Anditya Matos

Especial para o EM

 

Na noite de 01º para 02 de novembro de 1975, o intelectual italiano Pier Paolo Pasolini foi assassinado na periferia de Roma. A versão oficial afirma que o crime surgiu de um desentendimento com “Pino” Pelosi, um garoto de programa que, depois de golpear o cineasta, o atropelou várias vezes com seu próprio carro. Pelosi confessou o crime e foi preso, tendo sido libertado em 2005. Afirmou então que não tinha matado Pasolini e que a sua confissão era falsa, alimentando ainda mais os rumores sobre a morte de Pasolini que, para muitos, deve ser creditada aos poderosos personagens ligados à indústria do petróleo que ele iria denunciar em um romance inacabado, “Petróleo”.

 

A verdade é que não faltavam candidatos com motivações para aniquilar Pasolini. Gay assumido em uma cultura ultramachista como a italiana, socialista extremamente crítico do poderoso Partido Comunista Italiano e ateu com uma enorme sensibilidade cristã e, por isso mesmo, odiado no Vaticano, Pasolini era uma figura polêmica. Felizmente, seu assassinato não foi suficiente para calar a sua voz, que ressoa até hoje em inúmeros trabalhos inéditos que vão sendo pouco a pouco publicados mundo afora. É o caso de “Porno-Teo-Kolossal”, roteiro do que seria o último filme de Pasolini e que agora é lançado no Brasil pela jovem editora paulistana sobinfluencia, com tradução e ensaio introdutório de minha autoria. 

 



 

“Porno-Teo-Kolossal” é uma fábula sobre a ideologia em que vemos Epifânio, um rei mago napolitano, junto com Nunzio, seu fiel servo, sair em busca da estrela que marca o local onde deverão homenagear o recém-nascido Messias. O roteiro se desenvolve no caminho rumo ao Salvador, passando por cidades surreais e distópicas chamadas de Sodoma, Gomorra, Numância e Ur, mas que na verdade são metáforas para Roma, Milão e Paris, onde reinam a violência e a degradação, o que serve aPasolinipara construir uma forte crítica à sociedade de consumo e à decadência cultural da Europa, dominada por uma burguesia ocupada com a destruição dos modos de vida “tradicionais” (operários, rurais, “solitários” etc.) em nome de uma existência simplificada em que o gozo, em uma modalidade altamente egoísta, des-historicizada e dessocializada, se tornou o único horizonte possível.

 

De fato, depois de filmes como os da trilogia da vida e de “Salò”, o sexo só poderia ser experimentado na sua dimensão pornô, ou seja, espetacular, não-vivida, representativa. Pasolini via a permissividade dos anos 1970, especialmente entre os jovens italianos – que, para ele, tinham se tornado monstros insensíveis graças à banalização e à mercadorização do sexo e dos corpos –, não enquanto uma experiência real, e sim como um dispositivo do capitalismo que se traduzia na ideia contraditória de “liberdade obrigatória”.

 

Por isso o sexo aparece como um elemento muito mais de afastamento do que de aproximação entre os seres humanos, tal como prova a rígida divisão de bairros entre homossexuais e heterossexuais nas cidades distópicas. Trata-se de apresentar o sexo-imagem em um grande, enorme espetáculo, a exemplo do que faz a sociedade burguesa todo santo dia. Santo dia? Sim, pois aqui se abre a pequena porta pela qual o Messias pode passar e Pasolini introduz a sua angustiosa e potente teologia política, tal como argumento com mais detalhes em meu ensaio introdutório.

 

Em “Porno-Teo-Kolossal” não estamos diante de um simples espetáculo pornográfico; se fosse assim, o último roteiro de Pasolini em nada se diferenciaria da mundanidade burguesa. Ao contrário, Pasolini nos oferece um espetáculo pornô sagrado, santo. O sacro, assim como o sexo, é político, constituindo o terreno do escândalo perene, em especial no cristianismo arcaico, místico e camponês retratado pelo diretor italiano, para quem “Deus é o escândalo. Cristo, se voltasse, seria o escândalo: foi em seus tempos e o seria hoje”. Dessa maneira, em uma época na qual o pornô deixou de ser escandaloso – e, portanto, político –, para torná-lo potente de novo é preciso religá-lo ao sagrado.

