ecoa constantemente no presente.


Embora os períodos históricos sejam distintos, certas cenas do livro conseguem trazer à atualidade acontecimentos ocorridos há aproximadamente setenta anos, como na descrição da “forte tendência endogâmica” da burguesia financeira. Você acha que ainda existem muitas semelhanças na forma como as decisões são tomadas no mundo capitalista ocidental desde o pós-Segunda Guerra Mundial?


Num mundo onde a maioria das dez empresas mais valiosas são californianas e direcionam sistematicamente os seus lucros para as Ilhas Caimão, Bermudas, Gibraltar, Ilhas Virgens Britânicas; num mundo onde receitas tão colossais circulam de forma tão delirante, sem que nada de decisivo seja feito para o impedir; é óbvio que não são os romances de Jorge Amado ou as peças de Bertolt Brecht que inventam histórias. Pelo contrário, tentam fazer com que o mundo admita alguma coisa, falam da vida humana, para nos dar uma parte da verdade. Pelo contrário, é o poder que produz ficções, histórias imaginárias.


Assim, as tendências “endogâmicas” e separatistas das classes dominantes manifestam-se de várias maneiras. Porque vivemos entre nós, para nós mesmos, no nosso próprio interesse, no sentido mais estrito do termo, esquecemos não só o bem que devemos aos outros, mas também as suas qualidades, o seu número, a legitimidade das suas aspirações, das suas necessidades, minimizamos as suas capacidades, subestimamos a sua força, a sua inteligência.

 

“Nenhum homem é uma ilha, completo em si mesmo”, escreveu o poeta John Donne; o fato de tantos bilionários comprarem para si “um pedaço de paraíso” não deveria apenas nos fazer sorrir como uma fantasia pretensiosa, uma simples loucura de grandeza: Zuckerberg, e sua paradisíaca ilha de Kauai, Marcelo Bahia Odebrecht e sua pequena ilha particular, Bernard Arnaud e o seu cenário nas Bahamas, tudo isto é um sintoma preocupante de separatismo.


Não sei se as decisões são tecnicamente tomadas da mesma forma que depois da Segunda Guerra Mundial, mas quando folheio o jornal, quando olho para o horizonte bloqueado pelos arranha-céus das nossas grandes cidades e pelos barracos pobres construídos sobre na encosta das colinas, acho que ouço pairar sobre tudo isto o mesmo grito, o grito terrível que Orson Welles emite em ‘Cidadão Kane’. Penso que ouço este grito a pairar sobre as nossas vidas, este grito ganancioso, supremamente autoritário, que emite pelo poderoso empresário quando de repente o mundo não responde mais plenamente aos seus terríveis caprichos: “Eu sou Charles Foster Kane!”.

 

“Uma saída honrosa”
• Éric Vuillard
• Tradução de Sandra M. Stroparo
• Mundaréu
• 144 páginas
• R$64,00

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