Enquanto imagens de enchentes devastadoras, incêndios incontroláveis e ondas de calor recordes estampam as manchetes de jornais atestando a crise climática e ambiental, já prevista por cientistas, a antropóloga norte-americana Elizabeth A. Povinelli lança luz sobre uma catástrofe diferente — uma que já está em curso há séculos e afeta especialmente comunidades indígenas e afrodescendentes.

 

Em seu mais recente livro, “Catástrofe ancestral: existências no liberalismo tardio”, publicado no Brasil pela Editora Ubu, Povinelli argumenta que, para muitos, a catástrofe não é algo que está por vir, mas um processo contínuo que começou há mais de 500 anos.

 

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Segundo a autora nascida em Buffalo, no estado de Nova York, o Ocidente frequentemente concebe a crise climática como um evento futuro e catastrófico que pode ser evitado, desde que as ações corretas sejam tomadas. Entretanto, para povos historicamente marginalizados, a destruição já começou muito tempo atrás, com a colonização, a exploração de recursos e a expropriação de terras. “A verdadeira catástrofe mundial, social e demográfica aconteceu há muito tempo”, afirma Povinelli em entrevista ao Pensar.

 



 

A obra destrincha o que a autora chama de “liberalismo tardio” — uma forma de governo e pensamento que reconhece de maneira superficial as injustiças do passado, mas falha em transformar as estruturas de poder que ainda perpetuam a desigualdade. Ela aponta que, ao focar em um futuro utópico e nas mudanças climáticas como algo que está por vir, o liberalismo contemporâneo encobre as feridas abertas da exploração colonial e da escravidão, que continuam a se manifestar na forma de injustiça social e degradação ambiental.

 


Essas questões estarão no centro das discussões de Povinelli em visita a Minas Gerais durante o seminário internacional “Transmutar: modos de estar no mundo, gestos que conservam a vida”, que acontece neste domingo (29/9), no museu Inhotim, em Brumadinho, na Grande BH. A apresentação da autora, que irá debater como as narrativas indígenas oferecem lições sobre a legitimação de direitos, mobilização social e resistência cultural, está marcada para às 11h, na Galeria Psicoativa Tunga.

 

Integrantes de povos africanos capturados e escravizados no Congo

reprodução

 

Como foi desenvolvida a ideia de liberalismo tardio e como ela atualiza as críticas ao liberalismo?


O liberalismo tardio emergiu da minha relação com os meus colegas indígenas na Austrália. O conceito em si aparece muito cedo no meu trabalho. Acho que falei pela primeira vez sobre o liberalismo tardio em 'The Cunning of Recognition' (A Astúcia do Reconhecimento, em tradução livre), um livro que examina as formas de reconhecimento dos direitos indígenas e de sua diferença cultural pelo estado liberal na Austrália dos anos 1970.

 

 

Visto a partir dessa perspectiva, fica claro que, primeiro, o liberalismo foi uma forma de sociabilidade ocidental que surgiu às custas dos povos colonizados e escravizados. Isso criou imensas quantidades de riqueza, e eu não sou a única a dizer isso, que criaram o capitalismo como tal e também essa forma liberal de governança. O liberalismo tardio é uma maneira de periodizar o liberalismo, ou seja, quando o liberalismo e o capitalismo surgem, em parte, como uma forma de justificar a extração de riqueza e a despossessão de terras, sob a ótica paternalista de elevação civilizatória nas colônias.

 

E os povos indígenas e africanos nunca concordaram com isso, mas foi um discurso legitimador muito eficaz. Nos anos 1950 e 1960, os movimentos anticoloniais, novos movimentos sociais, os movimentos do poder negro e do poder indígena desmascararam essa ideologia. Eles sempre souberam que isso era falso, mas, naquele momento, havia o poder de rejeitar essa ideia. Na década de 1970, dependendo de onde você estivesse no mundo, isso se reorganizou e assumiu formas diferentes.

 

Governos liberais que haviam justificado suas práticas coloniais e imperiais com base na elevação civilizatória sentiram a ameaça e reestruturaram seu discurso através de uma retórica de desculpas. 'Oh, isso foi loucura, impor civilização às pessoas, todos os povos têm sua cultura'. O liberalismo tardio mudou, o que eu chamo de mudança no discurso de governança da diferença e de governança dos mercados. Assim, na década de 1970, o governo da diferença tornou-se uma maneira de controlar e direcionar essas recusas radicais ao liberalismo civilizatório.

