Surazo é o nome que se dá para o vento de origem na Patagônia capaz de derrubar, em poucos minutos, a temperatura das florestas bolivianas em até 20 graus Celsius. Foi também o título de um mal sucedido filme do alemão Hans Ertl, cinegrafista de Leni Riefenstahl, diretora dos principais filmes de propaganda da Alemanha Nazista.

 

No final de 1950, Ertl, já radicado na Bolívia, tentou retratar em um documentário o impacto desse fenômeno climático nas populações indígenas do país. Durante as filmagens, o material caiu em um rio e foi levado pela correnteza. Frustrado, o cinegrafista, conhecido por ser o câmera preferido do general da Wehrmacht Erwin Rommel, resolveu pendurar as chuteiras. Refugiou-se em sua fazenda, "La Dolorida", e, isolado da sociedade, transformou-se em um ermitão.

 

 

A falsa poesia dessa história contada pela metade é, na verdade, repleta de violência. No livro de Karin Harrasser, não coincidentemente intitulado Surazo - Hans e Monika Ertl: Uma história alemã (Manjuba, selo de não-ficção da editora Mundaréu), essa é só a ponta do iceberg na investigação da escritora austríaca sobre as conexões do nazismo com as ditaduras latino-americanas no pós-guerra.

 



 

O centro ao redor do qual a narrativa de não-ficção se constrói é a aparente contradição política dentro da residência boliviana dos Ertl. Filha preferida de Hans, Monika chegou a acompanhar o pai nos documentários quase etnográficos sobre a cultura andina e amazônica. Em 1969, se envolveu com o Exército de Liberação Nacional (ELN), fundado por Che Guevara, a quem supostamente vingou num atentado em Hamburgo ao matar o cônsul boliviano e coronel Roberto Quintanilla Pereira – conhecido por ter ordenado que o guerrilheiro argentino, já morto, tivesse as mãos amputadas.

 

Monika foi assassinada pelo serviço secreto do ditador Hugo Banzer nas ruas de La Paz, em 1973. É aí que entra outro nazista refugiado no país latino-americano: Klaus Altmann, o vizinho de fazenda de Hans Ertl, a quem a guerrilheira havia chamado na infância de “Tio Klaus”. Era, na verdade, Klaus Barbie, o “açougueiro de Lyon” e um dos responsáveis por colocar em prática o Holocausto contra os judeus, quem apontou a localização de Monika para o exército boliviano exterminá-la.

 

 

Conexões da Morte

As relações de Klaus Barbie e o trânsito do ex-chefe da Gestapo, o serviço secreto da Alemanha Nazista, junto às elites econômicas bolivianas e ao próprio Banzer, de quem era conselheiro pessoal, são só um dos nós explorados por Karin Harrasser na jornada por uma América do Sul infestada de parceiros de Adolf Hitler. Nesse meandro também se encontrava o piloto da Schutzwaffel Hans-Ulrich Rudel, escondido na Argentina e próximo do presidente Juan Perón, também conhecido por traficar armamentos da Europa para as ditaduras Stroessner (Paraguai), Pinochet (Chile) e, lógico, Banzer.

 

O livro, no entanto, não se arrisca em tentar contar essa história de forma linear. Numa escrita experimental, Harrasser mistura uma espécie de diário de pesquisa (para a qual viajou até a Bolívia) com memórias de infância na região do Tirol, diálogos soltos e descrições dos filmes de Hans Ertl. A cada capítulo, a banalidade do mal se mistura com o Novo Mundo escolhido pelos nazistas e suas particularidades e contradições. Passado e presente dialogam em recortes, com referências diretas ao cinema: são close-ups e planos gerais que levam o leitor pelos corredores subterrâneos da família Ertl.

 

No fundo de cada palavra de Surazo, um vento de mesmo nome parece soprar continuamente, nos lembrando de um fato que muitas vezes ousamos esquecer: o nazismo perdeu a guerra, mas suas bases – a eugenia, a teoria supremacista, a pulsão de morte e o genocídio – não. O próprio Ertl era uma prova viva disso: sem ter sido um condenado de guerra, poderia ter retornado ao país de nascença e levado uma vida normal, como vários colaboradores do Terceiro Reich.

 

 

Mas sentia-se abandonado pela nova Alemanha, a Ocidental, onde acreditava que os ideais de “pureza” defendidos por ele não tinham mais espaço. Foi nos Andes, de onde nunca mais saiu, que o documentarista nazista encontrou eco para viver como se o país que idealizava nunca tivesse sido derrotado, fomentando junto aos pares a violência política e humana que perpetua e espreita até os dias de hoje.

 

 

Sobre a autora

Nascida em 1974, a austríaca Karin Harrasser é cientista cultural e pesquisa a relação entre corpo, tecnologia e ficção científica. Nos últimos anos, direcionou suas investigações para questões da violência cultural como elemento das relações transatlânticas na Colômbia e na Bolívia.

 

Em 2023, publicou Gegenentkommen, que enfoca os acontecimentos histórico-políticos e da sociedade civil na Colômbia desde o acordo de paz firmado com as FARC em 2016. É professora e vice-reitora de pesquisa na Universidade de Arte e Design de Linz, e co-diretora do Centro Internacional de Pesquisa para Estudos Culturais (IFK), em Viena.

 

Karin Harrasser vem ao Brasil

A escritora austríaca Karin Harrasser, autora de Surazo, virá ao Brasil para lançar o livro em novembro. O primeiro evento confirmado será em São Paulo, no dia 8/11, no Sesc-SP – Centro de Pesquisa e Formação, com apoio do Instituto Goethe. A entrada é franca e o público interessado deve se inscrever no endereço sescsp.org.br/cpf. No dia seguinte, ainda em São Paulo, Harrasser lança Surazo no Mercadinho da Livraria Simples (Rua Rocha, 41, Bela Vista).

 

Trechos
(De Surazo, de Karin Harrasser)

“O andinismo do pós-guerra está intimamente ligado ao meio boliviano-alemão em La Paz, que vacilava entre expressões flagrantes de simpatia pelo projeto fracassado do nacional-socialismo na Alemanha e tentativas pouco assertivas de se distanciar. Sabendo que uma afirmação pública do nacional-socialismo não era necessariamente oportuna, embora ele fosse de longe mais aceitável na Bolívia que na Alemanha, foram criadas imagens deslumbrantes que revelavam muito, sem dizer isso diretamente.”

 

“Os anos chamados de pós-guerra na Europa foram frequentemente chamados de pré-guerra na Bolívia; muitas vezes, também, período de guerra. Os antigos nazistas que haviam fugido para a América do Sul logo se envolveram ativamente em golpes e guerras civis. A Guerra Fria na Europa era quente na Bolívia, como em muitos lugares menos privilegiados do mundo. As guerrilhas e os paramilitares (e, é claro, os militares) lutavam contra a competição sistêmica entre o comunismo e o capitalismo, com apoio de redes internacionais de direita. Embora muito tenha sido escrito, na academia e na ficção, sobre a rede internacional da esquerda radical, não há tantas pesquisas confiáveis sobre as redes de direita, mas, sim, muita especulação. Isso se deve, em parte, ao fato de as redes de direita terem sido alimentadas pelos serviços secretos ocidentais na luta contra o comunismo, mas também porque elas próprias criaram alguns mitos, como a sociedade secreta ODESSA.”

 

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Surazo – Hans e Monika Ertl: Uma história alemã na Bolívia

  • De Karin Harrasser
  • Tradução de Daniel Martineschen
  • Editora Mundaréu. Selo Manjuba.
  • 288 páginas
  • R$ 86
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