 

 

É o que Pasolini faz no roteiro de “Porno-Teo-Kolossal”, no qual o sexo passa a ser o eixo político das cidades que preparam – e impedem – o acesso ao Messias. O sagrado em Pasolini se traduz na recusa de se ver o natural na natureza, de modo que aquilo que parece normal aos outros, surge para o escritor italiano revestido por uma luz especial, determinando assim seu estilo e sua técnica.

 

O sagrado serviria então para reencantar e fazer de novo visível o mundo tornado banal e medíocre pelo novo fascismo hedonista e consumista. Nesse sentido, a missão do intelectual pasoliniano – figura hoje extinta – consiste em, ao não aceitar a suposta naturalidade e imodificabilidade do mundo, escandalizar seus habitantes com o sagrado do sexo e negar o conformismo ao provar na própria carne a experiência de outros mundos possíveis.

 

ANDITYA MATOS é escritor, doutor em Direito e em Filosofia e professor de Filosofia do Direito na UFMG

 

“Porno-Teo-Kolossal”

  • De Pier Paolo Pasolini
  • Tradução de Andityas Matos
  • Sobinfluência Edições
  • 175 páginas
  • Lançamento neste sábado, às 14h, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi)

 

Capa do livro

Reprodução

 

 

Trechos 

 

(Prólogo de “Porno-Teo-Kolossal”, de Pier Paolo Pasolini, tradução de Andityas Matos)

 

Estamos na escuridão e no silêncio das alturas cósmicas. No fundo, aos nossos pés, se vê o globo terrestre. (Seria oportuno, obviamente, que não se tratasse de um globo artificial, mas do globo terrestre verdadeiro, exatamente como aparece nas fotografias tiradas por um astronauta de uma nave espacial.) Veem-se os rastros rugosos da terra, as manchas acinzentadas dos mares, os confins dos continentes etc., etc., até que, em certo momento – porque o globo, obviamente, gira –, eis que se apresenta aos nossos olhos a silhueta, nebulosa e avermelhada, da Itália.

 

Nesse ponto se começa a ouvir algo como vozes longínquas, gritos, broncas e inclusive uma voz que canta uma velha canção popular napolitana muito fraca graças à distância. Aproximamo-nos cada vez mais... E eis a vista panorâmica de Nápoles, Nápoles vista do alto, com seus becos, suas pracinhas, suas pequenasconstruções. Amanhece, as vozes que ouvíamos ainda são bem poucas: de mulheres, de crianças… Um varredor caminha pelos becos cantarolando.

 

Contudo, apesar da atmosfera quotidiana e tranquila de início da manhã, sente-se algo de estranho, comovido naquelas vozes, algo vagamente dramático. Não se entende bem do que se trata. Depois, em certo momento, em uma das paredes descascadas de um beco se abre uma janelinha, e dessa janelinha surge Eduardo De Filippo, sonolento e despenteado.

 

Ele olha em torno e diz: “(frase em napolitano a ser inventada)”. Do interior da casa lhe responde uma voz feminina lamentosa: sua mulher: “(outra frase a ser inventada)”. Ele se volta paciente, fecha a janelinha, entra em casa e se prepara para seu longo dia. Troca ainda algumas palavras com a esposa, que é uma napolitana antiga como o mundo, gorda, desgrenhada e eternamente na cama, com uma perna enorme. (E talvez, ao lado, esteja uma mulher que a assiste, pálida, negra e muda.)

 

No corredor há ainda um outro personagem, despenteado e peludo: é o criado, e sabemos de imediato que Eduardo De Filippo o contratou precisamente na tarde anterior e o colocou para dormir ali no corredor, numa cama de armar. Eduardo, então, acorda o criado, faz um aceno para que o siga, pegam uma grande sacola e saem para fazer compras.

 

O criado contratado na tarde anterior, já na sua primeira aparição, demonstra claramente não ter nenhuma intenção de satisfazer seu patrão: não se sente de modo algum partícipe da sua vida e pretende, em suma, se dedicar a seus próprios assuntos. Obedece, serve e nada mais. Se diria que seu ar não é hostil, mas muito estranho, distante, brusco, quase atrevido. Mas Eduardo, como velho senhor napolitano, ignora tudo isso.

