Rafael Fava Belúzio
Especial para o EM
Guardar um poeta não é esconder ou trancar a sua obra. Em cofre não se guarda coisa alguma. Guardar um poeta é olhar e escutar, ler, mirar por admirar a sua poesia. É interpretar os seus versos ou ser interpretado por eles. Por isso o poeta escreve, diz, publica, por isso se declara ou declama seu poema: para guardar. Com o último voo de Antonio Cicero (1945-2024), é urgente guardarmos o que o escritor guardou.
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A obra de Cicero é uma das mais importantes produções da literatura brasileira contemporânea. Incluído por Ítalo Moriconi na antologia dos cem melhores poemas brasileiros do século 20. Letrista de vários hits da MPB, como “À francesa” (gravada por sua irmã, Marina Lima), “Maresia” (Adriana Calcanhoto) e “O último romântico” (Lulu Santos). Membro da Academia Brasileira de Letras. E são maduros muitos de seus versos, e não apenas um ou dois, compondo fortes volumes de poemas, como “Guardar” (1996), “A cidade e os livros” (2002) e “Porventura” (2012).
Nessas publicações, a poesia de Antonio Cicero consegue recolocar muitas tradições e ao mesmo tempo apresentar uma dicção amena. Aparecem nele diversos legados filosóficos, especialmente materialistas e em recusa de pensadores metafísicos. Ecoa também o universo grego antigo, bem como dialoga com a MPB, especialmente com Vinicius de Moraes. Em sua lírica, há certo pendor clássico, mas aberto ao contemporâneo.
São audíveis elementos parnasianos, como o gosto pelo soneto, porém reconfigurado e atento a um vocabulário mais modernista e cotidiano. Lembra, assim, Manuel Bandeira, além de ter forte influência de Drummond. A contenção do lirismo, algo também bastante modernista e muito em interface com João Cabral, não deixa de trazer aos versos do poeta límpidas declarações de amor a seu companheiro, Marcelo Pies, e delicados homoerotismos.
Além disso, na sua lírica consciente de legados poéticos da língua inglesa, há uma paixão recolhida na tranquilidade. Nos versos de Cicero, o poeta e o mundo estão fundidos, o poeta está no mundo e, ao mesmo tempo, pensa sobre o mundo, sobre si e sobre sua linguagem, de maneira que a disjunção entre poesia e filosofia, mais visível no ensaio “Poesia e filosofia” (2012), não seja tão notada em um livro como “Guardar”.
Aliás, nos momentos em que exerce mais a metalinguagem de poeta-crítico, recusa a estética da poesia marginal, mas não fica longe do turbilhão da rua. Enfim, por esses matizes, Antonio Cicero está alinhado às gerações brasileiras de 1980 e 1990, nas quais se vê ainda autores como Paulo Henriques Britto e Eucanaã Ferraz.
Em 2014, Antonio Cicero realizou a conferência “A dimensão da poesia”, na Academia Mineira de Letras, em Belo Horizonte. Na ocasião, leu e comentou alguns de seus melhores poemas, demonstrando uma lucidez arguta na elaboração de recursos poéticos.
Analisou, sutilmente, a presença de assonâncias e aliterações nos versos, mas sem se apoiar em clichês acústicos, uma vez que reinventa possibilidades de significação para algumas sequências de sons e expande o que quer e o que pode a língua. Nessa noite, na AML, o escritor evitou também a leitura muito performática, havendo uma sensível contenção na hora de declamar, favorecendo a percepção do traço meditativo de seus escritos.
Esse mesmo traço meditativo está presente no poema “Nênia”, da obra “A cidade e os livros”. Ler essa nênia, esse canto fúnebre composto por Antonio Cicero, talvez seja um modo de agradecer ao escritor pela sua literatura pensante e comovida:
“A morte nada foi para ele, pois enquanto vivia não havia a morte e, agora que há, ele já não vive. Não temer a morte tornava-lhe a vida mais leve e o dispensava de desejar a imortalidade em vão. Sua vida era infinita, não porque se estendesse indefinidamente no tempo, mas porque, como um campo visual, não tinha limite. Tal qual outras coisas preciosas, ela não se media pela extensão mas pela intensidade. Louvemos e contemos no número dos felizes os que bem empregaram o parco tempo que a sorte lhes emprestou. Bom não é viver, mas viver bem. Ele viu a luz do dia, teve amigos, amou e floresceu. Às vezes anuviava-se o seu brilho. Às vezes era radiante. Quem pergunta quanto tempo viveu? Viveu e ilumina nossa memória”.
