Grupo Galpão -  (crédito:  grupo galpão/divulgação)

Grupo Galpão

crédito: grupo galpão/divulgação


Eduardo Moreira

Especial para o EM

 

O Grupo Galpão acaba de retornar de uma extenuante e, ao mesmo tempo, encantadora viagem relâmpago ao México. O grupo foi uma das inúmeras companhias convidadas a participar do tradicional Festival Cervantino, realizado, anualmente, na bela cidade histórica de Guanajuato.

 

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O Cervantino completou sua edição 52 (a primeira foi em 1972) e se consolidou como um dos principais eventos culturais do México e da América Latina.A edição de 2024 teve, como convidados de honra, o Brasil e a província mexicana de Oaxaca, e contou com mais de 47 espetáculos, entre teatro, dança, filmes e shows musicais.


O convite e a oportunidade de encontrar o público mexicano nos fizeram empreender uma viagem que totalizou mais de 40 horas de avião, entre Belo Horizonte, São Paulo e a cidade do México, com mais 12 horas de trajeto de ônibus entre Guanajuato e a capital, em seis dias. Um tour de force um tanto desaconselhável para um grupo de artistas já sexagenários, mas que acabou recompensado pelo entusiasmo e pela alegria da recepção dos mexicanos ao nosso espetáculo.


A seguir, um breve diário de viagem desse périplo do Galpão, que celebrou nossa terceira visita ao México, dessa vez, com o espetáculo “Cabaré Coragem”.

 

 

QUARTA, 9/10

 

Saída da sede do Galpão, na rua Pitangui, no bairro da Sagrada Família, zona Leste de BH. O voo para Guarulhos está marcado para as cinco da manhã e, como temos que viajar com muitos volumes extras como malas de figurinos, adereços e instrumentos musicais, a prudência pede que cheguemos com antecedência. Duas horas da manhã, e a van leva o grupo, com nove pessoas, entre atores, técnicos e a produtora.


A penumbra da noite e o vazio das vias saltam aos nossos olhos para a triste realidade de como Belo Horizonte transformou-se numa cidade árida, com avenidas de passagem pouquíssimo arborizadas, feitas exclusivamente para a circulação de carros.

 

O espaço urbano é concebido, única e exclusivamente, para o trânsito de veículos. Triste tendência, resultado de uma concepção equivocada de progresso, que só vai tornando a vida das pessoas mais e mais infernal. Uma tônica do planejamento urbano brasileiro que só faz com que nossas cidades fiquem cada vez mais feias e descaracterizadas.

 


A possibilidade de transportarmos apenas alguns volumes, sem ter que pagar excesso de bagagem, é fruto da organização e da gestão de meses e meses de negociações, com trocas de mapas das condições do teatro e a checagem das demandas técnicas para a realização do espetáculo. Todo o cenário está sendo construído pelo Festival Cervantino.

 

É preciso fazer todo o trabalho de checagem e de finalização do acabamento, ao longo dos quase três últimos dias antes da apresentação. Quem assiste ao resultado final do espetáculo não pode imaginar o enorme esforço empreendido para pôr tudo no lugar.


Feitos a embalagem e o despacho do material, rumamos para o embarque. Os aeroportos transformaram-se em enormes construções faraônicas, com infindáveis corredores e portões a serem checados e percorridos.

 

Depois das intermináveis perambulações por Confins e Guarulhos, finalmente, estamos alojados em nosso voo, das 8h20, de São Paulo para a cidade do México. Uma viagem de nove horas, num avião bem vazio, que nos aliviou um pouco da recorrente sensação de estar numa lata de sardinha, que não passa de um tubo de metal lotado de querosene que rasga os céus de nosso sofrido planeta Terra.


Quase cinco da tarde no Brasil e duas no México, e, finalmente, desembarcamos no aeroporto Benito Juarez, no DF, como se referem os mexicanos à sua capital. Uma cidade das mais populosas do mundo, cheia de parques e museus, mas que também tem suas vias de circulação entupidas de carros por todos os lados. Na chegada do aeroporto, enormes filas na imigração. O México, por imposição dos EUA, exige visto de entrada para cidadãos brasileiros.


“Pobre México – tão longe de Deus e tão próximo dos Estados Unidos!”. A pressão do vizinho para que o país restrinja, a todo o custo, o acesso dos imigrantes que vêm das Américas Central e do Sul é cada vez mais sufocante. Mesmo a eleição de governos mais à esquerda, e, aparentemente, menos sujeitos às exigências impostas pelo império, não consegue diminuir a pressão pelo controle.

