Imagem ilustrativa -  (crédito: Pexels/Reprodução)

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André de Leones

Especial para o EM

 

No começo de “Os bastidores”, Martin Amis (1949-2023) identifica “um subgênero de romances longos, digressivos e ensaísticos” conhecidos como “monstros folgados”. Ele cita como exemplo “O legado de Humboldt”, de Saul Bellow, mas afirma que, não obstante o sucesso popular dessa espécie de livro até outro dia, seu público diminuiu “em oitenta ou noventa por cento”, pois os “leitores não estão mais nesse lugar, a paciência, a boa vontade, o entusiasmo autodidata não estão mais presentes”. Claro que isso não o impediu de, em seu derradeiro esforço literário, escrever um belíssimo monstro folgado.

 

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Amis apresenta “Os bastidores” como um romance. Autor de um excelente volume de memórias, “Experience” (2000), ele aponta noutra direção aqui. A intenção é de embaralhamento. Personagens reais convivem com criações ficcionais (sendo Phoebe a mais importante delas, amálgama não só de indivíduos com quem conviveu, mas também de personagens de outros livros do autor). O fato de que Amis não rotula a obra como “autoficção” diz muito de sua inteligência e de sua indisposição para com os modismos e estultices contemporâneos.


É possível dizer que ele sempre foi assim. Filho de Kingsley Amis, um dos maiores gênios cômicos das letras inglesas, e enteado da romancista Elizabeth Jane Howard (a grande responsável por torná-lo um leitor), Amis começou a publicar com relativo sucesso nos anos 1970, mas só “chegou lá” com seu quinto romance: “Grana” (1984). Ficcionalizando a própria experiência como roteirista de uma produção hollywoodiana, ele criou uma sátira de primeira linha, marcada por uma narração em primeira pessoa de clara inspiração nabokoviana — o autor de “Lolita”, aliás, era um dos seus prediletos.

 

Ele deu prosseguimento a essa autópsia das enfermidades atuais em “Campos de Londres” e no muito subestimado “A informação”, antes de se ocupar de temas históricos complexos, como o 11/9 (no conto “Os últimos dias de Mohammed Atta”, por exemplo), o genocídio stalinista (em “Casa de encontros”) e a Shoah (em “Zona de interesse”), e de um enorme trauma sofrido — a morte precoce da irmã, Sally — em “A viúva grávida”.

 

Martin Amis faz de "Os bastidores" uma espécie de retrospectiva afetiva, com as despedidas dolorosas de amigos como Christopher Hitchens  (1949-2011)

Martin Amis faz de "Os bastidores" uma espécie de retrospectiva afetiva, com as despedidas dolorosas de amigos como Christopher Hitchens (1949-2011)

QUINHO

 

 

O leitor não encontrará n’“Os bastidores” uma retrospectiva profissional, mas, sim, uma espécie de retrospectiva afetiva. Há nele uma nota bem-humorada a nos lembrar de que a “vida do escritor é tripartida, dividida entre escrever, ler e... ah, sim, viver. Não se esqueça de viver. Isso tem que ser feito também”. Amis, por certo, não se esqueceu de viver. Atente para os papos com Bellow, Christopher Hitchens e a esposa (a leitura da carta da ex-amante é formidável), e para a fauna no festival literário francês.

 


Mas o romance é estruturado em torno de despedidas dolorosas — incluindo, inadvertidamente, a do próprio autor. Essas despedidas são de um “pai” (não Kingsley, mas Bellow), de outro “pai” (o poeta Philip Larkin) e de um “irmão” (Hitchens). Ao longo da narrativa, esses indivíduos (e a fictícia Phoebe) se alternam no proscênio, seja sob pretextos ficcionais (quando se sugere que a paternidade de um deles seja literal e não metafórica), seja sob o peso da doença (Alzheimer, câncer). Em um certo sentido, sobretudo se pensarmos nele agora, “Os bastidores” é uma longa preparação para a morte do autor, a morte efetiva, material, física. A fim de se preparar para a própria morte, nada melhor do que elaborar as mortes de outrem. E, quanto mais próximos forem os outros, melhor.


Isso talvez pareça mórbido, mas não é o caso. Por um lado, Amis se ocupa em descrever “o trabalho escravo de morrer”, “o grande suor da morte”, e a sensação que experimentamos quando perdemos alguém próximo, quando provamos “os antigos sabores de desistência e derrota”, de “desamparo”, “uma espécie de desamor terrestre: o paraíso a meu redor não se tornou infernal ou purgatorial, tornou-se comum”. Mas, por outro lado, o talento e o humor de Amis impedem que o livro se torne um calhamaço de lamentações. Assim, por exemplo, ao relatar o expirar de Bellow, há o aceno de “uma aventura”, “uma travessia”, bem como “um olhar do coração, um olhar ardente” para a pessoa amada. Não creio que exista uma forma melhor de se despedir.

 

ANDRÉ DE LEONES é autor do romance “Vento de queimada” (Record), entre outros


Trecho
(De “Os bastidores”, de Martin Amis)

 

“Borges, em sua longa conversa com a 'Paris Review', a certa altura falou com perplexidade sobre todas as pessoas que simplesmente não percebem o mistério e o glamour do mundo observável. Em uma frase que se destaca pela simplicidade, ele disse: ‘Elas tomam tudo como certo’. Aceitam o valor das coisas ‘ao pé da letra’...


Os escritores não tomam nada como garantido. Olhe o mundo com ‘seus olhos originais’, com ‘seu primeiro coração’, mas não ‘banque’ a criança, não ‘banque’ o inocente, não examine uma laranja como um homem das cavernas que brinca com um iPhone. Você sabe mais do que isso, você é melhor do que isso. O mundo que vê lá fora é ulterior: é diferente do que é óbvio ou aceito.


Portanto, nunca tome uma única partícula como garantida. Não confie em nada nem ouse se acostumar com nada. Surpreenda-se sempre. Aqueles que aceitam o valor nominal das coisas são os verdadeiros inocentes, cativantes e racionais de um jeito invejável: racionais demais para tentar um romance ou um poema. Não questionam, sim, é isso. São os desavisados.”

 

 

capa do livro "Os bastidores"

capa do livro "Os bastidores"

reprodução

 

“Os bastidores”
• De Martin Amis
• Tradução de José Rubens Siqueira
• Companhia das Letras
• 592 páginas
• R$ 199,90