Como era previsto, nomes internacionais como o francês Édouard Louis e o senegalês Mohamed Mbougar Sarr estiveram entre as atrações mais concorridas da 22ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), encerrada no último domingo na cidade histórica do Rio de Janeiro. Mas merece idêntico destaque a decisão da curadoria, exercida por Ana Lima Cecilio (e já confirmada para a edição 2025) de espelhar na programação a representatividade feminina na atividade literária no século 21. Se, na primeira edição da Flip, em 2003, havia apenas uma mulher (Ana Maria Machado) na programação oficial, das 55 pessoas que subiram ao palco principal em 2024, entre autores e mediadores, 38 eram mulheres. Leia, a seguir, entrevista com Ana Cecilio e depoimentos de três mineiros, as escritoras Carla Madeira (“Tudo é rio”) e Marcela Dantés (“Vento vazio”) e o editor Wallison Gontijo (Impressões de Minas), sobre a festa literária.
Entrevista/ Ana Lima Cecílio
(curadora da Flip)
Qual a avaliação que você faz da Flip?
Acho que três questões me orientaram na montagem dessa curadoria: o João do Rio (autor homenageado), com tudo que ele traz de novidade (a observação da transformação da cidade e do texto, aprendendo a olhar para o que há de humano no desenho da paisagem urbana), os temas que são incontornáveis hoje (a emergência climática, o discurso de ódio, as big techs, o genocídio na Palestina etc) e a força da literatura, que, afinal, não se deve deixar perder numa festa literária. Por isso, fechamos a Flip com muita alegria: acho não apenas que tudo isso apareceu de um jeito muito vivo e contundente, mas também se conectou em todas as mesas – os temas foram circulares, os autores falaram as mesmas palavras, tudo parecia conversar.
Como avalia a participação das duas autoras mineiras nas mesas da programação principal?
As autoras mineiras tiveram participações brilhantes. Marcela Dantés, em conversa com a italiana Ilaria Gaspari, falou sobre como é poderoso dominar as emoções na construção de uma narrativa, como o imprevisível brota nas histórias e é capaz de fazer a literatura mais bonita. Carla Madeira fez uma fala linda sobre tornar-se escritora, entender o que está em jogo e em como sua literatura ensina sobre o perdão, sobre compreender o mundo pelo afeto.
Podemos dizer que a Flip 2024 também espelhou o protagonismo feminino na produção literária contemporânea?
Das 55 pessoas que subiram ao palco principal, entre autores e mediadores, 38 eram mulheres. Claro, eu acho que a Flip há alguns anos tem se ocupado com essa questão, preocupação que não havia nas primeiras. Mas é mais que isso. Hoje, se buscamos os temas relevantes, se pensamos em que direção dar, é muito natural que o número seja, se não maior, ao menos equivalente. A Flip é um reflexo do que as editoras produzem, e as editoras trabalham muito com o desejo do leitor, por um lado, e por outro com os olhos no que está sendo produzido pelas mulheres. Natural, pois, que apareçam mais mulheres – coisa que nos deixa muito contentes.
Paraty para mim
Carla Madeira
Autora de “Tudo é rio”, participou da mesa de encerramento da Flip, “Invenção e linguagem: o romance segue”, com Silvana Tavano e Mariana Salomão Carrara, com mediação de Adriana Couto
“A Flip é uma experiência de um mundo bom de viver. Uma troca intensa, todo mundo disposto a ouvir e a pensar junto. Flip/Paraty é mágica, bela como lugar e acontecimento, com suas ruas cheias de encontros prestes a acontecer. A curadoria da programação oficial foi impecável, muitas conversas imperdíveis. Pura sinergia. Inesquecível.”
Marcela Dantés
Autora de “Vento vazio”, participou da mesa “A vida secreta das emoções”
com a italiana Ilaria Gaspari e mediação de Natalia Timerman
“Era uma energia diferente. Uma eletricidade no ar. Aquela gente toda falando de literatura, mas também da vida. De como o mundo é de todos, do coletivo, e isso significa parar de olhar para o umbigo e olhar para os lados. Abrir os braços. Era uma energia, e eram também os encontros, os abraços, os aplausos. Acreditar na literatura, celebrar a palavra, apostar na mudança que brota de um texto - que, por sua vez, brota de uma vontade, de um incômodo, de uma urgência.
Estar na Flip é sempre imenso e sempre transformador. Perdi as contas de quantas vezes estive na plateia daquele auditório, me emocionando, me arrepiando, anotando avidamente coisas que eu não podia esquecer. Este ano teve isso de novo. Mas também teve o outro lado: estar ali, dividindo o palco principal com duas grandes autoras, Ilaria Gaspari e Natália Timerman, pensando o mundo e a literatura a partir das emoções. Abraçar o imponderável e o desconhecido. E esperar ansiosamente o ano que vem!”
Wallison Gontijo
Editor da Impressões de Minas, editora independente mineira
“Acho que uma contradição deve ser colocada. Os independentes foram colocados do lado oposto ao dos eventos. Ficamos do outro lado da ponte, em uma tenda grande onde eles colocaram um palco, um café, estandes de artesanato, vendas de comida, e as editoras independentes ao fundo de tudo isso. A pessoa tinha que sair de onde estava o movimento, atravessar a ponte, passar pelo artesanato, comida até chegar nos independentes. Achei contraditório, em um evento que pensa a literatura, a edição, todo o universo literário, destinar um espaço secundário para editoras como a nossa. Alguns autores que foram até lá comentaram que estávamos isolados, longe dos acontecimentos. Isso foi muito ruim.
O positivo da Flip continua sendo a possibilidade de encontrar todo mundo no mesmo local: colegas editores, escritores... Conseguimos dialogar e aprender, ver como está o mercado editorial. Sempre é muito positivo ter esse contato, uma oportunidade ímpar. Mas é preciso achar um equilíbrio entre editoras como a nossa e a Flip. Ela quer abraçar as independentes? De que adianta bancar um valor alto de inscrição e não ter a menor garantia de venda? Nós, que não temos o poder financeiro das grandes editoras, precisamos nos articular para que isso melhore. Senão a Flip vai ser um evento apenas para o turista literário.”
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