Livro do xamã Yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert, “A queda do céu” inspirou filme dirigido por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha. A estreia mundial ocorreu em maio último, na mostra “Quinzaine des Cineàstes” (Quinzena de Cineastas), em paralelo à competição no Festival de Cannes.

 

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“O nosso desejo com o filme é de que a cultura Yanomami seja vista como uma cultura viva, contemporânea e florescente, mas também que a cultura napë veja a si mesma a partir de uma perspectiva xamânica e de uma geopolítica contracolonial”, explicou o cineasta, autor de documentários como “Rocha que voa” e “Pachamama”, em entrevista para divulgação em Cannes. A diretora Gabriela Carneiro da Cunha complementou: “O longa é a expressão cinematográfica do arrebatamento que tivemos ao ler o livro.”

 




O arrebatamento citado por Gabriela é recorrente desde o lançamento em 2010 da edição francesa (a tradução brasileira saiu em 2015 pela Companhia das Letras) do livro que apresenta a cosmologia dos Yanomamis e o trabalho dos xamãs para tentar conter as doenças e outras ameaças de origem não-indígena. “É um filme no qual a câmera não olha só para os Yanomami, mas para nós não-indígenas também”, pontuou a diretora. O longa-metragem ainda não tem data de estreia confirmada para o Brasil.

 


“O filme de Eryk e Gabriela teve a grande inteligência de não tentar propor uma adaptação do livro nem um documentário tradicional sobre os Yanomami”, afirma Bruce Albert ao Estado de Minas. Nascido no Marrocos em 1952, o antropólogo francês participou em 1978 da fundação da ONG Comissão Pró-Yanomami.

 

Conduziu com o xamã Davi Kopenawa e outros nomes engajados na defesa dos povos indígenas, como a fotógrafa Claudia Andujar e o missionário Carlo Zacquini, uma campanha de repercussão internacional até conseguir, em 1992, a homologação da Terra Indígena Yanomami, na região Norte do país. “Estamos no começo do fim do modelo de predação generalizada dos povos e do planeta inventado pelo ‘povo da mercadoria’ há poucos séculos. A palavra do Davi não é, portanto, uma mera profecia exótica. É um diagnóstico e um aviso”, costuma dizer Albert. Leia, a seguir, a entrevista do etnólogo ao Pensar.

 

 

 

Bruce Albert e Davi Kopenawa em maio último no Festival de Cannes, onde acompanharam a estreia mundial de "A queda do céu"

Soraya Ursine/divulgação

 

Como foi estabelecido o diálogo entre o livro e o filme ?


O filme de Eryk e Gabriela teve a grande inteligência de não tentar propor uma adaptação do livro nem um documentário tradicional sobre os Yanomami. Depois de uma leitura profunda de ‘A queda do céu’, muito trabalho de pesquisa e algumas conversas comigo (e muitos outros), os autores foram filmar na casa-aldeia de Davi Kopenawa. Ali se deixaram impregnar ao vivo - ia dizer ‘possuir’ - pelo espírito do livro e pela mensagem cosmo-ecológica do Davi. Foram assim capazes de escrever, em imagens e sons, um novo capítulo, uma nova versão do livro!

 

O que é mais forte nas imagens?


O mais forte no filme é a sua extraodinária maestria de composição de sons e imagens que consegue fazer tanto dos humanos quanto dos não-humanos, como a floresta, os animais, as nuvens, a montanha… Os personagens de uma verdadeira ópera metafísica. Esta composição flui como uma sucessão de ondas oníricas ao longo do filme. Assim o filme não explica nem descreve de fora o pensamento e o mundo Yanomami. Ele nos faz mergulhar profundamente nele de olhos e ouvidos, propiciando uma profunda experiência de convivência sensível e intelectual.

 

O senhor já declarou que é guiado pelo desejo de restituir a palavra dos Yanomami. O filme é também um esforço nesse sentido?


