Reeditar “Olhos de carvão”, lançado em 2017 pela Record, não estava nos planos do jornalista, escritor e gestor cultural Afonso Borges. Mas aconteceu. Certo dia, ele recebeu o convite da editora Autêntica e não viu motivo para recusar.

 

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Filho de Murilo Rubião, como refere a si próprio, Afonso não estava satisfeito com os textos que havia escrito e, assim como Rubião, pretendia revisá-los mesmo que já tivessem sido publicados. “Quando fui convidado para reeditar o livro, então, falei: ‘Bem, se vai ser reeditado, vamos atacar de Murilo’”, conta em tom bem-humorado.

 

Afonso não só “lapidou e relapidou” (termo utilizado por Humberto Werneck) os contos, como decidiu acrescentar cinco poemas inéditos nessa nova reunião que é publicado pela editora Autêntica sob o título de “Tardes brancas” e, com o subtítulo “26 contos e 5 poemas”, já caminha para a segunda edição.

 



 

Com os versos ocorreu algo semelhante ao que tinha acontecido com os contos. “Eu revi os cerca de 500 a 600 poemas que escrevi e publiquei ao longo da vida, e cheguei à conclusão de que somente cinco poderiam ser aproveitados. Mexi nesses poemas e praticamente reescrevi todos eles. Por isso digo que são inéditos”, explica.

 

“Tardes brancas” tem prefácio de Werneck, orelha assinada por Sérgio Abranches, colunista do EM, e comentários de Ruy Castro, Martha Medeiros, Frei Betto e Carla Madeira. Mesmo que a novidade maior sejam os poemas, que se destacam pela forma e pelo modo em que transitam entre real e imaginário, ainda são os contos que captam a atenção do leitor nessa nova publicação de Afonso.

 

São histórias da vida privada do autor que transcenderam do mero relato de um fato à literatura por ampliar a possibilidade de interpretação de signos muitas vezes encobertos nas narrativas, como as 12 casas do zodíaco e demais segredos da Igreja de São José parcialmente revelados no conto “Na divisa, os olhos de carvão em Celeste”.

 

 

Em poucas palavras, a história narra uma espécie de experiência paranormal do narrador dentro do templo dedicado ao pai adotivo de Jesus. Misticismo e espiritualidade se entrelaçam sob o número 12 (as casas do zodíaco pintadas nas paredes da igreja), que biblicamente representa ordem e organização. Entretanto, num paradoxo instigante, tal experiência causa desordem e confusão no narrador e no leitor.

 

Os olhos de vidro de Lucas no conto “Em Gaza, os olhos de vidro, e Lucas” são outro exemplo de como Afonso trabalha com a subjetividade. O personagem do título troca a leitura de livros pelas telas dos aparelhos eletrônicos e, de repente, encontra-se frente a frente com uma criança destroçada, envidraçada: tratava-se de uma foto do conflito em Gaza vista pelo celular de Lucas.

 

Tem também a história do policial rodoviário que se posicionou atrás de uma árvore na estrada com um medidor de velocidade em mãos no intuito de multar o máximo de motoristas que conseguisse em “O radar, Roselanche e a velocidade”. O militar, contudo, não contava com a indignação de um homem que, depois de multado, deu meia-volta e o matou atropelado. Numa ironia ferina do autor, ficamos sabendo que somente a máquina (o medidor de velocidades) “viu” tudo o que aconteceu – de que vale, portanto, o olhar da máquina sem o controle humano?

 

Outro aspecto da literatura de Afonso que chama atenção é o foco narrativo de seus textos. Cada conto narra uma única história, mas sob perspectivas diferentes que vão se alternando de parágrafo para parágrafo.

 

 

“Eu não consigo sentar e escrever de outro jeito”, diz ele. “Naturalmente, eu sento e começo a escrever uma história que vem na minha cabeça. Mas, de repente, eu penso em outra e elas vão se intercalando na medida em que eu vou escrevendo. Acho que esse meu modo de escrever reflete a maneira como minha cabeça pensa, talvez seja uma forma de evidenciar o louco que eu sou”, brinca.

