Stefania Chiarelli
Especial para o EM
Vencedora do Prêmio Nobel de Literatura, primeira asiática e 18ª mulher a receber a honraria entre os 117 premiados, a escritora sul-coreana Han Kang já havia conquistado o Booker Prize internacional em 2016 com um espantoso romance cuja personagem está decidida a não abrir mais a boca. Traduzido por Jae Hyung Woon na edição da Todavia, “A vegetariana” mostra que a renúncia acontece após um dos muitos pesadelos encharcados de sangue que invadem o sono da protagonista.
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O terceiro romance da escritora conta a história de uma mulher que aprecia ficar de ponta-cabeça, vendo tudo à sua volta em posição invertida. A protagonista Yeonghye conclui que essa postura é também aquela das árvores, que estariam de cabeça para baixo, “com as mãos no chão”. Raízes vegetais e mãos humanas estariam assim irmanadas e cresceriam em direção ao céu: “Preciso me encharcar de água. Não preciso de comida, mana. Só de água”, afirma. Em um planeta convulsionado por guerras, adoecimentos e crise climática, a proposta da personagem está mais próxima da lucidez do que do delírio. Mas ela será internada em um hospital psiquiátrico, porque se recusa a comer carne. Quer virar planta.
Intercalados com os sonhos (narrados em primeira pessoa), três blocos estruturam a narrativa em que Yeonghye é vista pelos outros – no primeiro, narra o marido, com quem vive uma relação morna; no segundo, o cunhado, videoartista que a enxerga como objeto de desejo e pinta flores em seu corpo para realizar um experimento artístico e erótico; e finalmente a irmã, que se ocupa dela no implacável último ato, quando está internada em uma clínica para tratar do corpo que definha. Essa espécie de tríptico formado pelo olhar das pessoas próximas nunca alcança sua real essência ou motivações: não mastigar carne é um imperativo íntimo muitas vezes ridicularizado e questionado por todos que a cercam.
A nova dieta traz consigo um turbilhão de reações inesperadas, entre elas a da própria sociedade, que ignora sua vontade e insiste em submeter essa mulher às leis que que supostamente a defenderiam. No círculo próximo, um pai autoritário, veterano da guerra do Vietnã; um marido que a força a fazer sexo e um psiquiatra que a obriga a receber alimentação por sonda. A carne macia dos animais se equipara muitas vezes à das mulheres na satisfação do desejo masculino.
Não por acaso, “aguentar” é verbo reiterado no texto. A ação se refere a sustentar decisões ou suportar a insidiosa violência, como quando o pai obriga a filha a engolir um pedaço de carne de porco no almoço familiar, depois de esbofeteá-la. Um contraponto a tudo isso surge no trecho em que a personagem expressa, dentro de um sonho, o desejo de não matar. Nesse universo onírico, ela constrói a equivalência entre ter peitos e se recusar a comer carne. Os mesmos seios irão aparecer pintados de dourado para a filmagem do cunhado, em que o corpo é visto como “imensa flor em chamas”.Cada vez mais frágil fisicamente, a personagem sonha em se tornar planta, necessitando nada além de água e sol. No entanto, a decisão ética de se salvar da brutalidade a aproxima cada vez mais da própria morte.
Não é difícil entender a consagração da prosa da autora. Da capacidade de narrar o grotesco de cenas regadas a sangue e violência, o texto flui para passagens de grande delicadeza, como no sonho do menino Jiu e sua mãe-passarinha, ou da flor que brota do púbis por onde escorre a seiva verde de um corpo-planta, agora alimentado por vegetais, grãos e verduras cruas.
Mas o sutil mundo vegetal da prosa de Han Kang não oferece solução diante de uma sociedade ancorada na truculência. Em grande sofrimento, o romance termina com as duas irmãs dentro de uma ambulância percorrendo um parque florestal. Diante da densa vegetação, a irmã espera das árvores uma resposta. Que não virá.
“Atos humanos”
“Por que me matou?”, indaga um dos mortos que protagonizam“Atos humanos” (2021). É também uma perplexidade a pavimentar o segundo romance da autora publicado no Brasil e traduzido por Ji Yun Kim.Nascida em Gwangju, cidade sul-coreana do levante estudantil em protesto à ditadura de Chun Doo-hwanem maio de 1980, Kang constrói um mosaico polifônico paranarrar as atrocidades cometidas contra a população local - milhares de mortes ocorreram após a ação do exército, que disparou contra os manifestantes.
