Egana Djabbarova
Tradução de Maria Vragova e Prisca Agustoni
uma mancha de petróleo era o seu coração
não se compadecia com ninguém
e não sabia amar
era uma mancha
no lugar dos braços e rosto,
mas ela transbordou
e agora todo o país
cheira a combustível
ou algo parecido
eis a época
não tivemos sorte
ficamos sem casa
sem esperança e sem sono
e continuamos esperando
quando a bela mulher entrará
na sala e dirá que isso
é apenas um filme
que todos estão sãos e salvos
e ninguém está preso
que é uma simples performance
e que todos somos bobos
cala-se, psssiu, não meta o nariz, não vá para lado algum, não escreva nada nas redes sociais
por que você precisa mais do que todos?
viva tranquila, do que você não gosta?
foram vocês que criaram em nós um medo genético
implantado como um estimulante liberador de correntes cerebrais a cada segundo
o que vocês dizem em sua defesa?
foram vocês que nos vestiram com trajes militares e nos obrigaram a entoar canções de guerra
foram vocês que nos prometeram um céu pacífico sobre a cabeça e quebraram a promessa.
nós não acreditamos mais em vocês.
vocês roubaram o nosso futuro, enterraram os nossos sonhos,
destruíram o que tínhamos de mais importante
o que vocês dizem em sua defesa?
eu sonhava em morar numa casa com os meus filhos,
com a minha esposa, num mundo bonito e agradável,
onde todos poderiam falar, onde tudo falaria comigo
vocês cortaram nossas línguas, joguem-nas no fogo,
é melhor queimá-las do que tê-las eternamente pregadas no céu da boca
o que vocês dizem em sua defesa?
todos os meus amados partem,
todos os meus amados levam consigo
lugares, palavras, lembranças,
retiram os resíduos do tanque com água
o que vocês dizem em sua defesa?
os livros desmancham-se com o peso das palavras censuradas,
o branco é declarado preto e tudo cheira a queimado
o que vocês dizem em sua defesa?
quando adormecemos,
falamos uma à outra: eu te amo,
marcamos no mapa o abrigo mais próximo
o caçador de sonhos não nos ajuda
o que vocês dizem em sua defesa?
quando o sangue se transforma em vergonha, e queremos rasgar os passaportes
o que vocês dizem em sua defesa?
o tempo se transformou em um tumor espesso do tamanho do olho mágico,
todos os que conheço engolem tristes as palavras,
engasgam com elas ao invés de dormirem tranquilos
o que vocês dizem em sua defesa?
digam ao menos alguma coisa.
toda vez quando alguém grita
para o cobrador do ônibus:
aprenda russo
eu tenho uma sensação estranha:
uma mistura de raiva e constrangimento
incômodo e sentimento de culpa
apesar de ensinar russo como língua estrangeira
quando um segurança me diz:
é proibido ofender os importados
referindo-se aos europeus
eu entendo que é permitido ofender os asiáticos
entristeço, quero voar
sei lá para onde, voltar à pátria mítica
onde você é como um pedaço de carne de porco na mesa muçulmana
cada vez que a mamãe me diz:
seja cuidadosa
pois é fácil nos ofender
eu me lembro das eternas palavras
exatas de Tsvetáieva:
caminhamos sob a raiva humana
e tudo torna-se compreensível.
em todo casamento azerbaijano
você deve saber dançar
mover graciosamente os braços
mover suavemente os braços
mover divinamente os braços
como animais delicados e graciosos
mas eu não sei,
não sei dançar assim,
me arrastam para a pista de baile
uma tia, uma noiva desconhecida e uma prima
mas eu não quero, eu não sei fazê-lo
me envergonho
minha colega da oitava série
me perguntou por que tinha os braços tão peludos
seus braços eram brancos
neles não se via
pelo nenhum
eu me achava anormal
então peguei nas mãos
a navalha do meu pai
a navalha paterna fez-me membro idôneo à sociedade
absolutamente normal
o meu primeiro amor infeliz
tinha os braços brancos
de delicada porcelana
cobertos de pintas vermelhas
estamos sentadas no restaurante
eu estico as mangas ao infinito
o meu segundo amor infeliz
tinha os braços brancos de porcelana
sempre escorregadios
fundiam-se com o mundo
branco como a página de um livro qualquer,
por algum motivo sempre branca
minha colega
minha professora
minha conhecida
o policial que maltratava grosseiramente um migrante
todos eles tinham braços brancos
incapazes de dançar.
“Rus bala”
- De Egana Djabbarova
- Tradução de Maria Vragova e Prisca Agustoni
- Edição bilíngue
- Editora Ars et Vita
- 104 páginas
- R$ 58
Sobre a autora e o livro
Nascida em Ecaterimburgo em 1992, a russa Egana Djabbarova é filha de pais azerbaijanos e por isso, enfrentou muitas vezes a xenofobia da sociedade de seu país. Além de poeta, é pesquisadora e professora de literatura russa e russo como língua estrangeira. Na sua obra, se destacam os temas das imigrações, alteridade e decolonialidade.
Publicou o romance “As mãos das mulheres da minha família não serviam à escrita” (No Kidding Press) em 2023, e as antologias poéticas “Bosphorus” (2015), “A pose de Romberg” (2017) e “O botão de alarme vermelho” (2020). Ganhadora do prêmio Estreia Poética da revista Nova Juventude (2016), é professora de escrita criativa na Creative Writing School, na Escola de Práticas Literárias e na Write like a girl.
A autora esteve em Belo Horizonte na última terça-feira para o lançamento de “Rus bala” (Ars et Vita), sua primeira antologia poética editada no Brasil, na Livraria Quixote, na Savassi. O título significa “criança russa” em azerbaijano e a tradução dos poemas é de Maria Vragova e Prisca Agustoni.