 

Como resposta, o liberalismo tardio instituiu políticas explícitas ou implícitas de reconhecimento multicultural liberal. Os Estados, de uma forma ou de outra, disseram: 'Desculpe, fomos racistas, mas agora entendemos. Vocês, povos brutalizados e de quem extraímos recursos, de seu corpo, de suas terras, de sua cultura, vocês nos digam qual é a sua cultura e como ela se encaixa'. Mas, basicamente, ainda operando dentro da estrutura do liberalismo, e então ofereceram direitos limitados.

 

Você utiliza o conceito de “catástrofe ancestral” para destacar como as consequências do colonialismo e da escravidão ainda afetam o presente. Poderia nos explicar como esse conceito desafia a visão tradicional de que o colonialismo é um fenômeno do passado superado?


A poluição, a toxicidade e as pandemias afetam desproporcionalmente as populações que foram historicamente subjugadas pelo colonialismo e pelo racismo. Meu trabalho, ao lado de colegas, sempre foi investigar como os governos liberais, em momentos de crise, transformam sua legitimidade. No liberalismo tardio, o que me interessa é entender essa transição entre o liberalismo de reconhecimento e o civilizacional.

 

Como o liberalismo, mesmo em mudança, mantém seu poder? Muitos pensadores críticos, inclusive na antropologia, têm destacado que os povos indígenas sempre nos disseram que possuem parentes que não são humanos, como rochas, rios, ventos e peixes. Eles nos mostram que formas de existência, como um rio, podem ser consideradas entidades pessoais.

 

Na antropologia crítica, tem havido uma crescente valorização dessas perspectivas que recusam a divisão entre vida e não-vida. Essa visão pode permitir a criação de um mundo sustentável. Críticos apontam que os povos indígenas mantinham uma relação sustentável com o mundo ao seu redor, e isso é reconhecido especialmente nas teorias críticas no Ocidente.

 

Como o conceito de liberalismo tardio tem funcionado em momentos históricos específicos, e como ele se articula com as crises políticas e econômicas atuais?


Estou situada principalmente na Austrália e, nesse contexto, observamos o início da conquista australiana a partir do final do século 18, quando os barcos de invasão chegaram por volta de 1780. No entanto, a presença física dos colonizadores no norte só ocorreu em 1869. Durante esse período, foi implementada a doutrina de "terra nullius", que legitimava a apropriação de terras com base na jurisprudência europeia, onde se acreditava que territórios considerados "vazios" poderiam ser tomados, seja por tratado, guerra ou simplesmente pela ideia de que ninguém os possuía.

 

Ainda que os britânicos soubessem que havia povos nativos na Austrália, eles evitaram firmar tratados ou declarar guerra, como haviam feito nas Américas. Em vez disso, alegaram que era "terra nullius", afirmando que os povos indígenas não tinham civilização ou propriedade privada. Essa doutrina foi usada para justificar a colonização, sob a premissa de que as terras não pertenciam aos nativos, pois eles não seguiam o conceito europeu de propriedade. Além disso, a colonização foi acompanhada por uma estrutura filosófica que classificava os povos indígenas como "primitivos" ou da "Idade da Pedra", sugerindo que não estariam plenamente vivos ou civilizados.

 

Isso legitimava sua exterminação e a apropriação de suas terras, sob a ideia de que eles eram apenas "artefatos" de uma era passada. Nos séculos 19 e 20, surgiu na Austrália a noção de "extinção gradual", uma forma de genocídio cultural, na qual crianças indígenas eram retiradas de suas famílias para serem educadas e assimiladas pela sociedade branca. Esse processo visava "suavizar" ou fazer com que as populações nativas desaparecessem com o avanço da civilização. Essa visão foi reforçada pela ideia de que as crenças indígenas, como a de que a terra ou as pedras poderiam ser sagradas ou falantes, eram "superstições" ou meras crenças, desprovidas de valor na lógica colonial.

 

O estado colonizador não reconhecia essas crenças e via os indígenas como governados por mitos e irracionalidades, em oposição à "racionalidade" ocidental. Recentemente, o conceito de Antropoceno — a era geológica definida pelo impacto humano sobre o planeta — trouxe à tona críticas sobre como o colonialismo liberal moldou a relação entre vida e não-vida.

 

A separação entre civilização e natureza, vida e inanimado, foi fundamental para a exploração colonial, mas agora, com as crises ecológicas afetando até mesmo o Ocidente afluente, como no Brasil, Nova York ou Austrália, há um reconhecimento de que essas divisões não são naturais, mas sim formas de governança impostas. Essas crises abalaram as fundações das estruturas de legitimidade do Ocidente, que agora precisa enfrentar as consequências das suas ações históricas, repensando a maneira como diferentes formas de vida estão inevitavelmente interligadas.