Com grande domínio narrativo, a autorase debruça sobre um trauma transgeracional do país erecria ficcionalmente o episódio, recuperando fragmentos da tragédia a partir dediversos pontos de vista: um estudante à procura do corpo do amigo Dongho, o espírito de um dos mortos, um editor em luta contra a censura de seus textos, um prisioneiro, e também uma mãe enlutada. A eles se agrega um comovente desfecho,quando se coloca em primeira pessoa no epílogo do livro.
“Atos humanos” confirma o talento da escritora no manejo de distintas vozes narrativas, construindo, para os vivos e os mortos, uma espécie de altar memorial coletivo, em que ouvimos os murmúrios das preces, o lamento dos sobreviventes e o barulho infernal das metralhadoras.Há uma mortandade em curso, não somente aquela do passado, mas uma outra, de ação prolongada na memória dos vivos. Os corpos nunca encontrados assombram seus familiares, e essa fantasmagoria segue reverberando no presente marcado por um eterno retorno.
No Brasil foi publicado também “O livro branco” (2023), com tradução de Natália Okabayashi, obra autobiográfica em que, a partir de múltiplas conotações da cor branca, a autora se relaciona com a memória de uma irmã recém-nascida morta nos braços da mãe.
Uma síntese possível da prosa de Han Kang aponta para corpos desaparecidos, como o do bebê em“O livro branco”ou daqueles assassinados covardemente em “Atos humanos”. É também um corpo que definha e desaparece o mote de “A vegetariana”.Unidas pelo tema da morte, as páginas dos dois últimos exalam cheiro de sangue e carne viva. Em tempos de banalização da brutalidade e de nossa incapacidade de reagir, a literatura de Kang escolhe narrar a carnificina por meio de uma linguagem capaz de mobilizar nossa revolta, sustentada pela elaboração de imagens poéticas de grande força.De mãos vazias, os leitores caminham com ela, se alinhando a essa escrita de ponta-cabeça, que contrasta o coturno dos soldados com a resistência de um corpo-flor.
STEFANIA CHIARELLI é professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF) e, publicou, entre outros, o livro "Partilhar a língua - leituras do contemporâneo"
Para ler Han Kang no Brasil
Todos os livros foram lançados pela editora Todavia
“A vegetariana”
Tradução de Jae Hyung Woo
176 páginas
R$ 74,90
“Atos humanos”
Tradução de Ji Yun Kim
192 páginas
R$ 70,90
“O livro branco”
Tradução de Natália T. M. Okabayashi
160 páginas
R$ 68,90
Leia trechos
“Atos humanos”
Eu me enganei ao pensar que eles eram vítimas. Eles ficaram lá porque não queria ser vítimas. Quando penso nessa cidade, me lembro do momento em que uma pessoa, linchada quase até a morte, abre os olhos com toda a sua força. O momento em que ergue as pálpebras, que não se levantam, e encara o outro à sua frente, cuspindo sangue, do qual a boca está cheia, e pedaços de dentes. O momento em que se lembra do seu rosto e da sua voz, da dignidade que parece pertencer a uma vida passada.Esmagando aquele momento, vem massacre, vem tortura, vem repressão. Empurra para a frente, esmaga, varre. Entretanto, agora, contanto que estejamos com os olhos abertos, contanto que encaremos até o fim, nós….
***
Meu corpo,intercalando em segundo lugar, de baixo para cima, foi comprimido e achatado. Mesmo comprimido desse jeito, não havia mais sangue para escorrer. Com a cabeça inclinada para trás, meu rosto, de olhosfechados e boca entreaberta, parecia ainda mais pálido à sombra do bosque. Eles colocaram um saco de palha sobre corpo do homem do topo, e agora o pagode de corpos tornara-se algo como o cadáver de um enorme animal com dezenas de pernas.
“O livro branco”
Por que as pessoas consideram preciosos os minerais que brilham, como a prata, o ouro e os diamantes? Segundo uma teoria, o brilho da água significava vida pra humanos da Antiguidade. Água brilhante é água limpa. Só a água potável – a que dá vida – é transparente. Quando eles vagavam juntos pelos desertos, florestas, pântanos sujos, e detectavam uma superfície de água distante com um brilho branco, devem ser se enchido de um sentimento de alegria. Que era vida. Que era beleza.