“O Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as peças de teatro de Paris, a geografia da Manchúria, o patriotismo japonês. Aposto, no entanto, que a cidade não conhece nem seu próprio mapa, nem a vida dessa sociedade, de todos esses meios estranhos e exóticos, de todas as profissões que constituem o progresso, a dor, a miséria dessa vasta Babel que se transforma.”

 

A descrição da ‘Cidade Maravilhosa’ é de João do Rio, o autor homenageado na 22ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), de nove a 13 de outubro na cidade histórica. Mais célebre dos pseudônimos utilizado pelo jornalista Paulo Barreto (1881-1921), João do Rio será tema da mesa “As ruas têm alma” na abertura na próxima quarta-feira, com Luiz Antonio Simas, e ganha novas reedições de sua obra. Uma delas é “Gente às janelas”, coletânea de crônicas editada pela Carambaia em comemoração aos dez anos da editora.

 



 

“João do Rio percorreu o mundo, foi amado e odiado. Fez rir, fez chorar, colecionou admiradores e desafetos. Ele levou a reportagem para a crônica, e o estilo literário, a criação de diálogos, o humor, a ironia, para a reportagem. Renovou o modo de fazer jornalismo e ajudou a fundar a crônica moderna”, destaca Graziella Beting, diretora editorial da Carambaia, na introdução. Com mestrado e doutorado sobre o surgimento da crônica e a obra de João do Rio, Beting organizou os textos incluídos em “Gente às janelas” em quatro blocos temáticos.

 

Mais da metade das crônicas reunidas na edição permaneciam inéditas em livro e, a elas, foram adicionados textos que o autor considerava relevantes e incluir nos 25 livros que publicou até morrer em 1921, poucos meses antes de completar 40 anos.

 

“Ele levou seus leitores aos meandros e subterrâneos da cidade, suas vielas e círculos do vício, apresentando um Rio de Janeiro sobre o qual ninguém falava”, aponta a organizadora da edição. “Tudo isso pontuado por uma boa dose de humor e ironia.” Leia, a seguir, trechos de duas crônicas de João do Rio.

 

“Ser snob”

 

Não há dúvida. A maioria da sociedade atravessa agora uma crise nervosa que se pode denominar a nevrose do esnobismo. É nas gazetas, é nos salões, é nas ruas: - a moléstia invade tudo. Não há lar por mais modesto, não há sujeito por mais simples, que não se sintam presos do mal esquisito de ser snob, e o esnobismo é tanto a modéstia do galarim da moda, que uma porção de cidadãos graves já com afinco e solenidade resolveu fazer-lhe oposição. (...) Que vem a ser snob em terras cariocas?

 

O snob do Rio é um homem que algaravia uma língua marchetada de palavras estrangeiras, fala com grande conhecimento da Europa, da vida elegante da Riviera, das croisières em yachts pelos mares do Norte, dos hotéis e da depravação do Cairo e de outras cidades oftálmicas do Egito, aonde é moda ir agora; o snob nacional é o tipo que procura vestir bem e ser amável – é afinal um reflexo interessante e simpático do snob universal, com a qualidade superior de ter pouco dinheiro.

 

(Trecho de crônica publicada originalmente na coluna “Pall-Mall-Rio”, do jornal O país, em 26 de agosto de 1916, sob o pseudônimo José Antônio José)

 

“Na favela”

 

(...) O Morro da Providência sempre foi um lugar célebre de capoeiragem e assassinatos. Outrora, no lugar onde existe o Cruzeiro, mandado fazer pelo Santa Casa, bem no pico da montanha, é que se davam as lições de capoeiragem. Chamavam o china seco e a polícia monárquica nunca pôde acabar com o centro de horror.


Depois da Guerra de Canudos, os mais ousados facínoras voltaram a habitar o píncaro do morro denominado Favela porque não há polícia que não seja derrotada. (...)


- Mas a polícia, o que faz a polícia?


A polícia resolveu um interessante meio de acabar com tais cenas: fazer os facínoras ‘prestar serviços ao delegado, como dizem. Essa ingênua ideia deu em resultados serem aproveitados os valentões da pior espécie, que se tornaram terríveis e são agora os diretores dos conflitos.

 

(Publicada originalmente na Gazeta de Notícias, em 21 de maio de 1903)

 

 

Homenagem a Olavo Romano

 

A próxima edição do projeto “Letra em cena” homenageia um escritor que, como define o curador José Eduardo Gonçalves, “conhecia como poucos a alma da gente mineira e cultivou uma profunda paixão pela cultura popular”. A vida e a obra de Olavo Romano (1938-2023) serão celebradas na próxima terça-feira (8/10), às 19h, no Centro Cultural Unimed (Rua da Bahia, 2.244, Lourdes), em conferência da professora Ivete Walty e leituras de trechos de histórias do escritor por amigos, familiares e colegas de letras. Entrada franca.

 

 

Ana Kiffer e o muro em pedaços

 

Em depoimento ao Pensar, a escritora e professora de literatura Ana Kiffer narra o processo de escrita do livro “No muro da nossa casa”, recém-lançado pela editora Bazar do Tempo, que revisita os atos mais violentos da ditadura militar brasileira por meio do diálogo entre mãe e filha em busca da verdade.

 

“Passei seis anos escrevendo e reescrevendo ‘No muro da nossa casa’. O que não mudou foi a sua espinha dorsal: os capítulos se chamam Atos, a estrutura é em diálogo - duas vozes, mãe e filha. O livro acabou breve, guardando, como dizemos, o osso da história, e nela agarrando o seu centro-nodal: tentar ouvir o que sentiu a mãe. O que ela teria sentido quando foi presa grávida de mim, ou antes, e depois? Não o que ela pensava. Nem somente os fatos que viveu. Mas entender como ela se sentia. Esse gesto restituiria algo do que nunca pude (pudemos) sentir, mas, no entanto, senti (sentimos)? Algo se interdita ao sentir quando se vive violências duras e longas? A questão segue aberta.

 

É difícil dizer em palavras esses sentimentos-limite, mesmo entre mães e filhas. Depois o livro é um romance, feito do esforço para imaginar o que em mim não tem memória. Busquei apoio nos arquivos familiares, e nas inúmeras páginas dos testemunhos e relatórios da Comissão Nacional da Verdade, e assim ele foi sendo habitado por muitas vozes, romanceadas nas vozes delas.

 

Quis também transformar o que faz parte de um documento público e oficial em um texto sensível, que tocasse o leitor. Que a história chegasse não somente como registro de acontecimentos terríveis, que vem infelizmente atravessando o país da colonização aos dias de hoje, mas como um algo ali vivido na carne, no miúdo da vida.

 

Também isso fez parte dessa escrita que optou pelo menos: o que na história dos meus pais não foi heroico, ou grande feito. Eles, que permaneceram em ‘in-xílio’, sem poder dizer nada, sem vida prévia, não tinham como evitar se sentirem em algum lugar como ‘o seu país’ dizia que eles eram. Sob esse prisma o livro escreve os fantasmas dos muros. São muitos. Alguns retornam, outros nunca se apagam de todo.”

compartilhe