Parente de uma das vítimas de incêndio na casa noturna República Cromañon pede justiça em Buenos Aires: quase 200 mortes e 700 feridos -  (crédito: REUTERS/Marcos Brindicci)

Parente de uma das vítimas de incêndio na casa noturna República Cromañon pede justiça em Buenos Aires: quase 200 mortes e 700 feridos

crédito: REUTERS/Marcos Brindicci

“É de manhã cedo (...) O sol é uma caricatura a essa hora do dia. Estamos em dezembro de 2018 e se completam catorze anos da tragédia da discoteca Cromañon. A partir das cinco da tarde, haverá uma missa no Obelisco, epicentro da Cidade de Buenos Aires. Irão até lá aqueles que querem cantar, chorar ou se abraçar. Muitos outros não irão ou se reunirão na casa de alguém, acenderão velas, voltarão a se encontrar com velhos amigos. E há também aqueles que, com o peito fechado, não pronunciarão uma palavra”, recorda a escritora argentina Camila Fabbri, na página 14 de “O dia em que apagaram a luz” (2019).

 

 

Ela tinha 15 anos quando comprou um ingresso para a segunda das três apresentações que o grupo de rock argentino Callejeros faria nos dias 28, 29 e 30 de dezembro de 2004, na República Cromañon, em Buenos Aires. Quinze primaveras depois, lançaria o romance de não ficção que revisita a tragédia (ocasionada no dia seguinte ao show em que esteve presente) que causou a morte de 194 pessoas e deixou outras 1.432 feridas. Algumas das vítimas eram amigas de Fabbri. O livro chega ao Brasil pela Editora Nós em 2024 – duas décadas depois do ocorrido –, assim como “Estamos a salvos” (2022), uma reunião de 17 contos da autora.

 

Em “O dia em que apagaram a luz”, a escritora utiliza uma linguagem simples e direta, documentária e jornalística, para narrar acontecimentos que antecedem e sucedem a data e relembrar o episódio em si, quando um foguete atingiu o teto da casa de shows, culminando em uma fumaça que se alastraria por todo o estabelecimento e recrutaria um exército de médicos, enfermeiros e outros profissionais para tentar salvar o máximo possível de fãs dos Callejeros.

 

Essa jornada não fica restrita à primeira pessoa. A escritora conta com histórias de uma gama de familiares, conhecidos e amigos, além do ex-namorado, colhidas anos depois. Alguns são sobreviventes da catástrofe que assolou Buenos Aires. Outros, recordam os momentos de tensão e angústia ao assistir às cenas de terror na televisão e rezar para que entes queridos atendessem às inúmeras ligações por telefone, dizendo que estavam “bem”.

 

“Passei por muitos estados escrevendo esse livro. Muitas vezes nem ousei. Me arrependi de ter voltado para lá novamente (referindo-se a revisitar a tragédia). Era algo tão difícil, algo que eu já tinha falado bastante”, conta ao Pensar. “Mas o processo de escrita do livro me abriu para outras imagens, até me reuniu com velhos amigos. Pude revê-los, conversar com eles sobre isso e tantas outras coisas. Escrever o livro me fez avançar de uma forma mais adulta. Revelou-me certas áreas do meu ofício de escritora, que até então eu desconhecia. O livro foi muito lido na Argentina e continua sendo lido, principalmente nos espaços juvenis, entre os adolescentes e nas escolas secundárias. É muito bem interpretado por pessoas da mesma idade das pessoas que retrato ali. Não esperava que isso acontecesse, mas aconteceu.”

 

Na orelha da versão brasileira da obra, “O dia em que apagaram a luz” é descrito como “uma carta aberta a uma geração que bem cedo teve que lidar com as chagas do luto. Um romance polifônico, que olha o passado através dos olhos dos sobreviventes”.

 

Ao ler as histórias de quem vivenciou aquela tragédia, evidencia-se sequelas físicas ou mentais de quem cresceu tendo que “superar” (mas não esquecer) o horror que completa duas décadas. Também fica notório o quanto tocar no assunto se mostrou uma tarefa ácida ou tortuosa a vários dos entrevistados.

