Chico Pelúcio

Especial para o EM

 

Na primeira década deste milênio, a cultura passou a ter mais atenção do poder público, especialmente do Governo Federal, que impulsionou esse movimento. Ali, começava a se desenhar uma política pública para o setor, tendo as leis de incentivo à cultura como seu principal mecanismo junto aos editais. Entre outras iniciativas, veio a orientação para o patrocínio das grandes empresas estatais, como Caixa Econômica, Banco do Brasil, Correios, Eletrobrás, mas, em especial, a Petrobrás, que chegou a ser comparada ao próprio Ministério da Cultura. Essa última foi responsável pelo maior programa de apoio aos festivais de teatro no Brasil, objeto de análise deste artigo.

 

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Nas décadas de 1980 e 1990, os festivais tiveram grande importância, pois oportunizavam, ao público e aos artistas, conhecerem obras de relevância produzidas em outros estados e países. Era um tempo sem internet e de grande dificuldade de viajar com espetáculos.


Já na primeira década dos anos 2000, vivenciamos o boom dos festivais em formato de “vitrine de espetáculo”, que, nessa época, já se mostrava defasado, exigindo renovação. Entretanto, cada vez mais, esses eventos tornaram-se apenas mostras de espetáculos. Via-se, somente, o resultado, mas pouco se podia saber do processo e dos princípios a nortear aquelas obras. Nesse sentido, o exíguo resíduo deixado na cidade poderia ser considerado, até mesmo, negativo.

 




São vários os motivos que levaram a essa realidade. O primeiro é a falta de propósito das organizações em priorizar oportunidades de intercâmbios, trocas, coproduções, desdobramentos pré ou pós-festival que pudessem, realmente, deixar frutos significativos para as artes cênicas locais. Somado a esse problema, vem o fator econômico, que leva a produção do festival a adotar uma prática de “bate e volta” dos artistas e técnicos dos espetáculos, o que dificulta qualquer possibilidade de troca entre os participantes.


Outra questão séria é a exigência de visibilidade dos patrocinadores e do poder público, o que leva a uma programação radicalmente midiática. Encontros, conhecimentos, trocas, processos, intercâmbios longevos, ações de continuidade, nada disso vende produtos, expõe marcas ou resulta em votos eleitorais.

 


E, mais recentemente, presenciamos a fase das curadorias, que têm desprezado a excelência do espetáculo, a história, a idade e o conhecimento de grupos e artistas. Elas também tendem a ignorar a importância dos processos, ao privilegiar, tão somente, o tema abordado pelas montagens. Há um grave desequilíbrio entre ética e estética. Há uma radicalização do politicamente correto, de forma incorreta.


Assim, a grande maioria dos festivais tem chafurdado na mesmice.


Dentre eles, o FIT BH foi o que mais “envelheceu”, numa vertiginosa queda, permeada pela falta de diálogo com artistas e produtores locais, e pela burocracia municipal paralisante, que impede qualquer renovação/inovação do festival (leia-se MROSC). Somam-se, a tudo isso, a desarticulação e a desunião dos artistas de Belo Horizonte, incapazes de se posicionar contra os absurdos que envolveram a realização do FIT nas últimas edições. Chegou-se, até mesmo, de forma capciosa, a cancelar o Festival durante a pandemia, exatamente quando a classe artística da cidade mais precisava de apoio.


Portanto, tudo se agrava diante da incapacidade dos artistas e dos gestores públicos em buscar saídas para esse impasse burocrático e necrosante do Festival. Assim, o FIT BH, nas últimas edições, foi, literalmente, um festival de equívocos e de mal realização, o que vem afastando artistas, mídia e público.

 


Pergunto: qual o legado deixado pelo FIT para a cidade, o público e grupos locais? Qual é o diálogo entre organizadores e as artes cênicas da cidade nas últimas edições? Ainda: como podemos nos articular para minorar os danos da burocracia, que impede a realização e a inovação do FIT BH? Como ter um planejamento que garanta diálogos, construção mais participativa e um planejamento adequado a um festival internacional? Onde e como está armazenada a memória do Festival? Para onde vai todo o material adquirido na realização de cada evento?


Alguns festivais organizados pela sociedade civil podem ser referência para reflexões. Cito, como exemplo, o Festival de Teatro Brasileiro, com a clara proposta de fortalecer o teatro nacional por meio de intercâmbios entre grupos e artistas de dois estados. Além disso, esse Festival tem, como um dos focos principais, atender à educação, dedicando grande parte de sua programação a professores e crianças de escolas públicas.