 

Os dois descem as escadinhas, chegam ao beco e começam suas compras. Mas eis que aquela inquietação, aquela espécie de dramaticidade que se percebia nas confusas vozes do amanhecer, se faz sempre mais manifesta e desconcertante. À medida que os dois se aproximam da praça do mercado, entretanto, a atmosfera se torna mesmo dramática, até que Eduardo e seu criado, Ninetto, se veem no centro de uma situação absolutamente extraordinária.

 

Trata-se do seguinte: em Nápoles se vive, se chora, se desespera, se discute, se briga, se reza, se canta porque se espalhou a notícia misteriosa que em alguma parte do mundo nasceu o Messias. E esse Messias deverá trazer para os homens felicidade, ordem, riqueza, bondade, fraternidade e todas as outras coisas que os homens, e em particular os napolitanos, desejam; mesmo os mais simples, os mais ingênuos.

 

Há quem, aos berros, acredita nisso, e quem, aos berros, não acredita; assim aqueles que não acreditam brigam com aqueles que acreditam, e aqueles que acreditam brigam com aqueles que não acreditam. Em resumo, se intensifica a velha confusão napolitana das grandes ocasiões. Coisa que acontece, na verdade, todos os dias em Nápoles, mas dessa vez não se pode negar que a razão é verdadeiramente única, excepcional, histórica. O nascimento do Messias! Messias pra cá, Messias pra lá... “O Messias tá vindo, o Messias não vem, não é verdade, vocês são todos mentirosos... todos filhas da puta... seus burros...”

 

Eduardo escuta tudo com muita curiosidade e com as orelhas em pé e está comovido, quase solene, como se se tratasse de algo decisivo para sua vida. Eduardo De Filippo, na verdade, é um Rei Mago. É por isso que ele, graças a seus estudos astronômicos, às suas cabalas, a seus cálculos, já há muitos meses, talvez há anos, esperava esse dia, o dia do anúncio do nascimento do Messias. Ao ouvir pela voz do povo que, talvez, a sua profecia esteja se realizando, depois da comoção solene, é tomado por um ímpeto de íntima felicidade e tenta comunicá-la a Ninetto, balbuciando, rindo...

 

Mas Ninetto, nem mesmo nesse caso – tão excepcional – lhe dá atenção, com ar de quem diz (ele é romano): “Porra, isso é assunto seu, estou pouco me fudendo pro seu Messias!” Sem as compras, com as sacolas vazias, Eduardo volta correndo para casa, entra e, ofegante, comunica a notícia à mulher em um estado de felicidade quase delirante. Ninetto se instala em um canto, cético, mal-humorado e um pouco irônico (de vez em quando, faz uma piada espirituosa, como era de se esperar obviamente).

 

Tendo comunicado o grande acontecimento à esposa, Eduardo corre para consultar seus papéis, seus livros: sim, era mesmo nesse dia que o Messias deveria nascer. O Rei Mago passa o dia todo fazendo cálculos e pesquisas nos seus textos... Depois, ao final da tarde, arrasta seu criado consigo pelas ruas novamente, para investigar melhor, aqui e ali pela cidade... Em Forcella... No Vomero... Em Margellina... Nápoles toda não é mais do que um grande teatro onde se recita a maior cena da sua história.

 

Talvez Eduardo saia novamente com Ninetto porque seus livros lhe disseram que ele deveria chamar a Estrela-Guia com a primeira palavra que viesse à cabeça de um napolitano com que cai a noite. Eduardo está de novo à janela de sua casa: essa é a cerimônia vespertina de toda sua vida. Deve fechar de novo a janelinha, assim como de manhã a abriu.

 

E quando está prestes a puxar a veneziana decrépita em sua direção, eis que se dá o último e definitivo acontecimento daquele dia memorável, quase uma confirmação sublime. Alta, nítida, puríssima, nas profundezas do claro céu noturno, Eduardo avista a Estrela-Guia. E ele sabe muito bem que aquela Estrela está lá para lhe indicar o caminho que deverá seguir para ir adorar o Messias.

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