A fumaça que invade grandes cidades brasileiras e países vizinhos trouxe a realidade dos incêndios florestais para dentro da casa de quem só os acompanhava passivamente. Já é a sexta pior temporada de focos de incêndios no Brasil (janeiro a25 de setembro) desde que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) começou a contabilizar os dados, em 1998.

 

No período, em 2024, já ocorreram 205.176 focos - o pior foi em 2007, com 254.026. Com toda a atenção voltada para as chamas que aquecem o planeta, destroem recursos hídricos e contaminam o ar, surgem imagens de alguém fazendo algo contra isso.

 



 

Homens e mulheres em roupas grossas, mascarados enfrentando com golpes de abafadores as chamas que os cercam sob um sol vermelho que mal ilumina através da fumaça. As batalhas dos brigadistas são o momento extremo de grupos com trajetórias distintas, conexão apaixonada pela terra ameaçada e histórias que começam a sair de suas rodas de reagrupamento, suados e desmontando equipamentos ao fim de um dia de combate.

 

A vontade era de que a história da fibra dos brigadistas e a sua entrega passional no combate ao fogo nas matas se desprendessem do sertão e ganhassem o respeito que merece. Mas, ao se prontificar a acompanhar jornalistas e documentaristas pelo exuberante Parque Nacional da Chapada Diamantina, na Bahia, Pablo Casella se frustrava com o resultado das reportagens e documentários.

 

“A linha escolhida pelos jornalistas não conseguia traduzir aquilo que eu conhecia e queria mostrar para eles. Uma repórter da revista Playboy chegou a descrever os brigadistas como se fossem doidões, cachaceiros fazendo uma coisa muito louca. Sei que isso existia, mas não era o que os definia. Foi quando vi que ninguém poderia contar a história que queria além de mim”, afirma.

 

 

Esse foi um dos incentivos para que Casella, biólogo e analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), decidisse unir as experiências que viveu por 20 anos na gestão do Parque Nacional da Chapada Diamantina e a paixão pela literatura que vinha da infância e da juventude para escrever seu primeiro romance: “Contra fogo” (Todavia).

 

“Na vida adulta, no treinamento científico como graduando em biologia (pela Universidade de São Paulo) fui sufocando a escrita enquanto arte. Senti que sufoquei isso por muito tempo. Acho que todo ser humano deve dar vazão a sua arte e na pandemia (do novo coronavírus), com o recolhimento, pude convergir essas vontades e fazer essas reflexões. Assim escrevi o livro”, conta.

 

A estreia no romance o levou a ser convidado a participar de uma mesa extra na 22ª edição da Festa Internacional Literária de Paraty (Flip), de 9 a 13 deste mês, na cidade histórica do Rio de Janeiro. Casella estará na mesa “Cessar o fogo” às 21h30 do próximo sábado (12/10), com Txai Suruí e mediação de Giovana Girardi.

 

“Responder aos aterrorizantes acontecimentos recentes requer manifestações que transformem o imaginário das pessoas. Txai Suruí é uma voz de proeminência dentre aqueles povos que notadamente protegem as florestas do fogo, enquanto Pablo Casella, através da ficção, demonstra a capacidade literária de representar o horror de um país em chamas”, explicou Mauro Munhoz, diretor artístico da Flip, na divulgação da mesa extra.

 

 

Tendo a imponência do Parque Nacional da Chapada Diamantina com um cenário selvagem, de cachoeiras, matas, desfiladeiros, perigos e o fogo como inimigo declarado, Pablo Casella mergulha no livro em um mundo pouco explorado da valentia genuína dos brigadistas daquela região. Um povo particular, de comunidades próximas e sensibilidades distintas.

 

“Dentro das brigadas há uma divisão de motivações que traz um pouco da origem de cada brigadista. Alguns deles vêm de pequenas cidades, mas de ambiente mais urbano. Então, além dessa identidade, eles acabam com uma carga cultural diferenciada, ainda mais que muito sobrepõem à brigada a função de guias e condutores de visitantes. Isso faz com que tenham recebido conhecimentos, informações e cargas culturais desses visitantes que ajudaram a criar neles um repertório conservacionista ao verem os turistas enaltecendo o lugar onde moram. Além disso, sendo o ambiente natural o seu ganha-pão, criaram, instintivamente, um senso de preservação ambiental”, analisa.

 

Sem negar a veia de um contador de histórias, lembrou o depoimento de um brigadista de área rural de 40 anos. “Ele falou para mim assim: quando o Ibama (que era o administrador do parque em sua criação, antes do ICMBio) veio para cá, a gente ficou com raiva deles”, lembra.