 

Loucura talvez não seja a melhor forma de defini-lo. Afinal, só alguém muito antenado aos acontecimentos do mundo literário nacional pode manter quatro festivais de literatura anuais (Fliparacatu, Fliaraxá, Flipetrópolis e, a partir do dia 30 deste mês e até o dia 3/11, o Flitabira) e tocar um projeto como o Sempre um Papo, que há 38 anos serve como plataforma para o diálogo entre autores, especialistas e público em geral, contribuindo para a disseminação de conhecimento e o incentivo à leitura.

 

Para quem passou grande parte da vida promovendo autores contemporâneos, “Tardes brancas” é um pequeno aceno que Afonso faz ao “outro lado do balcão” (para citar Werneck novamente). Contudo, ele garante que tudo não passa de um aceno. “Se for olhar na minha gaveta, não tenho nenhum texto inédito. Com a rotina cheia que eu tenho, não consigo arrumar tempo para escrever. É até uma pena”.

 

Capa do livro

Reprodução

 

“Tardes brancas”
De Afonso Borges
Autêntica
88 páginas
R$ 54,90 (livro físico) e R$ 38,90 (e-book), nas livrarias ou pelo site grupoautentica.com.br

 

Um conto

“Em Gaza, os olhos de vidro, e Lucas”

 

Lucas hoje tem olhos de vidro. Lembra o tempo em que andava pelas ruas lendo livros, trombando nas pessoas. O tempo em que lia sentado no meio-fio, de noite, à luz dos postes, esperando ônibus. Depois, lia durante todo o trajeto, no balanço do balaio, como cantou Vander Lee. Hoje seus olhos ardem muito no final do dia. Como pimenta.

 

Lucas hoje lê com seus olhos de vidro, outros vidros: a tela do computador, do celular, do tablet, do iPad. A televisão substituiu a emoção do romance. Na tevê ele encontra o hormônio delirante da imaginação que desistiu, há muito, de buscar no livro. Seus olhos e sua alma são de vidro, hoje. Não há janelas da alma.

 

De vidro estão, e são, os olhos de Lucas. Mas estouram as bombas nos túneis de Gaza. Os túneis escuros de esperança e ódio; de planos e desenganos. Terríveis, as fotos de crianças destroçadas decoram os vidros que os olhos de Lucas veem. Mas tudo se quebra. Ninguém está preparado para isso, pensa, enquanto vidro.

 

Sem paz, os olhos de Lucas experimentam o olhar triste do mundo. O olhar que as centenas de livros lidos não explicam. O olho de vidro que vê fotos e imagens, no olho de vidro da mídia. Sem paz alguma, sem luz, cego. A cegueira torpe de quem enxerga e não vê.

 

Os olhos de Lucas coçam como pimenta ao final do dia. O olhar de Lucas se vê nos outros olhares e se desfaz na ausência de sentimentos. A segunda-feira nasce alucinadamente azul na luz de agosto, e o vidro continua, perpétuo, a moldar as sensações, afastando os sentimentos. Córnea pétrea.

 

De súbito, Lucas se vê sentado no meio-fio, lendo livros, no ponto de ônibus, à meia-noite. Ninguém por perto, só ruídos dos carros passando. Havia paz naquele encontro entre olhos e papel. E o coração aos pulos, de linha em linha. Como um raio, desceu a cena de Raskolnikoff vindo por trás da velha usurária, em Crime e castigo. Era um tempo sem vidros, pensou.

 

Os olhos de vidro de Lucas não são cegos. Só selecionam sentimentos. Ou permitem que o vidro, híbrido, orgânico, faça o serviço. Tem a mente segura e equilibrada no olho de vidro do celular, agora. Ontem também. E amanhã, ao acordar, será o toque do aparelho a sua primeira sensação. Seu primeiro pensamento após o sonho, logo esquecido.

 

A realidade, agora, passa a ter olhos de vidro. Lucas sai à rua e assiste, atônito, a um assalto no restaurante em que janta. Gritos, tiros, sangue à sua frente, o susto imenso de uma morte. Sim, está acontecendo, é real, ele pensa, imerso em vidro. O corpo de Lucas, onde habitam seus olhos de vidro, não se mexeu. Assistiu, televisivo, os acontecimentos terríveis. Lucas pensou em Gaza. Imaginou os túneis. Engatinhou por eles até que uma bomba destruísse tudo. Viu seu corpo ser destroçado, soterrado. Sentiu tudo, em vidro. Seus olhos pararam de arder. Tirou os óculos, vista cansada, desligou o celular. 

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