 

A questão da imigração tornou-se ponto central na polarizadíssima eleição americana, e chegamos a extremos do ridículo, como a Fake News, divulgada por Trump, de que imigrantes teriam matado e comido bichinhos pet dos americanos na cidade de Springfield, no Ohio. Como se os americanos não precisassem dos imigrantes para limpar suas privadas! O fato é que as filas são grandes e os trâmites de verificação, penosos. Instruídos pela organização do Cervantino e pela produção do Galpão, trazemos, a tiracolo, um verdadeiro dossiê, com cartas de recomendação, informações sobre o festival, testemunho da embaixada e cópia do visto de entrada.

 


Já em solo mexicano, trocamos alguns dólares por pesos, compramos chips para os celulares e adaptadores de tomadas, e já entramos numa van em direção ao hotel onde pernoitaremos na cidade do México. O cansaço é tamanho que só conseguimos comer uma refeição bem picante e cair na cama, desnorteados por um fuso horário com três horas de atraso.

 

Grupo galpão

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Grupo galpão/divulgação


QUINTA, 10/10


Nove horas da manhã, desayuno tomado, partimos para Guanajuato, numa viagem prevista para durar cinco horas, dependendo muito das condições do tráfego na saída da cidade. Há vários gargalos pelo caminho que os motoristas mexicanos parecem encarar com mais paciência e menos imprudências do que nós, brasileiros, no nosso dia a dia de engarrafamentos.


Quando deixamos para trás a agitação urbana, começam a surgir vastidões de campos floridos com margaridões e florzinhas amarelas e rosadas, com nuvens de borboletas que cruzam a estrada. Seguimosna direção Nordeste, no sentido das cidades de Queretaro e Leon. Guanajuato está numa região de montanhas. A viagem acaba durando seis horas, e o que resta do dia é dedicado a almoçar e dar uma caminhada pelas estreitas e agitadas ruelas da cidade.


Guanajuato foi um importante centro de exploração mineral, especialmente de prata e de ouro. A cidade tem oito quilômetros de túneis construídos em seu subterrâneo. Fundada em 1547, a cidade cujo nome significa “lugar cheio de rãs” ocupa uma região antes habitada pelos povos originários chichimecas e otomies. Com imponente arquitetura de estilo tipicamente espanhol, com casarões de sacadas e balcões, Guanajuato tem uma universidade imponente, igrejas, e um impressionante teatro, o Juarez, plantado bem no centro da cidade.


Visita ao teatro Principal, onde faremos nossa apresentação única do “Cabaré Coragem”. O teatro pertence à universidade e tem uma caixa bem ampla e com sinais de desgaste pelo tempo. O cenário decadente do nosso cabaré se assenta como uma luva na atmosfera do espaço. A proposta de fazer o cenário com tudo aberto, sem uso de pernas, escancara as entranhas da estrutura da caixa teatral, e isso é a cara de um cabaré decadente. Enquanto passeamos pelo palco e pelos bastidores do teatro, os últimos ajustes de colagem e pintura são feitos no cenário.


Conversamos, Julio, Inês e eu, com nossos receptivos mexicanos, Dália e Jorge, sobre ajustes da versão espanhola do texto. Será um enorme desafio fazer a peça em espanhol, e temos que tomar cuidado para que o esforço de suplantar as dificuldades não nos deixe travados. É preciso levar as coisas na brincadeira e no jogo.

 

E pensar que alguns erros serão inevitáveis. A cena mais complicada e de difícil conexão com o público estrangeiro é a da transformação da Monga, cuja comicidade está muito calcada na história das joias roubadas das Arábias pelos Bolsonaro. Sem essa contextualização, a cena pode parecer um tanto vazia, e mesmo misógina. O caminho proposto para tentar encontrar uma conexão com a realidade mexicana é a de incluir uma referência a Martita Sagún, primeira-dama do presidente Fox, que ficou famosa pelas vultosas toalhas de mesa que comprava, aos borbotões, no exterior.

 

SEXTA, 11/10

 

Estamos hospedados numa típica e aprazível estância espanhola, criada no auge do período da exploração da prata na cidade. O hotel funciona como base para a organização do festival e as coisas parecem funcionar razoavelmente bem.