 

O livro elenca princípios nomeados como os “Quatro Axiomas da Existência”. O que são? E como eles nos ajudam a entender o impacto do colonialismo na degradação ambiental contemporânea?


Eu digo que esses quatro axiomas devem ser observados em conjunto, como uma estrutura sintática, e não isoladamente. O primeiro axioma é expresso quando se ouve: “Vamos recorrer aos povos indígenas por sua sabedoria e para nos ajudar”. Ele remete à ideia de que o mundo é entrelaçado, ou seja, a existência é interconectada. Vida e não-vida, humanos e bioma estão profundamente ligados, e, para entender um lugar, é preciso compreender suas conexões.


Argumento que essa é uma posição ontológica: o que é o mundo? O mundo é entrelaçado. No entanto, muitas vezes, as pessoas param aí, como se isso fosse uma política em si. Mas, ao adotar essa perspectiva ontológica, torna-se necessário observar como as sociedades distribuem os benefícios e os danos desse entrelaçamento. Os benefícios seguem para um lado, enquanto os danos são deixados para outro.

 

O terceiro axioma surge dessa distribuição desigual: a política nasce da maneira como esses benefícios e danos são repartidos. 'Todos compartilhamos esse entrelaçamento, mas não da mesma forma', porque as formas sociais o distribuem de maneira desigual. A política intervém nesse entrelaçamento e, em seguida, volta a uma ontologia compartilhada e neutra. Esses são os três primeiros pontos.

 

O quarto axioma afirma que as ontologias ocidentais contemporâneas resultam de uma história de conquistas e imposições violentas. Essas ontologias são vistas como parte da maquinaria colonial, em contraste com as ontologias indígenas e negras, o que cria uma separação entre elas. O pensamento crítico ocidental pergunta: “O que temos em comum?” e, em seguida, analisa como isso é distribuído politicamente, lembrando que tudo isso surgiu no contexto de conquistas brutais. E, de algum modo, separamos as ontologias ocidentais das ontologias indígenas e negras.

 

Minha crítica é que começar pela ontologia nos coloca em um espaço aparentemente neutro, sem poder social, algo confortável no contexto liberal, mas ilusório, ao contrário de se iniciar pelo quarto axioma. Essas relações se materializam em corpos, paisagens e conhecimentos. Por exemplo, minha ancestralidade em Trentino, no norte da Itália, se manifesta de maneira diferente da dos meus colegas na Austrália, e continuam a ser materializados de formas distintas.

 

O livro questiona: “Por que precisamos de uma ontologia? O que ela realmente acrescenta? E o que ela apaga no contexto de um pensamento antirracista e crítico ao colonialismo?” Essas bases, nas quais todos nós participamos, parecem desmoronar. Que tipo de conforto isso traz?


Meus antepassados, os Povinelli, estiveram envolvidos em um “ponto em comum” em Trentino. Meu avô dizia: “Napoleão roubou nossas terras”, e meu pai comparava nossa situação à dos nativos americanos, ao que eu respondia: “Não exatamente”. Agora, após 40 anos, percebo que não era verdade. Fomos despossuídos, sim, quando Napoleão tomou nossas terras. Mas é importante lembrar que ele também disse “não” à Revolução Haitiana. O que devemos reconhecer são as diferenças. Nós fomos despossuídos, mas não da mesma maneira.

 

Nossa despossessão nos empurrou para o individualismo possessivo, no qual éramos ensinados a “possuir pessoas, coisas e lugares”. Esse processo foi bem diferente para os povos indígenas da Austrália, do Brasil e das Américas. Para eles, foi uma tentativa de exterminação, não apenas despossessão. Minha discussão com esses axiomas busca entender que, embora tenhamos experiências familiares e laços de afeto, não partimos das mesmas condições. Venho de uma tradição baseada em famílias, algo que ressoa com a visão indígena sobre a terra. Mas não compartilhamos a mesma forma de posse. O que compartilhamos é a diferença.

 

Como essa crítica pode reformular o modo como pensamos a história das catástrofes, como pandemias e desastres naturais?


Não se trata apenas de um debate acadêmico; há um uso errado do termo “desastre” pelo capitalismo liberal e isso se manifesta motivado pela catástrofe que chamamos “climática”. Dependendo de qual lado dessa relação você está, a percepção da catástrofe muda. A experiência da catástrofe pode ser vista de diferentes maneiras: pode ser algo iminente ou ancestral.