 

“O motivo era a tradição da comunidade deles chamada Guiné era de criação dos bois soltos, pastando na área do parque. Isso acabou proibido. Eles sentiram isso como um cerceamento da economia e uma recriminação de uma prática ancestral dele, do pai e do avô”, conta.

 

Pablo L. C. Casella

Editora Todavia/Reprodução

 

Contudo, com o passar do tempo e o estabelecimento do parque, o brigadista de comunidade tradicional mudou sua percepção e também seu sentimento com relação ao parque, nas próprias palavras do sertanejo. “Quando eu era menino, no fundo do Guiné tinha um rio. E a gente brincava de segurar a água dele com as mãos (fazendo barramentos), para depois soltar uma enxurrada. Vai lá agora para ver, não consegue mais nem atravessar direito o rio a pé”, lembra do relato do brigadista.

 

“Isso que ele me contou me emocionou muito, pois mostrou a sensibilidade ao longo de anos para a preservação do ecossistema contra o fogo. O fogo é uma ferramenta agrícola para que o capim nativo renasça. Fazendo isso ano a ano, os pecuaristas minguaram as nascentes e os rios. Com a preservação, a natureza se recompôs ehojeo rio que era um filete se tornou um grande rio. Essa é parte do valor que os brigadistas do meio rural dão", afirma o biólogo, agora escritor.

 

A construção dos personagens do romance é uma soma de situações vividas entre os brigadistas com vários deles se fundindo em um no enredo e ganhando nome e personalidade própria, com o autor contando sobre a necessidade de fazer exercícios de simulações mentais sobre as reações que uma criatura com aquelas qualidades e perfil psicológico teria para os desafios que criou. Alguns foram combatentes reais, a maioria já falecidos.

 

À exceção de um deles: Joás, uma das lendas das brigadas e que esteve no batismo de fogo de Pablo Casella, quando ele primeiro virou uma noite enfrentando as chamas. “Em primeiro lugar, eu o trouxe para o livro para deixar bem claro que o narrador e protagonista era o Deja, para que não ficassem especulando que seria o Joás, que tem suas próprias histórias. Em segundo lugar, para homenagear essa figura lendária da Chapada Diamantina, um dos precursores desse movimento das brigadas”, conta Pablo Casella.

 

A caracterização dos personagens transporta o leitor para a vida simples, corrida, recheada de conflitos e do jeito do brigadista que combate nos rincões do sertão. A oralidade dos diálogos é marcada por esse regionalismo e informalidade ajudando a entender um pouco a forma de pensar e agir desses destemidos combatentes.

 

“Não fiz um exercício rosiano, não criei neologismos através de um conhecimento profundo. Tentei ser fiel no léxico, mas também com a liberdade criativa para construir as figuras de linguagem adequadas às situações que os personagens viviam. Qualquer ser humano em tem as mesmas paixões, vicissitudes, a mesma psicologia, com uma forma diferente de se expressar”, conta.

 

Não tem como deixar de torcer para que personagens que, depois de algumas páginas, já se tornaram seus companheiros de combate a incêndios de forma tão intensa e passional. Difícil não admirar a bravura de homens que fora da guerra contra o fogo são normais, falhos e desfrutam de uma vida simples e alegre.

 

“As emoções do meu primeiro combate, ao lado do Joás e do Carlos Formiga me lançaram nesse imaginário. Estávamos em um dos dois grupos de combate ao incêndio com um trabalho de grande intensidade desde as 21h. Por volta de 22h, já sentiaterchegado ao meu limite e estava pronto para parar. Não dava mais. Mas era daí que vinha a força deles. Com aqueles gritos de incentivo e os comandos que davam, nos dando mais energia e fazendo ir além, combatendo até as 6h. Foi para mim uma epifania que tive ao presenciar essa dedicação deles, essa entrega, essa abnegação desmedida para a causa me trouxe toda essa identificação.”

 

Paulista de Guaratinguetá, Pablo Casella, de 46 anos, estreia trazendo do sertão a bravura dos brigadistas contra os incêndios florestais. Mas já planeja uma próxima aventura em terreno diferente. “Penso em uma obra voltada para público infantojuvenil. Quero criar uma ficção que, com alegoria sutil, consiga transmitir possíveis alentos para que essa geração viva melhor nesse mundo que deixaremos para eles”.

 

“Contra fogo”

  • De Pablo Casella

  • Editora Todavia

  • 320 páginas

  • R$ 79,90 (e-book R$ 49,90)

Capa do livro

Reprodução

compartilhe