Mirian Chrystus
Especial para o EM
O movimento feminista Quem Ama Não Mata teve, desde suas origens, uma relação intrínseca com a poesia. Tanto que, no Ato Público da Igreja São José em 1980, quando do assassinato por seus maridos das mineiras Heloísa Ballesteros Stancioli e Maria Regina de Souza Rocha, a abertura do manifesto de repúdio era uma poesia anônima da Idade Média em que o homem, antes de partir para as Cruzadas, entrega à sua senhora a chave do cinturão de castidade -uma crítica aos homens que, mil anos depois, diziam que matavam “por amor”.
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No decorrer do Ato de 1980, dois poemas de mulheres foram lidos por ativistas. A poeta Adélia Prado veio de Divinópolis para somar sua voz às outras vozes. É importante lembrar a presença da poesia no Ato para mostrar que o QANM atribui uma relevância ao convencimento advindo da cultura, da emoção pela arte que mobiliza sentimentos.
Também o manifesto que marca a volta do Movimento às ruas, em 2018, foi escrito em tom poético, no retorno à militância de denúncia da violência contra a mulher. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho deste ano (ano base 2023), o Brasil teve um aumento de 0,8% dos crimes de feminicídio. Foram 1.467 mulheres mortas por razões de gênero, o maior número já registrado desde a publicação da lei que tipifica o crime.
Em mais uma edição do Sábado Feminista, em parceria com a Academia Mineira de Letras, haverá uma reflexão sobre esta relação específica da poesia com o feminismo pelas vozes de quatro poetas: Lúcia Afonso é psicanalista e criadora da revista de poemas “Silêncio”, Sônia Queiroz, professora aposentada da UFMG e editora; Thais Guimarães, poeta e pesquisadora sobre a expressão poética das mulheres de 1500 a 1930, e Beth Fleury, socióloga e pesquisadora da Fiocruz, onde desenvolve uma reflexão sobre a formação de homens violentos. Confira depoimentos e poemas das participantes.
MIRIAN CHRYSTUS é jornalista e coordenadora do movimento Quem Ama Não Mata
Depoimentos e poemas
Thais Guimarães
“A minha conexão com o movimento feminista de certa forma é perpassada pela questão da escrita. Em fins dos anos 1970, e anos iniciais da década de 1980, havia também um cenário que exigia posicionamento. Por um lado, eu me envolvi com o movimento da poesia marginal e, naquele momento literário, com várias publicações independentes, havia uma efervescência em BH. Com toda avidez de uma jovem de 18 anos, busquei interlocuções com outras mulheres escritoras.
Não eram muitas as mulheres que estavam nessa cena, ou seja, a predominância masculina era evidente e havia urgência em se falar de uma escrita feminina, de entender qual a posição ocupada pela voz das mulheres, e que voz era essa. Por outro lado, no mesmo período, começa a haver uma publicização dos assassinatos de mulheres, com base na tese da legítima defesa da honra. Essas ‘notícias’ me impulsionam a buscar mulheres que estavam reagindo e lutando contra essa violência. Assim, é o entrelaçamento dos contextos que me leva ao encontro de outras mulheres, com as quais me uni, e que foram determinantes para a minha conscientização e atuação, tanto no campo da poesia quanto do feminismo.”
Catártica
Descascar até o osso
Sentir as falanges
Em última instância
Na jugular
Apertar mais o pescoço
Até sangrar
A língua
Até que morra
À míngua
E se feche o ciclo
De tudo o que corrói
Lúcia Afonso
“Penso o feminismo como uma luta por direitos, articulada às demais lutas sociais, no horizonte dos direitos humanos. Tornei-me feminista antes mesmo de entender essa palavra, movida pelo desejo de liberdade. Nos anos 1970, participei do movimento feminista. Depois, professora da UFMG, assumi a questão de gênero em trabalhos de ensino, pesquisa e extensão. Escrevo desde criança. Fui alfabetizada com poesia. Cedo aprendi que a literatura celebra a vida e transforma a dor.
Publiquei em revistas, coletâneas e livros. Hoje divulgo meu trabalho em luciaafonso.blog.br. Poemas podem ser um poderoso meio de expressão para lutas sociais, mas a poesia não pode ser reduzida à militância. Quando mulheres escrevem, dão voz às mais variadas experiências, políticas e subjetivas. Conquistar direitos é fundamental para fazer cultura e história. Porém, é também vital desejar o desafio da poética da existência, encontrando-se, no caminho, com essa pedra, ora lapidada ora bruta, da poesia.”
Meninas
Dentro de uma casquinha tão fina,
Uma menina
Cresceu e, dentro da menina,
Agigantada havia outra
– Menina que crescia –
Pois sempre dentro dela havia outra
E era, então, sua semente
Própria e sua mãe,
Umas das Outras.
Toda vez que crescia ela gerava
Um âmago de vida no íntimo da Vida.