Davi Kopenawa já explicou muita vezes quão fundamental é divulgar as palavras e as imagens dos Yanomami entre os napë pë (não Yanomami) na luta deste povo indígena para sua sobrevivência e a defesa dos seus direitos. Sem isso há tempos, os Yanomami já teriam desaparecido, abandonados ao silêncio da memória, ‘esquecidos como jabutis no chão da floresta’, diz o Davi.

 

Portanto, ‘A queda do céu’, livro e filme, participam, como as fotos de Claudia Andujar, e cada vez mais como as produções dos artistas, cineastas e pesquisadores Yanomami, num mesmo grande esforço de divulgação da riqueza do pensamento e do modo de vida Yanomami no Brasil e no mundo. Esta divulgação é hoje um arma simbólica poderosa para os Yanomami, um verdadeiro seguro de vida politico. Nenhum governo pode, hoje, ignorar a causa Yanomami.


O que diferencia os Yanomami de outras nações indígenas?


Os Yanomami são o maior povo indígena da Amazônia a ter ficado com pouco contato com a sociedade nacional na maior parte do seu território até o fim do século 20. Somam aproximadamente 54 mil pessoas num território de 220 mil km2 entre o sul da Venezuela e o Norte do Brasil que representa 1,5% da floresta tropical ainda preservada no planeta. Só no Brasil são 29 mil repartidos em 366 grupos locais.

 

A região de interflúvio que ocupam nos estados de Roraima e Amazonas é considerada pela comunidade científica como uma área prioritária em matéria de proteção da biodiversidade na Amazônia brasileira. Mesmo assim, assistimos hoje na Terra Indígena Yanomami, no começo do século 21, ao último episódio da corrida ao ouro colonial que não parou de devastar a América indígena desde o século 15. Trata-se da última fronteira da conquista. Os últimos bandeirantes, ‘comedores de floresta’, chegando ao vivo nos confins do norte do Brasil depois de 524 anos!


O senhor declarou em 2023 que estava escrevendo um livro sobre mitologia Yanomami. Como anda este projeto? O que aprendeu recentemente e que não sabia?


Terminei a primeira versão deste livro que estou agora revisando antes de mandar para a editora. Trata-se de 40 ‘histórias do primeiro tempo’ que me foram contadas por um velho mestre Yanomami quando comecei a trabalhar com este povo nos anos 70, com pouco mais de 20 anos. Ele teve na época a grande paciência e a generosidade, através desses relatos, de me ensinar o que eu devia saber sobre a filosofia Yanomami para me tornar uma pessoa menos ignorante entre eles.

 

Portanto, mais do que 40 mitos, são 40 lições sobre as origens do mundo-floresta Yanomami, acompanhadas de comentários meus para tentar restituir da melhor maneira possível a riqueza intelectual destes relatos depois de décadas de estudos com os Yanomami. A língua, a tradição e os conhecimentos Yanomami sobre a floresta são de uma tal abrangência e complexidade que puderam ocupar não só a minha curiosidade, mas também a de várias gerações de pesquisadores de diversos paises desde mais de meio século.


Por que o senhor acredita que os Yanomami somos nós amanhã?


Desde os anos 1970, nosso mundo, o ‘Povo da mercadoria’ como nos chama Davi Kopenawa, tem submetido os Yanomami a uma intensa guerra bacteriológica e ecológica. Muitos morreram de epidemias então desconhecidas, grandes trechos de floresta foram desmatados, muitos rios foram poluídos… Hoje com a pandemia da Covid, a epidemia de dengue, a acumulação de catástrofes climáticas (como os incêndios de Roraima e a inundações no Rio Grande do Sul) entendemos pouco a pouco que o que infligimos aos Yanomami em sua terra está tornando-se uma realidade em grande escala para todos nós.

 

Assim fica cada vez mais evidente que as contaminações e destruições que impomos a eles eram somente uma prefiguração, um modelo reduzido, do que estamos hoje nos infligindo a nós mesmos, desta vez em escala planetária. ‘Estamos doravante em via de fazer de nós mesmos o que já fizemos deles’, já escrevia Lévi-Strauss em 1994.

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