 

A catástrofe iminente é algo que está chegando, uma grande tempestade por vir, como as mudanças de temperatura. É algo que está se aproximando, e parece que estamos no limiar de novas crises. Mas, se você é indígena ou foi afetado pelo imperialismo, a catástrofe não é uma possibilidade futura, mas uma realidade em curso. Assim, temos diferentes temporalidades em jogo. A catástrofe ancestral está em andamento e, há cerca de 500 anos, as comunidades indígenas têm desenvolvido táticas para preservar sua ancestralidade enquanto enfrentam essa crise contínua.

 

Para aqueles que se beneficiam dessa indústria, ainda há a busca pelo futuro e outras ideias são incorporadas. Talvez a tecnologia conserte isso. No entanto, se você vive a catástrofe ancestral, reconhece que houve transformações ecológicas e geológicas profundas. Afinal, a tecnologia é o que causou o problema em primeiro lugar. Não quero comparar, mas a verdadeira catástrofe mundial, social e demográfica aconteceu há muito tempo, com a chegada de navios que marcaram um novo capítulo de exploração.


O livro discute como o chamado liberalismo tardio tende a perpetuar a extração capitalista. No contexto das crises climáticas atuais, como você interpreta a resposta de países como o Brasil, que se comprometem com metas ambientais, mas continuam a depender de atividades econômicas destrutivas, como a mineração, por exemplo?


No meu livro, abordo uma forma de proteção anterior ao surgimento do movimento pelos direitos da natureza, vinculada à proteção de locais sagrados na Austrália. Esses locais são formações geológicas e ecológicas que representam seres ancestrais. Ao pensar nos direitos da natureza, vemos uma transformação nas formas de pertencimento e entrelaçamentos entre humanos e não-humanos, que surgem de histórias específicas, e não de uma ontologia.


Esse processo acaba transformando a natureza em uma entidade com características ocidentais, como uma pessoa autocentrada. No entanto, para que algo seja reconhecido como 'pessoa' nesse contexto, é necessário definir fronteiras e convertê-lo em uma forma de propriedade destacável. Isso entra em conflito com as concepções indígenas, que veem a relação com a terra como inseparável de si mesmos. Na Austrália, por exemplo, muitos rios e montanhas sagradas são vistos como extensões vivas de seres ancestrais, caminhando e fluindo através de paisagens.

 

Portanto, não é possível dizer que algo está 'aqui' sem reconhecer que também está 'lá'. Essa ideia de transformar a natureza em um sujeito legal ocidental acaba servindo aos interesses capitalistas, porque permite às corporações saber exatamente onde podem minerar e extrair recursos. Elas negociam com poucos representantes, desconsiderando outras vozes que também têm conexões com esses locais. Assim, a natureza acaba sendo tratada como um objeto caritativo ou um sujeito ocidental, o que não interrompe o capital, pois o capitalismo opera dentro dessa lógica.

 

Mesmo que a criação de um 'ecossistema legal' proteja um rio ou uma montanha, isso não impede que o entorno seja explorado. A natureza, materialmente conectada, não pode ser protegida em partes isoladas. Se a proteção fosse pensada de forma integrada, poderia desafiar o capital – mas o capitalismo jamais permitiria isso.

 

SOBRE A AUTORA

 

Nascida na cidade de Buffalo, no estado de Nova York, Elizabeth Povinelli é uma teórica crítica e cineasta norte-americana. Foi professora de Antropologia na Universidade de Chicago e, desde 2005, ocupa a cátedra Franz Boas na Universidade Columbia, em Nova York, onde dá aulas de Antropologia e Estudos de Gênero.

 

Nessa instituição, foi diretora do Institute for Research on Women and Gender (Instituto de Pesquisa sobre Mulheres e Gênero) e vice-diretora do Centre for the Study of Law and Culture (Centro de Estudos de Direito e Cultura). Povinelli tem se concentrado em desenvolver uma teoria crítica do liberalismo colonizador tardio.


SEMINÁRIO


Transmutar: modos de estar no mundo, gestos que conservam a vida

Conferência com Elizabeth Povinelli (EUA)e Gladys Tzul Tzul (GUA)

Data: Domingo (29/9), às 11h
Local: Galeria Psicoativa Tunga, Inhotim
Vagas limitadas

 

Capa do livro "Catástrofe ancestral: Existências no liberalismo tardio"

reprodução


“Catástrofe ancestral: Existências no liberalismo tardio”
• Elizabeth A. Povinelli
• Tradução de Mariana Ruggieri e Mariana Lima
• Editora Ubu
• 304 páginas
• R$ 79,90

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