Sônia Queiroz
“Meu encontro com o feminismo se deu nos anos 1970,quando eu estava na graduação em Letras na UFMG. O que mais marcou minha experiência com o movimento foi um projeto desenvolvido por Celina Albano, professora da Fafich/ UFMG, que depois foi Secretária de Cultura do Estado. Ela criou o Centro de Defesa da Mulher, numa casa alugada no centro da cidade e ali promoveu oficinas de artesanato, como forma de reunir mulheres e fortalecer o diálogo e a solidariedade entre nós. Daí para a articulação com a poesia foi rápido, pois a questão ocupou minha mente e minha sensibilidade. Eu já publicava poemas, em em antologias e revistas literárias - Silêncio, Inéditos e Revista Literária do Corpo Discente da UFMG.
A experiência com o CDM, a participação num grupo de estudos feministas e o trabalho na editoração de livros feministas na Interlivros me forneceram o tema do livro ‘O sacro ofício’, composto de poemas que tratam dos papéis reservados à mulher na sociedade machista. Esse livro recebeu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte em 1980, e foi publicado pela Editora Comunicação.
Preciso dizer também que minha postura como feminista vem de casa, da formação que tive no contato com minha mãe e minha avó materna. Minha mãe era uma mulher atuante, formada em História pela UFMG, dava aulas na rede pública estadual e tinha uma postura forte relativamente ao trabalho feminino. Minha avó materna difundiu incansavelmente entre as mulheres da família um discurso de denúncia da sua própria condição e de contestação dos limites.”
Poesia
Das abandonadas
ele sempre vinha
me trazendo um prêmio
a caça para o assado
a acha pro fogo e a faca
para cortar
cebolas
ele sempre vinha
me trazendo prendas:
e eu adivinhava o gosto
e adivinhava o gesto
para acertar
em cheio
ele sempre vinha
me trazendo festa:
uns beijinhos e delícias
e era queijo e era vinho
para dançar
boleros
ele sempre vinha
me trazendo a sorte:
teríamos vários filhos
e uma junta de bois
para criar
castelos
hoje preparo a comida
e como
em silêncio:
quase nunca choro
às vezes canto
Beth Fleury
“Encaro a produção poética não só como uma forma de expressão pessoal. Tenho me dado conta que a gente meio que vocaliza emoções e sentimentos de sua época, de seus contemporâneos. De início, em 1968, foi o encantamento com grandes poetas modernistas e ainda os portugueses que me levou à poesia. O feminismo chega pra mim nos anos 70 feito uma mensagem libertadora.
Criada no interior de Minas, com tradições que nos iluminam e inspiram e as limitações que isso também significava para as moças de nossa época... A influência do feminismo vem dar nome e sentido às angústias que vivíamos, tendo modelos de moças exemplares a seguir com um catálogo mais limitado de escolhas. O mundo era maior que isso - o feminismo trouxe essa mensagem.
A experiência do ativismo político por democracia ajudou a moldar um olhar para o social e o político. Mulheres dizerem de suas emoções, produzirem um trabalho que ultrapasse a louvação e o amor puro, destituído de densidade, ainda era algo novo. E me sinto parte de uma geração que rompe com a escrita bem-comportada destinada às mulheres. As fases que a literatura que você consegue produzir, a meu ver, trazem estas influências todas de seu tempo, com as alegrias e dores... E você vai amadurecendo como ser humano no compasso também de seu amadurecimento poético.’’
“Herança”
No tempo em que as meninas eram cândidas
E seminuas
Vagavam pelos cômodos iluminados
Com círios nos olhos e calor nas mãos
No tempo em que todas as meninas eram belas
E ofegavam entre as orações de domingo
No tempo dos pais que fumavam mistura fina
E sabiam de tudo
No tempo em que as mães
Sabiam seus lugares certos
E eram as criaturas mais lindas
No tempo em que os maridos traziam
Suas verdades embrulhadas do açougue
Elas brilhavam feito toucinho na panela
Doávamos outro para o bem do Brasil
E não chorávamos
Ao matar a galinha
Para a canja do avô
O beijo da prima obscena no quarto fechado
Tinha gosto de cuspe
Não lavávamos a mancha secreta
Ela queimaria mais tarde
Na alma das moças coradas
Do tempo em que as meninas
tinham dúvidas discretas
E as mães
apontavam o destino feito punhais
Herdei a tinta das paisagens
Para compor meu inventário
(*)Esse poema foi publicado no livro “Na Cor do Sangue”, no interior da coletânea “Língua Solta” pela Editora Rosa dos Tempos/Record em 1994.
“Com toda avidez de uma jovem de 18 anos, busquei interlocuções com outras escritoras. Não eram muitas as mulheres que estavam nessa cena: a predominância masculina era evidente”
Thais Guimarães
“Fui alfabetizada com poesia. Cedo aprendi que a literatura celebra a vida e transforma a dor”
Lúcia Afonso
“Poesia e feminismo: a poética das mulheres”
• Encontro neste sábado (21/9) na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1466).
• Abertura dos portões às 9h30. Início da palestra às 10h.
• Entrada franca