Como outro modelo, podemos citar a extinta Mostra de Teatro Internacional da Cooperativa de São Paulo, que tinha, como foco, a troca de experiências e processos, promovendo, além das apresentações, uma série de encontros, demonstrações, oficinas, debates e palestras. Para que isso acontecesse a contento, todos os grupos, artistas, técnicos, curadores, jornalistas e críticos tinham que permanecer em todos os dez dias de Festival, para participar das atividades.


Nesse viés, o Festival Cenas Curtas – FCC – do Centro Cultural Galpão Cine Horto, em sua particularidade, tem se reinventado a cada ano, e, sem dúvida, vem deixando um legado importantíssimo para a cidade e o Brasil. Criado em 1999, o Festival Cenas Curtas comemora, neste ano, 25 anos de realizações sem interrupção – e, mesmo no período crítico de pandemia da Covid 19, realizou-se uma versão do evento. Desde o início, nosso objetivo é o de provocar e oferecer espaço para criações instigantes e de pesquisa de linguagem. Usamos dizer que ali é o lugar para “o risco e o erro”, e preparamos um ambiente de acolhimento e apoio a todos os artistas, para que encenem suas ideias com boas condições técnicas e liberdade.

Os 25 anos de realização comprovaram, uma vez mais, a importância da perenidade das ações na área cultural. É exatamente a continuidade que nos permite ter parâmetros e indicadores de avaliação, além de acompanhar carreiras de artistas e técnicos, o que nos dá dados para as renovações frequentes. Estamos sempre atentos para entender as mudanças advindas de nossas ações, para aperfeiçoá-las no presente. Nesse tempo, inventamos e reinventamos muitos projetos. Talvez, o mais importante deles tenha sido a criação do Rascunho de Cena, e, depois, do Cena Espetáculo.


Percebemos, logo no início, que muitas cenas de 15 minutos davam continuidade e se transformavam em um espetáculo teatral. Organizamos, então, um pré-festival para 12 cenas de 8 minutos da grande Belo Horizonte, escolhidas por edital, chamado Rascunho de Cena. Elas se apresentam para o público e quatro dessas 12 cenas são selecionadas por uma curadoria, a fim de se desenvolver em cenas de 15 minutos, apresentadas, alguns meses depois, no Cenas Curtas. Nesse segundo momento, uma curadoria elege uma delas para receber o apoio financeiro e logístico do Galpão Cine Horto, com o intuito de dar continuidade a sua proposta e se tornar a Cena Espetáculo.


Nesse percurso, além de fomentar artistas e grupos, incentivamos a pesquisa de linguagem e, não menos importante, formamos um público especializado, que acompanha o artista em sua criação, desde o Rascunho de Cena e o Cenas Curtas, até a finalização de seu espetáculo teatral. Muito bons frutos e espetáculos foram colhidos desses projetos.


Dentre outras iniciativas, há a parceria com grupos e espaços da Regional Leste, que, juntos, fazem uma programação paralela ao Festival, com performances, shows e bares. Essa atividade, a que chamamos de Rolê, deu origem à campanha para a consolidação do Corredor Leste de Cultura, que tem contribuído muito para a ressignificação do bairro, ao promover, durante o ano, vários eventos que movimentam toda a economia local. São bares, espaços culturais, o comércio em geral, e, até mesmo, moradias que têm se beneficiado desses movimentos.


Não é precipitado dizer que grande parte dos artistas, grupos, técnicos de Belo Horizonte, e mais um tanto do Brasil, passou pelo Festival em alguma ocasião, e teve, ali, momentos importantes na construção de suas trajetórias. Mais do que isso, bons e instigantes espetáculos da cidade e do Brasil começaram como uma cena curta. Várias montagens que fortaleceram coletivos foram viabilizadas pelo Cena Espetáculo. Diretores, atores, dramaturgos, cenógrafos, figurinistas, iluminadores e técnicos deixaram suas marcas no nosso palco, e, certamente, nós também deixamos nossa digital de afeto e profissionalismo em suas almas e histórias.

 

CHICO PELÚCIO é ator do Grupo Galpão, diretor geral e gerente executivo do Galpão Cine Horto

 

Festival Cenas Curtas
• De hoje (21/9) ao dia 28 deste mês no Galpão Cine Horto. Confira a programação no site galpaocinehorto.com.br

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