Rafael Fava Belúzio
Especial para o EM
Rodrigo Garcia Lopes publica a antologia “Zona e outros poemas”, reunindo parte expressiva da obra poética do europeu Guillaume Apollinaire (1880-1918). Com mais de 500 páginas e com o respeitado selo da Penguin Companhia, o volume conta com tradução, introdução, comentários e cronologia feitos pelo antologista, bem como apresenta, em edição bilíngue, parte importante dos livros “Álcoois” (1913) e “Caligramas” (1918). No último dia 30, o lançamento ganha Menção Honrosa no III Prêmio de Tradução da Embaixada da França no Brasil. A homenagem é merecida tanto para o traduzido quanto para o tradutor.
Guillaume Apollinaire escreve em francês e se torna um dos maiores poetas dos modernismos, verdadeiro anjo da vanguarda. Ecoa na sua literatura o sopro do passado, enquanto o autor é impelido para o futuro. Alia a ordem, determinado repertório que revisita a tradição lírica, e a aventura, criação de uma poética singular. Há nele muito de livros sapienciais bíblicos e da lírica do final de século 19 francês, ao mesmo tempo que, na aurora do século 20, tece relações inovadoras com o cubismo e com o surrealismo. Articula recursos sonoros, feito a anáfora ouvida nos “Salmos”, e uma poesia visual capaz de desenhar com letras.
Portanto, traduzir Apollinaire é uma difícil empreitada. No Brasil, outros seguiram o desafio, como Álvaro Faleiros, com o belo “Caligramas” (Ateliê Editorial e Editora UnB, 2008), e Mário Laranjeira, que verte integralmente os “Álcoois” (Hedra, 2013), sem falar em traduções mais pontuais de Carlos Drummond de Andrade, Mário Faustino e Décio Pignatari.
No caso particular de Rodrigo Garcia Lopes, um aspecto que chama a atenção é o equilíbrio obtido entre o sonoro, o visual e o conceitual, encontrando soluções criativas com habilidade no desenvolvimento de recursos de ritmo, imagem e sentido.
Por exemplo, no poema “Os suspiros do atirador de Dakar”, o penúltimo verso (“Où tant d’affreux regards”) é transformado em “Onde tantos olhos horrorosos”, de maneira que em português seja preservada alguma proximidade vocabular com o francês (tant/tantos), mas também apareça a repetição da vogal “o”, de modo que o círculo vocálico remeta ao globo ocular.
Assim, o tradutor desenvolve um estilo que leva em conta as noções de “transposição criativa” (Roman Jakobson), “transcriação” (irmãos Campos) e “transpoetização” (Paulo Henriques Britto). Nessa via, na “Introdução” e nos “Comentários” do livro, é perceptível o cuidado reflexivo de Rodrigo Garcia Lopes, havendo apontamentos acerca das suas opções tradutórias.
Aliás, há algum tempo, o organizador de “Zona e outros poemas” faz ressurgir, em português, poetas significativos, um espectro que vai do latino Marcial à estadunidense Sylvia Plath, além do notável burilamento em “Folha de relva”, de Walt Whitman, lançado em 2004 pela editora Iluminuras, e de várias plaquetes organizadas recentemente na Galileu Edições.
Esse percurso parece indicar o que Paulo Leminski, ainda nos anos 1980, afirma sobre Rodrigo Garcia Lopes: impressiona nele a abertura cosmopolita e a coragem da informação difícil. Poderia dizer que conjuga capacidade de aliar, na tarefa do tradutor, a ordem caprichosa e a aventura na busca pelo criativo. Talvez nessa articulação – tão leminskiana e tão apollinairiana – seja compreensível o trabalho do transcriador.
Esse duplo movimento também é sensível na sua lírica. A recente obra “Poemas coligidos (1983-2020)”, publicada em 2023 pela Kotter Editorial, reúne sete livros de poemas de Rodrigo Garcia Lopes. Ao longo das páginas, a influência de recursos caros a Apollinaire: diversidade de experimentações verbais, amplitude temática, simultaneidade poética, fragmentação, escrita cinematográfica. Ecoa em Garcia Lopes o sopro da angústia da influência, enquanto o autor é impelido para a sua própria poesia, a qual possui momentos potentes como nos versos de “c:/polivox.doc”.
RAFAEL FAVA BELÚZIO possui graduações em Letras (UFV) e Filosofia (UFMG), mestrado e doutorado em Estudos Literários (UFMG) e atualmente realiza pós-doc (UFES/CNPq). É autor, entre outros, do livro de ensaios “Quatro clics em Paulo Leminski” (UFPR) e da plaquete de poemas “Opus 10” (Tipografia do Zé).
“Zona e outros poemas”
- De Guillaume Apollinaire
- Tradução de Rodrigo Garcia Lopes
- Edição bilíngue
- Penguin-Companhia das Letras
- 560 páginas
- R$ 109,90