Livros -  (crédito: Pexels/Reprodução)

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Sérgio de Sá

Especial para o EM

 

O último romance do norte-americano Paul Auster (1947-2024), certeiro e comovente, traz no título o sobrenome do protagonista, Baumgartner, viúvo, professor de filosofia em Princeton, à beira da aposentadoria. O narrador conta a história dele, do relacionamento com Anna e derivações de sua família de migrantes judeus. No começo, o personagem está em casa, escreve um livro sobre o filósofo dinamarquês Kierkegaard e precisa lidar com questões domésticas.


O Auster da despedida percorre justamente – e outra vez – a trilha da vida intelectual entrecruzada a afazeres bastante tangíveis na existência cotidiana, relacionados à casa ou ao trabalho. Um devir que aparece sob a forma de dever, a tal ponto inevitável na realidade que atinge em cheio o corpo e suas quedas, em vários momentos dos cinco capítulos da obra. Se Auster nunca distancia sua literatura do pensamento sobre a verdade dentro da linguagem, cabe a pergunta: como sobreviver fora da palavra dor ou fora da dor da palavra?

 


Acompanhamos Sy (abreviação de Seymour) Baumgartner em incidentes banais e no acidente que mudou o rumo de todas as coisas, o amor entre elas. Há dez anos, o mergulho de Anna no mar era para não ser nada demais, fato corriqueiro. Entretanto, desemboca como a tragédia que impulsiona o aqui e agora da narrativa, com as redundâncias (im)possíveis. O acontecimento inicial do romance (queimar a mão na panela num dia qualquer) leva ao encontro com um novo e improvável amigo. Daí ressurge a generosidade – alguma esperança, afinal.


Baumgartner está sempre entre a seriedade controlada do texto escrito e a voluptuosidade do contato humano. O texto em elaboração sobre Kierkegaard, “Mistérios do volante”, é novidade em sua obra, maneira mais “livre” de encarar os problemas filosóficos. Uma “divagação sério-cômica, quase ficcional sobre o eu em relação aos outros eus”, na direção de uma máquina concreta e bastante norte-americana: o automóvel. Paralelamente, volta à poesia da companheira de vida toda por conta de tese que será escrita sobre ela. A carta da jovem e talentosa estudante de pós-graduação, interessada em estudar o legado de Anna, é o delírio possível a essa altura da vida.

 

 

Paul Auster

Paul Auster

QUINHO


Baumgartner força o encontro com o comum, porque a solidão que inventou para si já não basta. Parte do prazer de ler Paul Auster está na linguagem acessível que nos transporta a lugares familiares. E ele faz isso como o amigo bacana e bom contador de histórias, do qual desconfiamos de bom grado, porque sabemos se tratar de ficção. Lançado em 2023 nos Estados Unidos, o romance tem várias pegadas de outras histórias do autor e, de modo natural, inclui reflexão sobre o envelhecimento e o que será de nós que temos mais tempo no retrovisor do que no para-brisa.

 

Auster, sabemos, gosta do jogo ausência-presença. “Baumgartner”, o livro e o homem, é ainda sobre a permanência de Anna, a poeta e a mulher. Ela deixa relatos para que nós, leitores, tenhamos acesso ao seu ponto de vista. Lemos Anna em poemas ou anotações biográficas para, junto com o protagonista, sentirmos saudade da companhia que se foi. Brechas de surpresa se abrem para o leitor, mas essa relação não pula o córrego da imaginação, isto é, está sempre ancorada, ainda que tenha dimensão poética.

 


Auster é guru do real: a literatura, oferenda entre a razão e a paixão, jamais derramada em excesso para um dos lados. Quando Baumgartner pesquisa a “síndrome do membro fantasma”, em que uma parte do corpo literalmente extirpada se mantém ainda ativa na imaginação (a pessoa “sente” o dedo amputado, por exemplo), isso pode funcionar como metáfora para a literatura. O autor da “Trilogia de Nova York” consegue manter o leitor seguro em realismo cuja fantasia se dá somente como potência.


Ele, mais uma vez, brinca literariamente com a própria biografia (sem ser austero, podemos arriscar dizer?). Pós-moderno avant la lettre e despojado, deixa-se contaminar à vontade pela experiência da vida vivida e inventa outras vidas para o autor ao traçar histórias de uma suposta Ruth Auster e sua família, braço genealógico de Baumgartner. E assim vai confundido as tramas, num bom sentido. Faz parte do seu jogo de beisebol particular. Ele arremessa em curva e confia no taco do leitor.


Houve quem visse no livro alguma dispersão: muitas estradas abertas e não fechadas. Auster está perdoado pelo que oferece, como sempre, de afeto sincero saído de frases nunca exibicionistas, mesmo quando às voltas em um mundo requintado de prosa filosófica e poesia intimista. A tradução de Jorio Dauster consegue manter esse clima de reencontro com aquele velho conhecido, sábio que conta (em terceira pessoa, nesse caso) suas experiências sem querer dar lições de moral, porque sabe: toda certeza carrega um tropeço que nos obriga a voltar ao princípio.

 

SÉRGIO DE SÁ, doutor em Estudos Literários pela UFMG, é professor associado na Faculdade de Comunicação da UnB e autor de “A reinvenção do escritor: literatura e mass media” (2010) e “Bernardo Sayão: caminhos, afetos, cidades” (2023).


Trecho


(De “Baumgartner”, de Paul Auster, tradução de Jorio Dauster)

“Você se culpa, disse a terapeuta, é o que está me falando.


Não, não me culpo. Teria sido inútil insistir. Ela não era alguém que fazia o que lhe fosse dito, que aceitasse ordens. Era uma mulher adulta, não uma criança, e sua decisão de adulta era que ia cair na água de novo. Eu não podia impedi-la, não tinha esse direito.

Se não é culpa, então é uma sensação de arrependimento, até de remorso.


Não e não de novo. Posso ver em sua expressão que sente que estou resistindo a você, mas não estou. É só que preciso definir bem nossos termos antes de mergulharmos na conversa. Sim, ela ainda estaria viva se não tivesse voltado para a água, mas não teríamos durado juntos mais de trinta anos se eu tivesse tentado fazer coisas do tipo impedir que voltasse a cair na água quando quisesse. A vida é perigosa, Marion, e tudo pode acontecer conosco a cada minuto. Você sabe disso, eu sei disso, todo mundo sabe – e, quem não sabe, bom, não está prestando atenção. E, se você não presta atenção, não está de todo vivo.”

 

Capa do livro "Baumgartner"

Capa do livro "Baumgartner"

reprodução


“Baumgartner”
• Paul Auster
• Tradução de Jorio Dauster
• Companhia das Letras
• 174 páginas
• R$ 79,90