Rafael Fava Belúzio possui graduações em Letras (UFV) e Filosofia (UFMG), mestrado e doutorado em vEstudos Literários (UFMG) e atualmente realiza pós-doutorado (UFES/CNPq).
Depoimentos
“Poeta da elegância, Antonio Cicero não acabou. Apenas virou verso. Verso do corpo. Está no verso de cada coisa.”
Valter Hugo Mãe, no Instagram
“A morte de Antonio Cicero, escolhida e assistida ante o avanço da doença que mina a mente, é o ato soberano de um imenso poeta filósofo. Um ato límpido, adulto e amoroso. A vida é a afirmação e a aceitação do inegociável: a plenitude e a finitude.”
José Miguel Wisnik, no Instagram
“A gente partilhava alguns espaços comuns de debates pessoalmente no interior do ciclo Mutações organizado pelo Adauto Novaes, uma oportunidade muito boa de conhecer o pensamento de cada um. Tínhamos embates muito produtivos e muito interessantes. A posição filosófica dele está no livro ‘O mundo desde o fim’ e é muito expressivo no sentido de uma espécie de liberalismo esclarecido que é uma coisa rara, na verdade, com um certo comprometimento racionalista e uma autocrítica da modernidade. Então ele tinha essa posição que não é a minha, mas ele tinha uma reflexão extremamente generosa, muito rica sobre a experiência literária, poética. Acho que todos nós lembramos muito dele por causa disso. Pela qualidade da sua poesia e por ter elevado a canção brasileira, num dado momento, a um patamar poético bastante impressionante.
A gente perde uma figura não só híbrida, mas anfíbia. Um elemento raro dentro da intelectualidade brasileira. Alguém que era, ao mesmo tempo, um filósofo muito consciente e um poeta inegavelmente criativo responsável por algumas belas poesias e belas reflexões poéticas. Ele consegue entender que o poema, assim como a filosofia, é uma forma de pensamento.”
Vladimir Safatle, filósofo, em depoimento ao Pensar
Poemas selecionados por Stefania Chiarelli
“Canção do prisioneiro”
Mesmo preso em minha cela,
Reconheço os passos dela.
Não costumo me enganar.
Ela vem bem devagar,
Quase parando, e talvez
qualquer dia pare mesmo,
dê uma volta, e era uma vez.
Ela finge andar a esmo
e de quatro em quatro passos
arrasta no chão o salto
de um dos seus sapatos altos.
Já está perto. Abro meus braços.
O carcereiro abre a cela
Vizinha. Não era ela.
“Sair”
Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.
“Guardar”
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
“Virgem”
As coisas não precisam de você:
Quem disse que eu tinha que precisar?
As luzes brilham no Vidigal
E não precisam de você;
Os dois irmãos
Também não.
O Hotel Marina quando acende
Não é por nós dois
Nem lembra o nosso amor.
Os inocentes do Leblon,
Esses nem sabem de você
Nem vão querer saber
E o farol da ilha só gira agora
Por outros olhos e armadilhas:
O farol da ilha procura agora
Outros olhos e armadilhas
“O poeta marginal”
Em meio às ondas da hora
e às tempestades urbanas
conectarei as palavras
que trovarão novas trovas
Lerei poemas na esquina,
darei presentes de grego;
a cochilar com Homero,
farei negócios da China.
Exporei tudo na rede
Sem ganhar nem um vintém:
A vaidade, a fome, a sede,
certo truque, rara mágica.
Que não se engane ninguém:
ser um poeta é uma África.
“Dilema”
O que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
e sou feito de um mundo imenso
imerso num universo
que não é feito de mim.
Mas mesmo isso é controverso
se nos versos de um poema
perverso sai o reverso.
Disperso num tal dilema
o certo é reconhecer:
no fundo de mim
sou sem fundo.
“Água Perrier”
Não quero mudar você
nem mostrar novos mundos
pois eu, meu amor, acho graça até mesmo em clichês.
Adoro esse olhar blasé
que não só já viu quase tudo
mas acha tudo tão déjàvu mesmo antes de ver.
Só proponho
alimentar seu tédio.
Para tanto, exponho
a minha admiração.
Você em troca cede o
seu olhar sem sonhos
à minha contemplação:
Adoro, sei lá por que,
esse olhar
meio escudo
que em vez de meu álcool forte pede água Perrier.