A manhã de hoje é o tempo que nos sobra para fazer um pouco de turismo. Vamos visitar a casa onde nasceu o pintor Diego Rivera. Junto a Orozco e Siqueiros, Rivera é o grande expoente da vistosa arte muralista mexicana, escola que criou grandes murais públicos, contando a história do México sob o ponto de vista das classes populares. São impressionantes os murais de Rivera espalhados por locais icônicos da cidade do México, como o Palácio Nacional, o Palácio Bellas Artes e o Museu Mural Diego Rivera.

 

A chamada “Casa azul”, no bairro de Coyoacan, onde Rivera viveu com Frida Khalo, é um dos pontos turísticos mais visitados do México. Já o pequeno museu, instalado na casa onde o artista viveu até os seis anos, em Guanajuato, é uma típica casa espanhola com quatro andares, onde se encontra uma didática exposição sobre sua formação e seus primeiros passos na pintura, além de sua relação de amor e ódio com as vanguardas europeias, especialmente o cubismo, e, também, sobre sua admiração por Cézanne.


Guanajuato teria muitas opções de turismo, mas, como não sobra tempo, optamos por uma rápida passada no teatro Benito Juarez, com sua imponente e eclética construção e uma fachada neoclássica que salta aos olhos. O palco está sendo ocupado pela montagem do espetáculo “Enquanto você voava, eu criava raízes”, dos queridos amigos do grupo “Dos à deux”, que também está na programação do Cervantino.


Fim do breve período de turismo e já estamos no palco do teatro Principal, para preparar a contrarregragem, fazer a passagem de som e tentar ajustar as novidades (que não são poucas!), como as cenas faladas em espanhol e a entrada de Paulo André no papel do dono do Cabaré, em substituição a Teuda, que não está abandonando o papel, mas foi simplesmente poupada dessa empreitada, que seria um pouco puxada demais para uma pessoa de mais de 80 anos. Prova disso é que saímos do ensaio às 23 horas, e estamos marcados, para ajustes da cena do novo patrão do cabaré, amanhã às 11 da manhã.


SÁBADO, 12/10

 

O dia começa com uma “charla” com estudantes de teatro e com a imprensa, sobre a história e o trabalho do Galpão, com especial ênfase no Cabaré que apresentaremos à noite.Falar do Galpão é, necessariamente, falar da diversidade de caminhos e de um trabalho que tem conexão muito forte com a comunidade. Quanto ao cabaré, ele acaba nos remetendo muito à própria história do teatro mexicano. O país tem larga tradição nesse campo. Alguns exemplos dessa força são Astrid Hadad, Jesusa Rodriguez, Liliane Felipe e o grupo “Las Reinas chulas”.

 

Todas elas mulheres que desenvolveram um trabalho de contestação política e social típico da natureza do cabaré. Jesusa e Liliane foram as primeiras lésbicas que tiveram o casamento oficialmente reconhecido no país e criaram um espaço de resistência criativa que marcou o panorama teatral da cidade do México, o famoso teatro-bar “El hábito”. O mesmo espaço que, anos depois, transformou-se no teatro-bar “El vício”, comandado agora pelas “Reinas chulas”.


Durante a conversa, decido, educadamente, dispensar a tradutora e falar num “portunhol” que acaba criando maior empatia com o público. A trajetória de 42 anos do Galpão causa muita curiosidade, e o debate fica animado e cheio de perguntas. A “charla”, feita no próprio teatro, tem que ser interrompida porque o elenco precisa retomar os ensaios para a substituição da dona do cabaré.


O tempo é curto. Passamos, algumas vezes, a cena do embate do patrão com os funcionários/artistas do cabaré e tentamos ajustar detalhes das legendas. Depois de uma pausa para o almoço, voltamos ao palco, para fazer os últimos ajustes de som, sempre os mais complicados e que mais facilmente podem derrubar uma apresentação. Quatro da tarde. Fazemos aquecimento de voz, maquiagem, colocamos os figurinos e estamos prontos, à espera do público. As portas do teatro Principal abrem às 17h30, e o espetáculo começa, pontualmente, às 18h.


Chegamos ao clímax da expectativa. Afinal, é para esse momento de encontro com o público que tudo é feito. A reação acaba sendo bastante positiva, e, até mesmo, surpreendentemente festiva. Não podemos servir bebidas alcoólicas, o que parece um pouco alheio ao espírito de um cabaré. Mas as pessoas embarcam na proposta. Alguns espectadores se declaram surpresos com a radicalidade e a contundência da crítica política. “É Brecht!”, respondemos, numa espécie de justificativa.

