Denise Mattar
Especial para o EM
Em cartaz até 17 de novembro, a exposição Pancetti na Casa Fiat de Cultura: o mar quando quebra na praia...” faz um panorama da obra de José Pancetti, um pintor original, cujos temperamento solitário e formação quase autodidata favoreceram o nascimento de uma obra singular, repleta de lirismo, melancolia e poesia uma obra que emociona. Reunindo 46 trabalhos, oriundos de coleções particulares e instituições do Rio e São Paulo, a exposição ainda contempla o público com uma instalação imersiva, que traz o mar para Belo Horizonte.
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Filho de imigrantes italianos, Pancetti nasceu em 1902, em Campinas, SP, mas, aos dez anos, foi enviado à Itália para ficar com os avós. Estudou em Massa-Carrara, e entrou para a marinha mercante italiana aos 16 anos. Voltou ao Brasil em 1921, e, no ano seguinte, foi admitido como grumete na Marinha Brasileira. Permaneceu na ativa até 1946 e alcançou o posto de primeiro-tenente. Tinha um enorme orgulho de ser marinheiro, num amor correspondido pela Marinha. Seu talento para o manejo com as tintas logo foi descoberto e, nas horas vagas Pancetti pintava postais e tampas de caixas de charutos.
Enviado ao Rio de Janeiro em 1933, ele estudou no Núcleo Bernardelli. Sua permanência foi curta, mas ele passou a participar do Salão Nacional de Belas Artes várias medalhas e prêmios, inclusive o cobiçado Prêmio de Viagem ao Exterior, em 1941. O percurso estético de Pancetti é marcado por uma progressiva geometrização e pela importância que a cor vai ganhando sobre a forma, até se tornar protagonista das composições.
Para acompanhar seu trabalho, mais interessante do que dividi-lo em períodos cronológicos é mostrar as questões subjacentes à sua obra realizada nos formatos clássicos: paisagem, retrato e naturezamorta, que ele vai revestindo de acentos particulares e inesperados, incluindo a hibridação de gêneros.
“Pintura como um convés de navio”
Acompanhar essa trajetória dentro de cada tema é o que propõe a exposição na Casa Fiat de Cultura, revelando a delicada sobriedade e o denso encanto que caracterizam a obra do artista. Nas palavras de Frederico Morais: “A pintura de Pancetti é como um convés de navio, curtida de sol e sal. Não enferruja. Honesta, limpa, econômica, direta, austera, quase seca, mesmo quando a cor se expande e o gesto abriga a emoção. Não há nele nem o supérfluo, nem o desperdício”.
A mostra se inicia com uma cronologia ilustrada e um conjunto de retratos. Pancetti sempre elegeu como modelos as pessoas do povo, com as quais se identificava, abrindo algumas exceções para amigos. Pescadores, trabalhadores e lavadeiras povoam suas telas, pintadas sem nenhum tipo de embelezamento ou exaltação, numa absoluta e seca simplicidade.
Nesse núcleo, têm destaque o emblemático “Auto-vida”, autorretrato no qual ele mescla realidade, imaginação e ironia e “Retrato de Francisco”, um menino com olhar doce e ingênuo, tendo ao fundo uma paisagem de São João del-Rei. “Navio de casco vermelho” e “Barcos Ancorados” foram incluídos nesse núcleo, porque, afinal, para um marinheiro, os barcos são pessoas... Outra faceta dessa vertente são os retratos de família. Na pequena série inédita, vemos sua filha Nilma, ainda bebê, e aos 10 anos. O grupo inclui um vídeo realizado por Ula Pancetti, neta do artista, com depoimentos de críticos, familiares e amigos.
As naturezas-mortas de Pancetti não têm paralelo na arte brasileira. Ele hibridiza os gêneros tradicionais da pintura, integrando frutas, quadros, flores, mar e paisagem em cortes quase fotográficos, revelando ângulos surpreendentes de elementos banais do cotidiano. Entre as obras apresentadas nesse núcleo, estão vangoghianos girassóis e cezanianas maçãs. “Interior do meu ateliê, Itapoan, 1957” é considerada uma das últimas pinturas de Pancetti, que faleceu a 10 de fevereiro de 1958. Pertencendo até hoje à família a obra nunca havia sido apresentada anteriormente.
Fundamentalmente um paisagista, Pancetti iniciou seu trabalho retratando barcos, arsenais e galpões da Marinha, a exemplo de “Oficinas”. O homem do mar parecia não se adaptar bem à cidade, e, de suas primeiras paisagens urbanas, desprende-se uma sensação de desconforto, que aumenta a força das obras.
“O Chão” recebeu, em 1941, o Prêmio de Viagem ao Exterior, da Divisão Moderna, do Salão Nacional de Belas Artes. Pintada das janelas do Palacete Santa Helena, SP, “Praça Clóvis Bevilacqua” coloca em primeiro plano a igreja da praça, mas deixa ver, ao fundo, as chaminés fumegantes das fábricas paulistanas.
O mal-estar das cidades não se repetia no contato com a natureza, e ele se deixava impregnar totalmente pela luz de cada local. Reformado da Marinha, Pancetti passou, a partir de 1946, a se dedicar exclusivamente à pintura, e viajou muito pelo Brasil. Arraial do Cabo, São João del-Rei, Campos do Jordão e Saquarema são locais representados nesse núcleo. Realizadas com cortes enquadramentos incomuns, essas paisagens revelam a modernidade do artista, bastante diversa daquela de seus contemporâneos.
A mudança para a Bahia, na década de 1950, modificou a personalidade e a obra de Pancetti. Suas marinhas e paisagens tornaram-se intensas e plenas de luz, e seu amor pela cidade perpetuou a linda Salvador dos anos 1950 em obras como “Igreja de Santo Antônio da Barra” e “Coqueiros de Itapuã”.
A descoberta da Lagoa do Abaeté, com suas águas escuras, a areia branca e a festa colorida dos panos das lavadeiras, é um momento de encanto para o artista, sobre o qual dizia Aloysio de Paula: “Sua luz se enriquece e adquire poder e intensidade como nunca ele a exibira. Tudo canta no Abaeté. Seus verdes são mais verdes, seus vermelhos mais vermelhos”.
As marinhas são a faceta mais conhecida do pintor e o conjunto apresentado na exposição acompanha sua carreira. Passa pelos registros austeros de diferentes pontos do litoral brasileiro, revela o intenso cromatismo e a composição diagonal do período baiano, e alcança a economia de elementos de sua produção final, com obras sintéticas, nas quais a economia da composição beira o abstrato.
Criada pelo cenógrafo da exposição a instalação imersiva proporciona ao visitante uma visão do mar, resgatando esse momento especial da Bahia, no qual Pancetti circulava entre o mundo sagrado de Mestre Didi, as sensuais narrativas de Jorge Amado e o som de Caymmi, celebrando a beleza e o poder de Iemanjá senhora das águas e rainha do mar.
DENISE MATTAR é crítica de arte e curadora da exposição “Pancetti na Casa Fiat de Cultura: o mar quando quebra na praia...”
“Pancetti na Casa Fiat de Cultura: o mar quando quebra na praia...”
- Exposição com 46 pinturas do artista José Pancetti realizadas entre 1936 e 1956.
- Casa Fiat de Cultura (Praça da Liberdade, 10, Funcionários, BH)
- Em cartaz até o dia 17 de novembro.
- De terça-feira a sexta-feira das 10h às 21h; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h (exceto segundas-feiras). Entrada gratuita.