 

Camila Fabbri: 'Gostei do exercício de pedir a pessoas conhecidas e desconhecidas que me contassem o que lembravam daquela noite'

Camila Fabbri: 'Gostei do exercício de pedir a pessoas conhecidas e desconhecidas que me contassem o que lembravam daquela noite'

Sebastián-Arpesella

 

No 16º capítulo, batizado com o mesmo título do livro, há uma série de pequenos relatos, alguns mais descritivos, outros não tão minuciosos, sobre o que cada pessoa entrevistada estava fazendo na noite da tragédia. Um dos entrevistados diz apenas que não se lembra onde estava. Outro, chega a contestar a escritora: “Não sei por que você quer que eu te diga o que estava fazendo (...). Acho mórbido e não interessa a ninguém. Não entendo o que você quer fazer com isso, e também não me importo” (página 130).

 

“Gostei do exercício de pedir a pessoas conhecidas e desconhecidas que me contassem o que lembravam daquela noite. Ouvindo seus áudios pelo WhatsApp, que é uma ótima ferramenta, escrevi o que ouvi: seus silêncios, seu volume ao falar, suas raivas ou contradições. Parece-me que também foi necessário que alguém me dissesse: ‘Não quero falar sobre isso’. ‘Por que esse livro?’. Me ajudou a me fazer essa pergunta, mas não consegui encontrar a resposta. Uma pessoa sempre se pergunta quando está produzindo um trabalho, tanto literário quanto de qualquer outra disciplina. Para quê ou por quê? Mas nunca é respondido especificamente”, diz ela.

 

Passagem pelo Brasil

 

Em julho deste ano, Camila Fabbri foi uma das atrações d'A Feira do Livro, em São Paulo. Em mesa mediada pela jornalista Anna Virginia Balloussier, ela descreveu Buenos Aires como uma “cidade abandonada pelo Estado” em 2004 e que ninguém “cuidava dos jovens”. “E isso é muito parecido com o que está acontecendo agora. Quando o Estado desaparece e há uma crise muito grande, acontecem essas coisas, e os jovens são os grandes afetados.”


Boate Kiss

 

No Brasil, houve um episódio similiar ao da República Cromañon. Em 27 de janeiro de 2013, a Boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, pegou fogo, e o incêndio resultou em 242 mortes e 636 feridos.

 

 

Entrevista

 

De que forma as novas gerações, incluindo os jovens roqueiros, pensam sobre a tragédia de 20 anos atrás? E a Argentina de hoje?


Não estou certa sobre isso. Sei o que penso, mas não sei como é para os jovens roqueiros ou para a cena musical argentina. Reconheço que foi um marco no cenário cultural, principalmente em Buenos Aires. Durante 20 anos, são realizadas homenagens de diversos tipos, especialmente pelas associações de pais e mães das crianças e sobreviventes da Cromañon. É uma boa notícia que essas pessoas se unam e protejam a causa, por exemplo, o que hoje resta do edifício da República Cromañon. Preservar o santuário e transformá-lo em uma área sagrada.

 

Poderia nos contar um pouco sobre seu processo de escrita em “Estamos a salvo”? Qual você diria que foi o fio-condutor ou elemento que une os 17 contos?


“Estamos a salvo” é um livro que escrevi quase em paralelo a “O dia em que apagaram a luz”. Por alguma razão, juntamente com meu ex-editor, decidimos que “O dia...” sairia primeiro. Talvez para tentar algo diferente. Até aquele momento, eu havia publicado “Los Accidentes”, meu primeiro livro de contos, em 2015. “Estamos seguros” é o resultado de muitas histórias que ficaram fora daquele livro e escritos nos quais continuei trabalhando nos anos seguintes. São muitas histórias que desenvolvi em espaços de oficina, com (as também escritoras) Romina Paula e Liliana Heker e também sozinha. Não sei se reconheço um elemento específico para as 17 histórias, como você diz. Penso que estão entrelaçadas pelos perigos da vida quotidiana, pela consonância entre a vida animal e a vida humana.

 

O que futuro te reserva em termos de novos projetos e livros?


Por enquanto não estou escrevendo um novo livro. Meu último livro (“La reina del baile”) foi publicado em novembro do ano passado (na Argentina), e ainda estou passando por esse processo, um pouco sem ideias para algo novo. Mas haverá tempo, não há necessidade de pressa.

 

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