 

Mas as considerações de um público estrangeiro nos fazem pensar até que ponto o espetáculo de fato reflete uma reação a tudo que enfrentamos com a pandemia e a violência de uma estrutura de poder que, no Brasil, por quatro anos, arquitetou uma campanha insidiosa contra o país e sua cultura. Talvez a elaboração mais direta e menos sutil seja um reflexo a esse duro embate com um governo de extrema direita.


A situação política do México, aparentemente, parece que vem se mostrando mais estável. López Obrador, o AMLO, como é conhecido entre a população, deixou a presidência com aprovação popular de mais 60%. Ele parece focado na questão da diminuição da miséria e da desigualdade social, numa perspectiva um tanto distante do neoliberalismo tão apreciado por nossas elites. A eleição de sua sucessora, Claudia Scheinbaum, a primeira mulher presidente(a) de um país marcadamente machista, aconteceu de maneira natural e sem sobressaltos.

 

A nova presidente(a) é uma mulher educada, preparada, vencedora de um prêmio Nobel da Paz como integrante do Painel de cientistas climáticos da ONU, em 2007, e proferiu um belo discurso de cunho marcadamente feminista em sua posse. Aparentemente, as coisas parecem afinadas e com boas perspectivas, ainda que alguns setores, inclusive da esquerda e ligados à universidade, não deixem de criticar o MORENA – Movimento Regeneração Nacional, ao qual AMLO e Claudia são ligados, como marcadamente populista, e que passa longe de tocar nas profundas causas da pobreza e da desigualdade no país.


O fato é que, numa percepção superficial de quem não vive o dia a dia da realidade, as pessoas no México parecem mais amenas e sociáveis do que no Brasil. As discussões de temas espinhosos, como a eleição de membros da Corte e do judiciário, parecem ser conduzidas de forma mais equilibrada e com espírito público. Ao travarmos contato com um povo sempre tão simpático e receptivo, custamos a acreditar que estamos num país com taxas tão altas de criminalidade, com tantos assassinatos e chacinas.

 
Ao final, tiramos fotos com o público, a equipe do festival e do teatro. Estamos aliviados, o público parece contente, algumas pessoas tecem comentários entusiasmados. A peça chegou às pessoas, que entenderam e foram tocadas. A comunhão presencial do teatro foi estabelecida e, de alguma forma, reverbera na vida das pessoas.

 
Terminada a desmontagem e a embalagem do material que retorna conosco ao Brasil, vamos, Inês e eu, até a inauguração da Casa Brasil em Guanajuato. A casa ocupa um belo casarão, e foi inaugurada com uma exposição de xilogravuras de J. Borges. As pessoas ficam curiosas e encantadas com a potência cultural que o Brasil encarna e, finalmente, o país vai se distanciando, cada vez mais, daquela triste e perversa imagem de um país pária do mundo.


DOMINGO, 13/10

 

Bem cedo, já estamos na porta da estância, aguardando a chegada do ônibus que nos levará de volta à cidade do México. Retornamos ao hotel para o almoço e, de lá, direto ao aeroporto, para tomar o avião de volta ao Brasil.


Acho que nunca tinha empreendido uma viagem de trabalho tão curta e intensa. O Cervantino segue, com muitas e boas atrações. Só conseguimos assistir à abertura, a chamada “La Guelaguetza”, um grande desfile festivo, apresentando a diversidade de músicas e de danças de Oaxaca. Só do Brasil, o Cervantino ainda traz atrações como o grupo “Clowns de Shakespeare”, a Cia.

 

Debora Colker, Claudia Abreu, com seu monólogo de Virginia Woolf, Christiane Jataí, com seu espetáculo baseado no romance “Torto Arado”, o premiado “Macacos”, com Clayton Nascimento, “Ainda estou aqui”, dirigido pela Clarinha Kutner, além de vários shows musicais, como os de Céu, Lenine e Felipe Cato. Um cardápio bem representativo da diversidade cultural do Brasil.


Depois de praticamente 28 horas de viagem entre Guanajuato e Belo Horizonte, estamos de volta. Desnorteados, sem fuso e sem chão, querendo apenas um pouco de descanso. Que, aliás, não vai durar muito. Vida que segue. No sábado seguinte, temos apresentação do espetáculo “Till, a saga de um herói torto” e, no começo da outra semana, começamos um trabalho musical com o músico e ator Federico Puppi, para a próxima montagem. A gente pena, mas se diverte. FIM.

 

EDUARDO MOREIRA é ator e um dos fundadores do Grupo Galpão